quarta-feira, novembro 24, 2004

A Escolha de Jerónimo

A “inclinação consensualizada” do comité central para escolher Jerónimo de Sousa como secretário-geral do PCP foi recebida com um rol de críticas. No essencial foi dito que esta opção acentuaria o declínio eleitoral; a nova liderança representava uma vitória da linha “cunhalista” e do sector ortodoxo (epíteto que, curiosamente, o candidato refutou); e que o PCP seria cada vez menos um Partido de poder. Contudo, estas afirmações podem pecar por precipitadas.
Antes de mais porque o declínio eleitoral do PCP apesar de contínuo não tem sido tão acentuado como é habitualmente afirmado. É verdade que, se nada for feito, a erosão eleitoral do PCP, por força da evolução demográfica, é apenas uma questão de tempo. No entanto, comparado com os seus congéneres da Europa do Sul, o PCP tem resistido relativamente bem.
Quando Carvalhas sucedeu a Cunhal, o tempo era de escolher entre renunciar a parte da identidade do partido, para ambicionar ser poder ou manter a pureza de princípios, sacrificando o exercício do poder. Carvalhas procurou traçar uma bissectriz entre renovação e ortodoxia, projecto que acabou por não agradar a nenhuma das partes em contenda. Os resultados foram vagas sucessivas de fortes convulsões internas e um evidente delapidar do potencial de transformação do PCP em partido de poder – designadamente pelo abandono de um número muito significativo de autarcas, de quadros e de membros do sector intelectual. Eleitoralmente o Partido caiu, mas resistiu.
Se olharmos para o caso francês, mas, também, para o italiano e espanhol, vemos que a modernização do discurso dos partidos comunistas e a participação em experiências de governo foi feita à custa da perda de muitos votos e de uma indiferenciação crescente face aos partidos “catch-all” de centro-esquerda. O PCP, pelo contrário, conservou algum eleitorado e fê-lo porque manteve uma das suas características identitárias fortes: ser, entre outras coisas, um partido nacionalista e conservador. São em parte estas características que fazem com que o PCP continue enraízado em alguns segmentos da população, levando a que, no contexto europeu, seja um dos partidos com o eleitorado mais fixo. Um eleitorado que está, cada vez mais, confinado às populações envelhecidas dos meios rurais (ao Sul), aos pensionistas, aos funcionários públicos e ao que resta de segmentos operários nos meios urbanos. A forte ancoragem nestes sectores traduz-se no peso crescente da CGTP no quadro do Partido.
Mas há o reverso da medalha: o falhanço da abertura do partido e as suas consequências eleitorais. O eleitorado dos grandes centros urbanos, ligado às profissões intelectuais que, nomeadamente, nos distritos de Lisboa e do Porto, mas, também, em Setúbal representava uma fatia importante do voto PC, tem migrado, em doses diferentes, para o PS e para o Bloco.
Face a este contexto, restam ao PCP dois caminhos.
Um primeiro, que é a opção por um populismo nacionalista de esquerda. Jerónimo de Sousa, pelas suas características e pelo que já se viu em campanhas passadas, pode protagonizar uma estratégia assente num discurso anti-sistema, anti-europeu e voltado para os excluídos do desenvolvimento. Há, hoje, para um partido que não ambicione ser poder, um nicho de mercado eleitoral assente em dar voz aos mais diversos descontentamentos sociais. Além de que o facto de o PP se ter transformado num partido de poder, faz com que haja franjas deste eleitorado órfãs. No entanto, este caminho, ainda que estancasse ou até invertesse alguma erosão eleitoral, colocaria em causa a áurea de respeitabilidade de que o PCP ainda goza entre a esquerda portuguesa. Seria mais difícil transformar o PCP num partido essencialmente populista, do que foi transformar o velho CDS num partido desse tipo.
Mas, há um outro caminho, em que seriam dados passos na tão reclamada abertura e na transformação em partido com vocação de poder, e não apenas de resistência. Provavelmente, esta opção implicaria, no médio prazo, alguma erosão eleitoral, mas teria a vantagem de, após quase trinta anos de afastamento do aparelho de Estado, permitir ao PCP colocar o que resta dos seus quadros em lugares de direcção. Por paradoxal que possa parecer, Jerónimo de Sousa é um bom líder para a abertura do PCP. O facto de ter um curriculum insuspeito de “desvios de direita” permite-lhe mais facilmente, ao contrário de Carvalhas, protagonizar a modernização do PCP. É conhecida aliás, a tendência para serem os elementos à partida mais ortodoxos a darem passos para as aberturas mais inesperadas.
Por permitir vários caminhos, a escolha de Jerónimo de Sousa é, do ponto de vista do PCP, acertada. Resta saber se Jerónimo estará disposto a fazer escolhas difíceis e se entre manter tudo na mesma e deixar que o tempo acabe com o PCP ou perder influência eleitoral mas ganhar alguma influência política de facto, escolherá a segunda hipótese. O problema central do PCP não é, por isso, ter escolhido Jerónimo, mas, sim, o facto de, provavelmente, ser demasiado tarde para que possa ter uma estratégia, já que tudo o que é possível fazer é minorar os danos do passado.
publicado em A Capital, 24 de Novembro

quarta-feira, novembro 17, 2004

O Drama do PSD

Em Barcelos, ao longo de três dias foi sempre assim. Em todas as intervenções esteve sempre presente o queixume, a lamúria. O Dr. Santana por três vezes falou para confessar que se sente incompreendido, mal tratado pela imprensa. Os seus ministros naturalmente acompanharam-no nas queixas – uns de forma mais convicta, outros menos. Nunca visto. Este comportamento revela a fragilidade em que vive a coligação. Contudo, esconde aspectos estruturais, mais determinantes do estado em que se encontra o PSD e o Governo.
Antes de mais, aquilo que tem sido muitas das vezes sublinhado e que atingiu a sua plenitude com o “caso Marcelo”: a preocupação excessiva do Governo com o que dele se diz. Preocupação que é filha do facto de Santana Lopes ser produto da imagem, da qual vive e depende. Para o primeiro-ministro, a imagem é o principal capital político, mas, também o elemento compensador do que não tem – capacidade de definir um rumo político e estabilização desse mesmo rumo. Ainda que, por paradoxal que possa parecer, essa obsessão não se venha traduzindo numa boa imagem pública deste Governo. Têm razão os dirigentes do PSD/PPD quando se queixam que são mal tratados pela imprensa, mas importa perceber as razões porque tal acontece.
É um facto que este Governo não usufruiu de um “estado de graça”. Acontece que o precedente também não. Engane-se quem pensa que é culpa de Santana. O mal-estar é anterior, radica nas eleições legislativas de 2002 e no tipo de vitória então alcançado. Com uma maioria construída a posteriori, baseada numa coligação indesejada e num programa político escondido, foi dado um passo importante para a quebra da relação de confiança com os portugueses. Mas a razão essencial para explicar o mal-estar que tem acompanhado esta governação prende-se, acima de tudo, com o tipo de distribuição geográfica e social dos votos no PSD.
Até Durão Barroso, nunca um primeiro-ministro havia perdido as eleições no círculo onde era candidato – no confronto directo entre os dois candidatos a primeiro-ministro, o PSD perdeu para o PS no Distrito de Lisboa – e, essencialmente, nunca nenhum governo havia sido eleito com derrotas ou votações baixas nos concelhos urbanos do Litoral. Do Norte ao Sul foi isso que aconteceu ao PSD em 2002, tendo-se repetido, de modo particularmente intenso, nas europeias deste ano.
Este afastamento em relação eleitorado urbano apenas significou a consolidação, mesmo num contexto de vitória eleitoral, daquilo que vinha acontecendo desde o fim do cavaquismo. O PSD/PPD tem perdido uma fatia muito importante do seu eleitorado, precisamente a sua base nas classes médias e na maioria silenciosa que foi crescendo e aumentado o seu poderio económico ao longo dos trinta anos de democracia. O drama do PSD é que vive, hoje, acantonado num eleitorado rural, envelhecido e na pequena burguesia, cuja influência social é inferior ao seu peso eleitoral. É isto que faz com que ao PSD seja possível ganhar eleições, sem conquistar, contudo, a opinião pública. Nos espaços onde se formulam os juízos sobre a governação, o PSD de hoje ou está ausente ou pouco presente.
A ausência de “estado de graça” resulta disso mesmo e a barreira de críticas a que este Governo e o anterior estiveram sujeitos serve, ao mesmo tempo, para revelar que, em Portugal, governar sem uma relação de confiança com o eleitorado dos grandes centros urbanos é, em larga medida, um projecto fracassado à partida.
Mas este óbice poderia ter sido ultrapassado. Uma vez no poder, era possível prometer um casamento, mais ou menos de conveniência, ao eleitorado urbano. Ora, desde o início, a coligação pareceu teimar em fazer exactamente o oposto. O discurso da tanga, a colagem despropositada e ineficaz à guerra do Iraque e a crescente atrelagem do PSD ao radicalismo do PP produziram o efeito contrário e consolidaram o divórcio entre “elites” e Governo. O PSD de hoje – o PSD de Durão e Santana – pouco diz aos sectores mais dinâmicos da sociedade portuguesa.
Nomeado primeiro-ministro, o principal desafio de Santana deveria ser recompor essa relação, aproximar o PSD e o Governo do eleitorado que é moldado pela opinião publicada e que molda a opinião pública. No entanto, nestes últimos três meses tem-se assistido ao acentuar do divórcio. Com a inabilidade na gestão política quotidiana e a escolha dos media, simultaneamente, como adversário e campo preferencial de acção, Santana tem conseguido apenas acentuar a separação entre o partido e o eleitorado central para a construção de um projecto de poder consequente.
Santana bem pode falar em “confiança”, em “geração Portugal” ou tentar alargar a actual coligação a outras forças políticas, mas o seu drama é que os sectores sociais que farão o futuro do país já não ouvem este PSD. No entretanto, resta saber se a oposição já refez a relação com o eleitorado urbano, precisamente aquele que lhe infligiu uma pesada derrota nas autárquicas de 2001. Como revelam os dois últimos anos, chegar ao poder sem essa relação recomposta de pouco ou nada serve.
publicado em A Capital, 17 de Novembro

quarta-feira, novembro 10, 2004

Apoiará Cavaco o PSD?

As eleições presidenciais estarão omnipresentes durante o Congresso do PSD do próximo fim de semana. Não importa que, contrariando os timings definidos quando era candidato a candidato, Santana Lopes tenha remetido na sua moção o tema para o final do primeiro semestre de 2005. Pode a direcção do PSD tentar assobiar para o lado e procurar fazer do congresso um momento de catarse colectiva, de união em torno do líder para dar um novo fôlego ao governo. Pode tentar tudo isso, mas, por mais que o faça, as presidenciais e o Dr. Cavaco vão estar sempre à espreita. É que se a prioridade do PSD é ganhar as próximas legislativas, neste percurso, as eleições mais relevantes, por serem as mais complicadas, são precisamente as presidenciais.
Com as sondagens a dar uma ajuda preciosa, Cavaco aparece sistematicamente como o candidato preferencial da direita. Contudo, e enquanto os cavaquistas lançam livros sobre o professor e preparam o terreno, a questão mais relevante não é saber se o PSD apoia a candidatura de Cavaco, mas, sim, se o candidato Cavaco apoiará este governo PSD/PP. Até porque, verdade seja dita, o PSD, uma vez lançada a candidatura do ex-primeiro-ministro, ver-se-á sempre, com maior ou menor entusiasmo, obrigado a apoiá-la. O problema está, por isso, em saber o que fará Cavaco com o apoio da coligação governamental
Neste contexto, a candidatura de Cavaco enfrenta um dilema: ou se distancia do governo e aumenta as suas possibilidades de vitória ou posiciona-se do lado da actual coligação e perde. Acontece que a primeira opção não é fácil nem para o candidato, nem muito menos para os partidos que eventualmente o venham a apoiar.
Na verdade, o distanciamento face ao Governo pode revelar-se para Cavaco uma estratégia à partida atraente. Contudo, a atracção inicial acarretará posteriormente complicações. Se se posicionar ao lado do governo pagará o preço da baixa popularidade deste, se se distanciar da coligação ficará sem estrutura no terreno e sem o apoio mobilizado de quem hoje manda nos partidos de direita. É que é muitas das vezes esquecido que sem uma máquina partidária bem oleada, dificilmente se realizam campanhas eleitorais vitoriosas em Portugal. Ora Cavaco precisa do apoio da “máquina” do PSD, mas, ao mesmo tempo, terá de se distanciar desse apoio. Nessa altura, o “aparelho” fará contas à vida e procurará perceber se prefere apoiar Cavaco e com isso ajudar a uma inevitável amplificação das críticas ao Governo ou, pelo contrário, apostar numa candidatura à partida perdedora mas que garanta a solidariedade com a coligação.
Na hora da verdade, o que estará em causa para o PSD, e também para o PP, é saber se prefere ter a hipótese de ter um Presidente ou, em alternativa, passados poucos meses, almejar ganhar as legislativas. Com este PSD e com Cavaco candidato, os dois objectivos dificilmente serão alcançados.
A escolha, que o Congresso do PSD não debaterá, mas estará omnipresente, é, por isso, entre criar as hipóteses para que um seu militante, mas a quem o partido já nada diz, esteja em Belém ou, em alternativa, permitir que o PSD tenha melhores condições para disputar as próximas legislativas e para que consequentemente, em caso de vitória, possa distribuir o poder por milhares de militantes.
Ao contrário da escolha do Governo, a eleição do Presidente da República serve ao eleito, mas de pouco ou nada serve a quem o elegeu e muito menos às máquinas partidárias que o carregam aos ombros. O Dr. Santana sabe bem disso e tudo fará para que o candidato do PSD não seja Cavaco. O seu futuro como primeiro-ministro depende em larga medida da capacidade de encontrar outro candidato presidencial, um candidato solidário com o seu governo, mesmo que esteja à partida derrotado. Resta saber se há alguém disponível para se sacrificar pelos Drs. Santana e Portas. Cavaco não o fará certamente.

P.S.
Os problemas da primeira Comissão Barroso resultaram, em larga medida, de uma coisa singela: a transferência para Bruxelas da patetice típica da vida política italiana. O que o Senhor Buttiglione fez foi apenas dar à Europa um exemplo do que é, no dia a dia, a actividade política em Itália. Com a segunda Comissão Barroso este problema parece ter ficado resolvido. Do Senhor Frattini, político mais experimentado e menos tonto, não se esperarão os mesmos dislates. No entanto, há algo de muito grave que permanece: a atribuição a um membro do Governo Berlusconi do pelouro da Justiça e Assuntos Internos. Se há área política em que a Europa não precisava da contribuição do Senhor Berlusconi era precisamente esta. Ao mesmo tempo que, com esta escolha, a Comissão fica sob a suspeita de não querer desenvolver mecanismos judiciais europeus que se podem tornar particularmente incómodos para o Cavalieri. Com tantos pelouros, qual a razão para ser exactamente este o atribuído a Itália? Só a retribuição do apoio dado por Berlusconi a Barroso o pode explicar. Há amizades que saem caras.
publicado em A Capital, 10 de Novembro

quarta-feira, novembro 03, 2004

Sinto-me Enganado

"Alguma vez tiveram a sensação de terem sido enganados?", perguntava Johnny Rotten no final de um concerto dos Sex Pistols, num misto de raiva e ironia, como que para desmascarar a "grande fraude" que era a atitude da sua banda. Hoje, quando escrevo, numa altura em que se desconhecem os resultados das eleições presidenciais norte-americanas e independentemente destes, é também assim que me sinto: enganado, defraudado.
Antes de mais, enganado pela fraude eleitoral em que assentou a vitória de George Bush há quatro anos. Não apenas pela fraude em si, mas pela forte discriminação dos eleitores negros em que esta assentou. Numa sociedade com um historial de segregação como a norte-americana, este facto é particularmente violento.
Mas enganado também porque, depois de uma vitória ferida de ilegitimidade, o descalabro da administração Bush não mais parou. O pós-11 de Setembro deixou claro que esta administração tinha um propósito forte: colocar em causa a tradição norte-americana de respeito pelas liberdades individuais e predomínio da lei. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Patriot Act e com a guerra do Iraque, levada a cabo à margem do direito internacional, e que, pelas mentiras em que assentou, colocou também em causa o princípio da "confiança", em que se devem basear as sociedades decentes.
No entanto, o que se tem passado em Guantánamo e o que se passou em Abu Ghraib são, provavelmente, as nódoas mais brutais que a administração Bush carrega. A superioridade moral da democracia baseia-se, em larga medida, na garantia inabalável dos direitos de todos, especialmente dos que a atacam. O facto de haver um número indeterminado de indivíduos detidos em Guantánamo, violando a Convenção de Genebra e sem qualquer direito nem garantia, envergonha qualquer democrata e não é digno dos princípios em que assenta o sistema político norte-americano. Já as imagens da prisão de Abu Ghraib falam por si. É que as expectativas face ao comportamento de um país democrático devem ser incomensuravelmente mais elevadas do que as que aplicamos a uma qualquer ditadura (seja a Cuba de Fidel ou o Iraque de Saddam), pelo que a forma como a administração Bush tem lidado com os que, de uma forma ou outra, terão atacado os EUA, não só é especialmente grave, como compromete a sua própria legitimidade democrática. Se a isto somarmos o tom messiânico que Bush sistematicamente escolhe e a permanente confusão entre convicções religiosas dos membros da administração e a sua prática política, temos um contexto em que alguns dos alicerces de uma sociedade liberal são postos em causa.
Ainda assim, a consequência mais dramática de quatro anos do Governo Bush terá sido a forte polarização e radicalização da agenda política, tendência que contagiou todo o mundo ocidental. Muito por força do papel dos neo-conservadores e de modo particularmente intenso desde a guerra no Iraque, foi estabelecida uma agenda política radical e afastada do chão-comum que caracteriza a política do mundo anglo-saxónico. Estes efeitos fizeram-se sentir um pouco por toda a Europa, e naturalmente também em Portugal. A guerra no Iraque é, na política internacional, o facto mais relevante desde a queda do Muro de Berlim e, como aquando do fim dos regimes de Leste, acarretará importantes transformações nas clivagens ao nível da política doméstica dos Estados europeus. Portugal não fugirá à regra.
Mas o que estes quatro anos deixaram absolutamente claro é que a política norte-americana não é, de modo algum, um assunto dos norte-americanos. A sua influência, bem como as consequências das opções tomadas nos EUA, fazem sentir-se de forma clara em todo o mundo. Ainda assim, são apenas os americanos que escolhem quem os deve governar, colocando a nu que há, hoje, uma clara distância entre o exercício do poder e a sua legitimidade democrática. O facto de o direito ao voto se cingir apenas ao país onde vivemos, numa altura em que o essencial das decisões políticas ultrapassa a esfera do Estado-nação, é bem reveladora da debilidade do exercício democrático de escolha nos nossos dias. É por isso que, pese embora a política norte-americana seja, em diversas dimensões, uma coisa que a nós europeus é estranha – como revelaram os debates presidenciais, assentes em regras patéticas, ou o tipo de ataques pessoais, impensáveis numa sociedade decente – eu sinto-me enganado por não ter podido votar. Se o pudesse ter feito, votaria contra Bush, em John Kerry. A favor gostava mesmo era de poder votar em Bill Clinton. Mas, o voto é, quase sempre, a escolha de um mal menor. O que, aliás, não é pouco.
publicado em A Capital, 3 de Novembro