quarta-feira, outubro 27, 2004

O Plano B

Quando nada mais temos com que nos preocupar, preocupamo-nos com a imagem. O Dr. Santana Lopes não vive preocupado com a imagem, vive obcecado com ela. Das muitas marcas que, apenas em cem dias, este Governo já conseguiu imprimir em si próprio, essa é a mais indelével. Acontece que mesmo nesse domínio as coisas não têm corrido nada bem. É que, sendo verdade que não basta ser competente, é preciso parecê-lo, este governo não apenas tem revelado fortes sinais de incompetência, como, paradoxalmente, expõe essa incompetência aos olhos de todos.
Só a obsessão de São Bento com o que se diz e se escreve pode explicar que, num momento em que o País ainda vivia suspenso em saber se o Dr. Santana tem por hábito dormir ou não a sesta, uma assessora política sua tenha, num acto inédito, coligido e publicado, sob a forma de artigo de opinião, uma manta de citações a provar que este Governo é tão mau como o do Dr. Durão. Mas, enquanto os portugueses acordavam da sesta e o santanismo continuava a aprofundar a sua relação muito própria com os meios de comunicação social, já o Dr. Santana nos surpreendia com um novo dislate. Desta feita, uma ideia bizarra: para resolver os problemas dos professores com horário zero, nada melhor do que colocá-los a assessorar juizes.
As reacções não se fizeram esperar. Entre o riso e a estupefacção, houve quem sugerisse que não se falasse muito do assunto (não vá o Dr. Santana, sentindo-se ferido pelos ataques, levar a ideia avante e depois quem paga as favas são os professores) e quase todos sublinharam que era mais um exemplo do desnorte acelerado em que anda a governação. Ora, este dislate tão excêntrico pode ser uma táctica nova e fazer parte de um "Plano B", que se vai desenrolando em paralelo com o já conhecido "Plano A" (que visa o controlo e a pressão sobre o que se diz nos media), mas que não é menos grave para o funcionamento do sistema democrático.
Se a obsessão com a comunicação social é um cunho específico do primeiro-ministro, uma outra característica tem acompanhado o Dr. Santana ao longo dos tempos: a vontade de passar por cima dos meios tradicionais de intermediação. Foi sempre assim. Da rebeldia do "Pedro" aspirante a líder do PPD/PSD ao candidato autárquico destemido, esteve sempre presente essa vontade de falar directamente ao “povo”, apelando-lhe ao coração. E, verdade seja dita, talvez não haja melhor forma para chegar ao coração do “povo” do que reforçar os seus preconceitos. Mesmo se para tal for necessário fazer declarações estapafúrdias, o que, para quem tem um registo suave de convicções, não representa nenhum problema.
É que a ideia do Dr. Santana, que levaria um professor de Biologia a tirar notas para um juiz de primeira instância, sendo absurda, é igual a muitas outras perigosamente absurdas que se ouvem, por exemplo, nos autocarros. Claro que há uma diferença substantiva: as conversas de autocarro são "filhas" da vida difícil, da pobreza que resulta dos baixos níveis de escolarização e de muitos outros factores que levam à acentuada desconfiança face à coisa pública, aos seus agentes e instituições. Já no caso do Dr. Santana, um mesmo discurso só pode ser fruto de uma tentativa de se aproximar dos sentimentos de frustração das pessoas comuns para, assim, se legitimar pela única forma que lhe resta: o populismo, a ligação directa ao "povo".
Sem legitimidade eleitoral e no momento em que a legitimação do poder através da intermediação começa a dar sinais de retumbante falhanço, o caminho que resta à actual maioria é avançar para um “Plano B” – falar directamente à população. Quer seja em comunicações ao País (de que este governo tem abusado) ou em dislates que são vistos pelos fazedores de opinião como desastrados, mas que vão de encontro aos mais perversos ressentimentos do “povo”. Há três meses que sabemos que com o Dr. Santana o pior pode estar sempre para vir. E o pior pode mesmo ser um “Plano B” em acção, uma espécie de peronismo com novas roupagens e com novos instrumentos, à cabeça dos quais uma comunicação social domesticada.
publicado em A Capital, 27 de Outubro

quarta-feira, outubro 20, 2004

Velhas Fronteiras

Numa sociedade democrática, não existe forma mais brutal de privação de liberdade do que a ausência de recursos materiais. É por isso que, como lembrava, em recente entrevista à Visão, Luís Ritto (alto funcionário da UE, com responsabilidades nas áreas do desenvolvimento e da alimentação), “ninguém com fome se preocupa com a democracia”. A pobreza e a sua forma mais brutal, a fome, não são questões privadas, pelo contrário, são públicas e políticas, sendo que isso é particularmente verdade para o caso português.
Como bem demonstram os dados recentemente divulgados pelo INE, a propósito da passagem do dia “internacional para a erradicação da pobreza”, cerca de 20% da população portuguesa encontrava-se em 2001 em risco de pobreza, cinco pontos percentuais acima da média europeia. A isto acresce que o padrão de desigualdades na sociedade portuguesa – a distância entre ricos e pobres – continua a ser o mais grave de toda a União. Por outro lado, como revelam diversos estudos, depois de uma melhoria de ambos os indicadores durante a segunda metade da década de noventa, os últimos anos têm-se caracterizado por um agravamento da situação. Estes dados não serão, aliás, estranhos ao pessimismo que se tem instalado na sociedade portuguesa, bem como ao facto, revelado por uma sondagem recente da Universidade Católica, de a maioria dos portugueses pensar que a pobreza é mais extensa do que de facto ela é e, não menos grave, que, entre nós, tenderá a aumentar nos próximos anos. Julgo que é acertado afirmar que haverá poucos indicadores mais sólidos do que este, quer do mal estar nacional, quer dos erros que, nos últimos tempos, têm sido cometidos nas opções sobre o modelo de desenvolvimento a seguir em Portugal. O “discurso da tanga” tragicamente fez o seu caminho.
Na verdade, se há área governativa que desde há dois anos para cá tem sido alvo de forte ataque ideológico combinado com paralisia administrativa é a das políticas de solidariedade e de combate à pobreza. Num país como o nosso, em que a pobreza continua a revelar uma persistência insuportável, este facto é, ao mesmo tempo, exemplar do desvio ideológico da actual maioria e da sua incompetência na execução das políticas. Após 1995, com os Governos de António Guterres, Portugal encetou, a este nível, um caminho de aproximação à Europa, desenvolvendo uma nova geração de políticas sociais (à cabeça das quais surgia o rendimento mínimo garantido), que tiveram como objectivo fazer face a essa chaga social que é a pobreza. Já com o Governo PSD/PP assistiu-se, em primeiro lugar, à escolha do campo das políticas de solidariedade como espaço privilegiado de afirmação ideológica (os ataques do PP ao RMG, a que o PSD deu cobertura são o exemplo paradigmático disso mesmo), seguindo-se, depois, um abandono político da área, que resultou num marasmo dos serviços públicos responsáveis pela execução das políticas. Se a tudo isto somarmos o desinvestimento no emprego como prioridade política, o resultado é apenas um: a pobreza em Portugal volta a aumentar, envergonhando-nos a todos como sociedade.
Ao longo de trinta anos, Portugal deu passos importantes para que fossem lançadas as bases de um sistema de protecção social, simultaneamente, moderno e eficaz, mas, em apenas pouco mais de dois anos, a actual maioria tem-se encarregado de delapidar esse frágil património. As consequências estão à vista, assim como a necessidade de retomar o caminho interrompido. No entanto, no futuro, o que estará em causa não será apenas o necessário desenvolvimento das prestações, mas, também, a garantia de novos direitos e a promoção de novas solidariedades e oportunidades de inserção, bem como a expansão de serviços de apoio aos indivíduos, à família e à comunidade.
No final de 2004, quase vinte anos após a adesão à União Europeia, e com trinta anos de democracia, Portugal está ainda longe de ser uma sociedade em que o direito de se nascer rico conviva com o direito de não se nascer pobre, pelo que importa recuperar o combate à pobreza como elemento central da agenda política. Trata-se de um objectivo que nos deve responsabilizar a todos, como comunidade.
É por isso que enquanto o país deve traçar novas fronteiras, com um horizonte de modernidade, não deve, neste processo, esquecer que muitos dos problemas essenciais que temos ainda de colectivamente ultrapassar passam pelas velhas fronteiras, pelos velhos problemas – entre eles a luta contra as desigualdades e a pobreza. Este é certamente um dos desafios mais exigentes e complexos que enfrenta a sociedade portuguesa, mas, por isso mesmo, só possível de enfrentar com forte e determinado investimento político.
artigo publicado em A Capital, 20 de Outubro

quarta-feira, outubro 13, 2004

Um sorriso trágico

Nos últimos tempos, há uma imagem que me vem sistematicamente à mente quando olho para Portugal: numa das primeiras cenas do filme “Abril”, de Nanni Moretti, este, interpelado por um jornalista francês, tenta explicar o que se passa na política italiana, com a ascensão ao poder da dupla Berlusconi/Fini. A conversa perde-se num arrazoado de frases desconexas, tolhidas por justificações típicas de quem quer “pintar um quadro” simpático a um estrangeiro. Quando Moretti deixa o jornalista, fica apenas com o sorriso desconfortável e uma voz interior que o tenta convencer que as coisas não são tão más como lhe parecem. E, acima de tudo, naquilo que é o aspecto mais impressivo da cena, com a incapacidade de explicar, de um modo simples e a quem vem de fora, a realidade política italiana. Hoje, ao tentar explicar a amigos estrangeiros, o que entre nós se tem passado, dou por mim com o mesmo desconforto, face a algo que, como em Itália, parece desmoronar-se.
Atente-se a alguns aspectos da vida política portuguesa e, rapidamente, se perceberá como fugimos de um padrão de normalidade. Em apenas um ano e meio, o maior partido da oposição foi envolvido, de forma grosseira e com uma ligeireza e incompetência espantosas, num mediático escândalo de pedofilia; o Primeiro-Ministro, bloqueado na sua própria teia de incapacidades, fugiu e o Presidente da República, em lugar de chamar os cidadãos a escolher, seleccionou para o cargo o Presidente da Câmara de Lisboa, conhecido por ter vencido as eleições baseado numa plataforma eleitoral que, entre diversas outras coisas, prometia uma piscina por freguesia. Três meses depois da tomada de posse de um novo governo, a maior crise política que o País sofreu resulta do facto de um político, ex-presidente do partido do governo, conhecido por sofrer de uma desonestidade intelectual crónica, ter sido pressionado a deixar os seus comentários televisivos e a remeter-se ao silêncio, por um ministro inábil e em deriva totalitária. Já anteontem, o Primeiro-Ministro, para tentar pôr fim ao ruído que ele próprio tem, com assinalável sucesso, criado, enviou uma cassete pré-gravada para as televisões passarem nos telejornais, sob a forma de direito de antena.
Experimente-se fazer esta descrição a um estrangeiro interessado pela política e o resultado não será muito diferente do de Nanni Moretti. O melhor a que podemos aspirar é mesmo um sorriso trágico. Mas o grave é que em Portugal, como em Itália, a dificuldade em explicar o que se passa reside, em larga medida, no facto de estarmos a viver num admirável, mas sinistro, mundo novo. Um mundo que está muito para além da tradicional dicotomia esquerda/direita e que já não é explicável apenas pelos instrumentos que no passado serviam para compreender o fenómeno político. É que se à deriva populista na política adicionarmos a promiscuidade despudorada entre linhas editoriais de meios de comunicação social e os interesses comerciais das empresas que os detêm e temperarmos tudo isto com um forte e inédito controlo político sobre a informação, quem sai ameaçada é a democracia liberal, que vê os seus alicerces minados.
No meio de tudo isto, a verdade é que a novela em torno do Prof. Marcelo não trouxe nada de essencialmente novo. Limitou-se a pôr a nu o modo como o actual governo tem feito um assinalável esforço de controlo quasi-hegemónico da comunicação social. O facto de, ao contrário do inefável Berlusconi, nem o dr. Santana, nem os seus amigos, serem, apesar de diversas tentativas no passado, proprietários de meios de comunicação não é, aliás, irrelevante para compreender o que se tem passado. A ambição é a mesma: limitar o pluralismo; os instrumentos necessários para o seu cumprimento é que são mais exigentes. Convém lembrar, no entanto, que o Prof. Marcelo, não vão os incautos enganarem-se, não é vítima deste jogo. Pelo contrário, é um dos seus principais jogadores.
Entre o turbilhão de acontecimentos, o resultado é, ainda e sempre, o acentuar da alienação dos cidadãos face à coisa pública e uma crescente desconfiança perante as instituições do regime, cada vez mais vistas como inconsequentes. Para fazer face a isto, é necessária uma forte tendência contra-hegemónica que junte os que levam a sério a democracia representativa e o sistema de partidos – independentemente da sua proveniência política – e que ponha fim à bandalheira em curso. Só assim será possível evitar que fiquemos demasiadamente parecidos com a Itália. E parecidos na política, que era exactamente onde não nos convinha. Como o “caso Marcelo” acabou por demonstrar, inverter o que se passa na comunicação social é a plataforma em que deve assentar este esforço regenerador. Sob pena de no futuro percorrermos o caminho italiano e, depois, nada mais nos restar do que um sorriso trágico.
artigo publicado em A Capital, 13 de Outubro

quarta-feira, outubro 06, 2004

O cravo e a ferradura

Contrariando o que normalmente acontece, em que após as eleições os governos gozam de um merecido estado de graça, os portugueses sempre revelaram que não queriam o governo que, antes de fugir, o Dr. Durão lhes deu. Desde as sondagens feitas imediatamente após as eleições, àquelas publicadas quando o PS enfrentava a maior campanha de desacreditação de que foi alvo uma força política no Portugal democrático, o resultado foi invariavelmente um: a rejeição nas intenções de voto dos partidos da coligação. No único acto eleitoral entretanto ocorrido, o PSD e o PP coligados sofreram uma derrota estrondosa nas eleições europeias, alcançando o seu pior resultado eleitoral de sempre. Mas, algo de novo aconteceu nos últimos três meses.

Não só os portugueses continuam a rejeitar o governo, como tem ficado claro que, pura e simplesmente, Portugal não pode ter mais quatro anos com a dupla Santana e Portas a governar o país. Três meses têm sido suficientes para expor a gravidade do que se tem passado e que deve ser parado a tempo, sob pena de os danos se tornarem irreversíveis.

Mas, se é hoje inequívoca a rejeição da actual coligação, ainda não é claro qual o caminho alternativo para mobilizar os portugueses. Desse ponto de vista, o congresso do Partido Socialista representa uma responsabilidade e um dever para a liderança de José Sócrates. A responsabilidade de construir uma alternativa de poder, evitando o caminho fácil, mas inconsequente, do exercício do poder em alternância. Essa alternativa faz-se naturalmente de modernidade e de capacidade de encarar o futuro, mas faz-se simultaneamente com o peso simbólico do passado e com as lições que dele devemos saber retirar.

Há, a meu ver, uma lição que todos os socialistas deveriam retirar dos dois últimos conturbados anos da democracia portuguesa (mas porque não dizê-lo, todos os militantes de partidos políticos). Quando um partido é atacado injustamente, como o PS foi através dos ataques ignóbeis e sem face de que tem sido alvo Paulo Pedroso, a resposta tem de ser solidariedade e coesão. Se, pelo contrário, abrem brechas, os inimigos da democracia passam a saber como, explorando as dissenções internas, atacar os partidos e consequentemente minar os alicerces da vida democrática.

Mas é de futuro que os portugueses precisam. Um futuro construído sem debates fechados e encerrados antes de serem travados e um futuro em que o PS assuma a responsabilidade de não ser o partido do «sim, mas». Um partido que, obcecado com a vontade de a todos agradar, a propósito de tudo, procure dar uma no cravo e outra na ferradura. «Sim, privilegiamos o emprego e a solidariedade, mas temos de desregular e minimizar a intervenção do Estado nestes domínios. Sim, privilegiamos o crescimento económico, mas o papel das políticas públicas para este objectivo é despiciendo». A construção de uma alternativa mobilizadora não pode passar por este tipo de posicionamento.

Do mesmo modo, uma alternativa não se alimenta de debates ideológicos equívocos. A questão essencial não deve ser a de saber se o PS, para ganhar eleições, deve virar ao centro, à esquerda, para o lado, para cima ou para baixo. A responsabilidade no processo de definição de «novas fronteiras» é antes a de combinar moderação numas dimensões com propostas radicais noutras. Não apenas porque é esta a melhor forma de mobilizar o eleitorado central para vencer eleições, mas, também porque de nada serve criar divergências ideológicas artificiais, apenas para legitimar simbolicamente os novos poderes - até porque a consequência disso pode ser inesperada, nomeadamente na medida em que se dá o flanco esquerdo a outras forças partidárias.

Mas há uma dimensão fundamental por onde devem passar as fronteiras do futuro. Uma dimensão que, do ponto de vista eleitoral, pode não ser nem mobilizadora, nem compensadora. Ainda assim, uma dimensão que por imperativo ético deve ser a base em que assenta qualquer alternativa verdadeiramente transformadora da sociedade portuguesa. O combate ao populismo nas suas diversas formas. Não ceder um milímetro na defesa das instituições da democracia e dar luta sem tréguas a quem procura acentuar o descrédito da vida político-partidária é difícil e implicará a derrota em muitas batalhas. Mas, quem não estiver disposto a travar de forma decidida este combate, estará a colaborar no calvário do sistema de que faz parte.

Se uma alternativa de poder não assentar no combate ao populismo, pode até, em tudo o resto, procurar transformar alguma coisa, mas não será nunca um projecto alternativo. No futuro, essa será certamente uma linha não apenas de fronteira, mas, também, de demarcação.
artigo publicado em A Capital, 6 de Outubro