quarta-feira, outubro 13, 2004

Um sorriso trágico

Nos últimos tempos, há uma imagem que me vem sistematicamente à mente quando olho para Portugal: numa das primeiras cenas do filme “Abril”, de Nanni Moretti, este, interpelado por um jornalista francês, tenta explicar o que se passa na política italiana, com a ascensão ao poder da dupla Berlusconi/Fini. A conversa perde-se num arrazoado de frases desconexas, tolhidas por justificações típicas de quem quer “pintar um quadro” simpático a um estrangeiro. Quando Moretti deixa o jornalista, fica apenas com o sorriso desconfortável e uma voz interior que o tenta convencer que as coisas não são tão más como lhe parecem. E, acima de tudo, naquilo que é o aspecto mais impressivo da cena, com a incapacidade de explicar, de um modo simples e a quem vem de fora, a realidade política italiana. Hoje, ao tentar explicar a amigos estrangeiros, o que entre nós se tem passado, dou por mim com o mesmo desconforto, face a algo que, como em Itália, parece desmoronar-se.
Atente-se a alguns aspectos da vida política portuguesa e, rapidamente, se perceberá como fugimos de um padrão de normalidade. Em apenas um ano e meio, o maior partido da oposição foi envolvido, de forma grosseira e com uma ligeireza e incompetência espantosas, num mediático escândalo de pedofilia; o Primeiro-Ministro, bloqueado na sua própria teia de incapacidades, fugiu e o Presidente da República, em lugar de chamar os cidadãos a escolher, seleccionou para o cargo o Presidente da Câmara de Lisboa, conhecido por ter vencido as eleições baseado numa plataforma eleitoral que, entre diversas outras coisas, prometia uma piscina por freguesia. Três meses depois da tomada de posse de um novo governo, a maior crise política que o País sofreu resulta do facto de um político, ex-presidente do partido do governo, conhecido por sofrer de uma desonestidade intelectual crónica, ter sido pressionado a deixar os seus comentários televisivos e a remeter-se ao silêncio, por um ministro inábil e em deriva totalitária. Já anteontem, o Primeiro-Ministro, para tentar pôr fim ao ruído que ele próprio tem, com assinalável sucesso, criado, enviou uma cassete pré-gravada para as televisões passarem nos telejornais, sob a forma de direito de antena.
Experimente-se fazer esta descrição a um estrangeiro interessado pela política e o resultado não será muito diferente do de Nanni Moretti. O melhor a que podemos aspirar é mesmo um sorriso trágico. Mas o grave é que em Portugal, como em Itália, a dificuldade em explicar o que se passa reside, em larga medida, no facto de estarmos a viver num admirável, mas sinistro, mundo novo. Um mundo que está muito para além da tradicional dicotomia esquerda/direita e que já não é explicável apenas pelos instrumentos que no passado serviam para compreender o fenómeno político. É que se à deriva populista na política adicionarmos a promiscuidade despudorada entre linhas editoriais de meios de comunicação social e os interesses comerciais das empresas que os detêm e temperarmos tudo isto com um forte e inédito controlo político sobre a informação, quem sai ameaçada é a democracia liberal, que vê os seus alicerces minados.
No meio de tudo isto, a verdade é que a novela em torno do Prof. Marcelo não trouxe nada de essencialmente novo. Limitou-se a pôr a nu o modo como o actual governo tem feito um assinalável esforço de controlo quasi-hegemónico da comunicação social. O facto de, ao contrário do inefável Berlusconi, nem o dr. Santana, nem os seus amigos, serem, apesar de diversas tentativas no passado, proprietários de meios de comunicação não é, aliás, irrelevante para compreender o que se tem passado. A ambição é a mesma: limitar o pluralismo; os instrumentos necessários para o seu cumprimento é que são mais exigentes. Convém lembrar, no entanto, que o Prof. Marcelo, não vão os incautos enganarem-se, não é vítima deste jogo. Pelo contrário, é um dos seus principais jogadores.
Entre o turbilhão de acontecimentos, o resultado é, ainda e sempre, o acentuar da alienação dos cidadãos face à coisa pública e uma crescente desconfiança perante as instituições do regime, cada vez mais vistas como inconsequentes. Para fazer face a isto, é necessária uma forte tendência contra-hegemónica que junte os que levam a sério a democracia representativa e o sistema de partidos – independentemente da sua proveniência política – e que ponha fim à bandalheira em curso. Só assim será possível evitar que fiquemos demasiadamente parecidos com a Itália. E parecidos na política, que era exactamente onde não nos convinha. Como o “caso Marcelo” acabou por demonstrar, inverter o que se passa na comunicação social é a plataforma em que deve assentar este esforço regenerador. Sob pena de no futuro percorrermos o caminho italiano e, depois, nada mais nos restar do que um sorriso trágico.
artigo publicado em A Capital, 13 de Outubro