quarta-feira, dezembro 29, 2004

O tempo da memória

O ano que está para acabar teve uma característica distintiva: o seu tempo, o ritmo a que passou. Bem sei que há uma urgência que nos leva a dizer o mesmo no fim de cada ano que passa. Mas, tendo a acreditar que neste caso não terá sido assim. Em 2004, combinaram-se os tempos demasiado velozes, com os tempos lentos e persistentes. Isto porque neste ano, o modo como percepcionámos os acontecimentos e os transformámos em memória foi, em si, diferente de um passado não muito distante.
2004 foi, é verdade, particularmente fértil em episódios políticos e em casos e eventos que emocionaram o país. Em todos os momentos houve, no entanto, um aspecto marcante: a velocidade com que foram percepcionados e rapidamente substituídos pelo acontecimento seguinte. Hoje, não apenas só “acontece” o que é passível de ser apresentado enquanto escândalo, como o que “acontece” é impossível de ser seguido na totalidade por quem quer que seja. Antes de mais, pelos próprios emissores das notícias, os jornalistas; mas, também, pelos receptores, os cidadãos; e, finalmente, naquilo que é o elemento mais extraordinário deste ritmo, por quem deve reagir às notícias, os visados directamente ou os agentes que se têm de posicionar perante estas (designadamente os políticos).
O efeito deste tempo é que cada acontecimento, quando visto isoladamente, torna-se irrelevante e é ultrapassado pelo facto seguinte. A consequência é a ausência de memória colectiva, que leva a que os novos episódios percam o seu contexto ou, naquilo que é uma forma extrema, mas muito frequente, a mesma notícia seja dada mais do que uma vez, com algum espaçamento no tempo, como se de uma novidade se tratasse. No meio de tudo isto, a verificação racional e sequencial do que acontece torna-se uma impossibilidade, abrindo o campo para um debate público baseado nas emoções, nos preconceitos, na difamação e na irracionalidade.
Dois exemplos que confirmam esta ideia: o “processo Casa Pia” e a curta história política deste Governo.
No primeiro caso, o ritmo alucinante da informação, sem que tenha sido possível separar o que são factos daquilo que são meros boatos ou mentiras puras, gerou, da parte do receptor, uma incapacidade de destrinçar o que era ou não verdade. Para além do mais, dificilmente alguém foi capaz de acompanhar as consequências e a sequência das histórias que foram sendo dadas. No “processo Casa Pia”, a ausência de memória levou frequentemente a que uma notícia tenha sido desmentida para, mais tarde, voltar à tona, como se de uma novidade se tratasse, levando a que quem, num segundo momento, quisesse desmentir o que já antes havia desmentido, o tenha feito numa altura em que já ninguém tinha presente a notícia em causa. No fim, o que ficou foi apenas um sentimento generalizado de desconfiança face a tudo e todos. É este o ritmo que cria a terra fértil para os canalhas medrarem.
No caso da demissionária experiência governativa, a cadência alucinante de casos levou a que seja difícil recordar o que se passou com exactidão. Desde finais de Julho até agora, passaram pouco mais de cinco meses, no entanto, a ideia que fica é que este Governo durou bastante mais. Aqui, o tempo lento resultou do facto deste Governo ter sido liderado por personalidades que são elas mesmas filhas do ritmo da comunicação nos nossos dias.
Desde o início, Santana Lopes e Paulo Portas optaram por hiperbolizar o próprio contexto em que se moviam, criando uma sucessão interminável de factos que tinham também como objectivo apagar a memória dos capítulos anteriores. Acontece que entre a voracidade com que se sucederam os episódios, o que acabou por ficar foi, acima de tudo, a ausência de memória sobre cada um deles, acompanhada por uma desconfiança difusa sobre as lideranças. Santana Lopes e Paulo Portas não tentaram contrariar o ritmo em que vive a comunicação nos nossos dias, nem procuraram fazer dele o contexto em que se moviam. Pelo contrário, ambicionaram governar acelerando-o ainda mais. No fim, foram tragados pela sua própria táctica.
O tempo de 2004 leva a que seja difícil recordar com exactidão tudo o que se passou ao longo do ano. O ritmo a que fomos substituindo um escândalo pelo escândalo seguinte e a que nos fomos esquecendo da notícia de cada dia, para logo, em seu lugar, colocarmos uma outra, criou-nos um vazio na memória. É por isso que, no fim de 2004, e quando os discursos sobre a inviabilidade do país abundam, convém ter presente que se não formos colectivamente capazes de recordar o passado, estaremos condenados a repeti-lo. Contrariar o ritmo a que substituímos o passado e ter memória sobre o que se passou de facto é, um primeiro passo, para podermos, no futuro, ter um país decente. Um primeiro passo que é decisivo, mas, também, difícil de ser dado.
publicado em A Capital

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Os adesivos

A expressão “adesivismo” não é nova na história política portuguesa. Remete para o processo de rápida conversão em massa quer de políticos, quer da imprensa monárquica ao regime republicano saído da revolução de 1910. No passado, o “adesivismo” foi um fenómeno que se confundia com a desideoligização, o pragmatismo e as relações clientelares e de patrocinato que predominavam na política portuguesa do final do século XIX e início do século passado. Hoje, transvestido de formas por vezes menos explícitas, o “adesivismo” continua a ser um fenómeno muito presente na política e na sociedade portuguesas.
Com o Partido Socialista a liderar todas as sondagens e, essencialmente, com resultados esmagadores na resposta à pergunta, “quem acha que vai vencer as próximas eleições?” (que a esta distância é um indicador mais fiável do que a intenção directa de voto), assiste-se a um regresso em peso do fenómeno dos “adesivos”. É evidente que, para além do claro cheiro a vitória e a poder que se sente em torno do PS, há uma dimensão explicativa para que tal aconteça. O descalabro governativo, a falta de credibilidade e a instabilidade institucional permanente que se fizeram sentir ao longo destes tempos de governação de coligação de direita criaram, em grande parte da sociedade portuguesa, uma necessidade quase absoluta de estabilidade – o que faz com que muitos se virem para o PS, não porque estejam convictos das virtualidades desta opção, mas, sim, porque se querem ver livres de Santana Lopes e do actual governo.
Contudo, numa altura em que a estabilidade parece ser a aspiração política dominante na sociedade portuguesa, o facto de nos últimos tempos se ter assistido a um conjunto de aproximações improváveis de notáveis ao PS (ao qual há que somar um sem número de administradores de empresas públicas ou quadros dirigentes e intermédios da administração), acarreta consequências nefastas para a esfera política. Se é verdade que esta tendência é um sintoma claro da probabilidade do PS formar governo apoiado numa maioria absoluta, esconde, também, obstáculos para que, posteriormente, o exercício da governação seja consequente com o pedido que agora é feito ao eleitorado.
Antes de mais porque os “adesivos” são filhos de uma característica típica das elites portuguesas: a acumulação de estatutos contraditórios. Numa democracia consolidada, o fenómeno dos “adesivos” é menos intenso do que em Portugal porque, pura e simplesmente, não há lugar para a figura do “independente” como nós o conhecemos – universitário de manhã, comentador ao meio dia, empresário à tarde e, invariavelmente, amigo do poder de cada momento. Do mesmo modo que a separação entre elites da administração e pessoal político é mais clara. Em última análise, em Portugal, de cada vez que há uma mudança de poder, assistimos à triste e despudorada cena do “adesivismo” porque, frequentemente sob a capa de “independentes”, se esconde uma marca distintiva do País, a fraca autonomia entre os diferentes segmentos das elites e a fraquíssima cultura de pluralismo – tudo traços de uma cultura política paroquial.
O problema essencial é que agora, como no tempo da monarquia constitucional, ou da primeira república, os “adesivos” – que farejam o cheiro do poder com alguma antecipação – são um factor de bloqueio das transformações que a sociedade portuguesa precisa de levar a cabo. Acima de tudo porque, pela sua natureza, temem as mudanças e as transformações, privilegiando invariavelmente o conservadorismo, o imobilismo e a garantia dos seus lugares e posições relativas. Numa altura em que o país precisa de estabilidade institucional para que seja possível mudar alguma coisa, paradoxalmente os sintomas de que essa estabilidade institucional pode chegar em Fevereiro trazem as causas da sua própria inconsequência. É que sendo verdade que uma vez no poder quem queira reformar, tem de desagradar a muitos. Não é menos verdade que para conquistar o poder livre de amarras é preciso, nesta altura, saber recusar apoios. Apoios que aparentando trazer o cheiro sedutor da vitória, escondem as sementes de um país que continuará pouco plural e muito imobilista.
publicado em A Capital

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Um mundo de aventuras

Um extraterrestre com sólida formação em ciência política e em relações internacionais que aterrasse por acidente em Portugal teria dificuldade em perceber o que por cá se tem passado. Se calhasse chegar na passada sexta-feira e ficasse até ontem, deixar-nos-ia certamente perplexo. É verdade que a nossa realidade há muito que é, de si, desafiadora da racionalidade. Desde Julho, contudo, a tendência intensificou-se. Olhar para a política portuguesa e conseguir encontrar nela uma réstia de lógica na acção passou a ser um exercício de enorme dificuldade. E o mais estranho é que, no essencial, a culpa não tem sido nem das circunstâncias, nem da estrutura. A culpa deve ser assacada, quase em exclusivo, aos agentes.
Desde que Santana Lopes se viu nas vestes de primeiro-ministro, aquilo a que se assistiu foi apenas à inconstância. Ainda assim, a cada episódio novo, quando as coisas davam sinais de que não estavam a correr nada bem, houve sempre alguém para afirmar: “ele com o tempo aprende”, ou “isto tem sido assim, mas o tipo tem uma intuição fabulosa”. Mesmo depois do descalabro, os mais benévolos continuam a insistir que “em campanha é imparável, gera uma empatia com as pessoas...”. Acontece que a realidade tem-se encarregado sempre de demonstrar que com Santana Lopes nada é como havia sido prometido – antes de mais, os mitos sobre o próprio. Com este Governo, houve, de facto, ”uns demónios que se soltaram”, acontece que quem abriu a caixa onde estavam escondidos foi o próprio primeiro-ministro. E o mais espantoso é que fê-lo quase sozinho, apenas com a ajuda de uns poucos. Tinha razão, por isso, Dias Loureiro quando confessou que sugeriu ao “Pedro” que se demitisse, sugestão que o “Pedro” primeiro aceitou, mas, depois, contrariando a sua própria intuição, rejeitou.
Neste contexto, Sampaio, por uma vez com total clareza, limitou-se a revelar o óbvio – aquilo que a larga maioria do país, a totalidade da oposição e grande parte do PSD e mesmo do governo, já sabia. E o óbvio é que Santana Lopes teve, da parte do Presidente, as condições para governar mas, pura e simplesmente, faltou-lhe a arte e o engenho para o fazer, envolvendo-se e envolvendo as instituições numa série de episódios que colocavam em causa a credibilidade do Governo e a sua capacidade para enfrentar a crise que o País vive.
Mas, os espíritos mais generosos pensaram que uma vez dissolvida a Assembleia, a música mudaria e teríamos o verdadeiro Santana Lopes. Mas enganaram-se novamente, é que a confusão, uma vez instalada, não mais abandonou a coligação, provando, simultaneamente, que os demónios quando se soltam tendem a não se ir embora e que, mesmo a posteriori, a coligação continuava disposta a dar ao Presidente justificações para a decisão tomada.
A novela dos últimos dias tem sido paradigmática: primeiro PSD e PP concorriam coligados, depois queriam dar um tempo para pensarem, para logo depois concorrerem separados, ainda por mais uma vez coligados, para finalmente, até informação em contrário, concorrerem separados, com a promessa de se coligarem depois. No meio disto, afirmações sistemáticas de que o adversário do PSD não era o Presidente, logo acompanhadas por críticas a Jorge Sampaio. Num dia, discordavam, mas respeitavam a decisão do Presidente. No dia seguinte, o Governo demitia-se porque o Presidente havia acusado o primeiro-ministro de instabilidade e incompetência. Confuso, não é?
A tentativa de encontrar um racional por detrás deste comportamento desafia os espíritos mais lúcidos. Por exemplo, no processo de decisão que há duas semanas está em curso é difícil encontrar uma táctica, ou uma estratégia, o que se vislumbra é apenas um conduta errática – que é, afinal, a imagem de marca de Santana Lopes. Com agentes políticos destes, é complicado tornar a realidade perceptível ou arriscar construir cenários sobre o que irá acontecer na política portuguesa. Recorra-se a manuais de ciência política, ao método comparativo e a experiências estrangeiras e não se encontrará grandes pistas para perceber o que por cá se passa.
Há quatro meses que o país vive como num mundo de aventuras, em que a realidade é dos vários factores em jogo, aquele que tem sido mais maltratado. Com Santana Lopes ao leme, aquela é sempre mutável, inconstante e maleável. Mas a uma relação muito particular com o real, há ainda que juntar a imprevisibilidade como motor da acção política. Enquanto isto acontece, a imagem da política e dos seus agentes vai-se degradando aos olhos dos cidadãos, quem sabe se de modo irreversível. E, acima de tudo, vai ficando esquecido que a gestão da coisa pública não é uma aventura errante. Regressar à normalidade, dignificar as instituições e introduzir racionalidade na acção política passou, nos últimos tempos, a ser a ambição primeira para o sistema político português. O que parecendo evidente, ameaça ser muito exigente.
publicado em A Capital

quarta-feira, dezembro 08, 2004

Em busca de estabilidade

Os sistemas políticos, por vezes, têm uma inusitada propensão para o abismo. Trinta anos depois do 25 de Abril, pode ser esta a situação da democracia portuguesa. Com as instituições e a classe política descredibilizadas aos olhos dos cidadãos; uma sociedade civil inexistente ou, quando não o é, quase totalmente dependente do Estado; com a economia e a sociedade bloqueadas e as esferas de intermediação (designadamente a comunicação social) quase sem mecanismos de auto-regulação e rendidas à concorrência desenfreada, é para o abismo que podemos estar a caminhar. Acontece que também há momentos em que os sistemas políticos se revelam e procuram contrariar as tendências fortes em que se vão enredando, até porque os eleitores têm pânico do vazio.
De forma mais ou menos consciente, quando em Fevereiro os portugueses forem chamados a votar terão isso em mente, e é neste contexto que poucas palavras passaram a ter um valor político tão fundamental como a estabilidade. De um extremo do espectro partidário ao outro, todos os partidos partirão para as eleições prometendo ser um “referencial e um factor de estabilidade”. É verdade que desde que o desvario santanista se instalou no país a necessidade se tornou mais premente, mas há muito que o sistema político o requeria. Contudo, dá-se o caso da estabilidade não ser algo que se proclama ou que assenta em declarações de fé. Pelo contrário, constrói-se.
Não tenhamos ilusões. Seis anos passados da vitória de Pirro de António Guterres, com dois orçamentos limianos e as duas coligações incidentais de direita que se seguiram ficou claro que, com uma maioria relativa de quem quer que seja, o pântano ameaça ser o habitat natural do sistema político português. O que à primeira vista pode aparentar ser um acidente de percurso, que o tempo resolve, quando ganha lastro, assume contornos perigosos e rapidamente se transveste em final de festa weimariana.
Se, em Fevereiro, novamente nenhum partido ganhar com maioria absoluta, o país corre o risco de chegar a 2009 sem conhecer a face de um governo que possa governar quatro anos seguidos, de acordo com o seu próprio programa eleitoral. Se tal acontecer, estaremos perante já não um mero resultado eleitoral, mas sim o princípio de uma alteração de regime. O tom sebastiânico das últimas intervenções de Cavaco Silva leva, aliás, a crer que este ambiciona ser actor na próxima fase. Uma fase de governos politicamente fracos, com intervenção presidencial forte.
O cenário que se vislumbra é particularmente complexo, tendo em conta que o PS – que não apenas lidera todas as sondagens existentes como, no que é mais relevante, esmaga nas respostas à pergunta “quem acha que vai ganhar?” – tem dificuldades acrescidas em ultrapassar o limiar da maioria relativa. Mesmo com a votação dos partidos de direita no seu mínimo histórico – o que aconteceu nas últimas europeias – há um conjunto importante de círculos eleitorais onde a margem de progressão socialista está bloqueada à direita. Ao mesmo tempo que onde o PS mais pode crescer em número de mandatos é nos distritos que tradicionalmente votam mais à esquerda.
Face a este cenário, o PS e José Sócrates enfrentam um dilema de difícil superação. Têm de inspirar respeitabilidade institucional e estabelecer pontes com sectores relevantes para o funcionamento da economia – da banca, às grandes empresas – e, simultaneamente, não podem dar o flanco à esquerda, abdicando da carga simbólica e das preocupações que mobilizam este eleitorado. Não ir atrás do “canto de sereia” de todos aqueles que tendem a pender para o lado de quem aparenta ir ganhar é, neste momento, não apenas uma necessidade com razões substantivas, como também um requisito táctico.
Com um governo minoritário do PS, ou com uma coligação à esquerda, quer seja governamental, quer de incidência parlamentar, as condições de governabilidade serão reduzidas. Importa, por isso, criar, antes das eleições, as condições efectivas para garantir a estabilidade. Para tal, é preciso que o PS progrida eleitoralmente nos distritos onde o Bloco e o PCP são mais competitivos – em Lisboa, no Porto e em Setúbal.
Nas próximas eleições, ganhar pode ser pouco para o que o país precisa. Sem um governo forte e sem recuperar a estabilidade perdida, dificilmente será possível contrariar alguns dos bloqueios que a sociedade portuguesa enfrenta e recuperar parte da credibilidade institucional entretanto desaparecida. Um programa de governo, mesmo que realista e sem as tentações maximalistas que tudo deitam a perder, pode não servir de nada, se antes não houver a consciência de que para ganhar sozinho, não basta olhar apenas para um dos lados.
publicado em A Capital

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Os políticos e os competentes

No meio da desagregação que o Governo tem demonstrado, o Prof. Cavaco resolveu publicar no Expresso um artigo onde se revela em todo o seu esplendor. Sinal dos tempos, a confusão política é tal que, da esquerda à direita, diversas vozes vieram aplaudir as suas palavras. Enquanto o faziam, ficava esquecido, por um lado, o propósito eminentemente táctico do texto em causa e, por outro, de que este, acima de tudo, evidencia que o Cavaco de hoje é o mesmo político de há vinte anos.
Para quem tinha dúvidas de que a candidatura presidencial de Cavaco está em marcha, com o artigo do Expresso elas terão ficado dissipadas. Cavaco está a testar a sua candidatura, mas sabe que para ter condições de vitória tem obrigatoriamente de afastar-se deste PPD/PSD. É que o partido pode continuar a gostar muito de Cavaco; acontece que este já não quer ter nada a ver com o seu partido. Distância parece ser a palavra-chave de Cavaco, face ao desvario em que Santana e os seus pares se têm envolvido. Tudo isto parece evidente do ponto de vista táctico, não fora o facto singelo de sem uma máquina partidária mobilizada não ser possível fazer uma campanha eleitoral.
Mas enquanto se demarcava de Santana e do que resta do Santanismo (que, aliás, com o passar dos dias é sempre menos), Cavaco aproveitou para expor a sua doutrina sobre a coisa pública e os políticos. E aqui nada de novo, apenas o regresso à sua identidade original. O argumento é simples: para Cavaco assiste-se a uma degradação da qualidade dos agentes políticos em Portugal, que tem levado a uma crescente mediocridade no exercício da actividade político-partidária. A solução apontada assenta num maior envolvimento das elites profissionais e dos quadros técnicos qualificados na vida política. Tudo isto com o objectivo de, contrariando a lei de Gresham, fazer com que os políticos competentes afastem os incompetentes – que são hoje dominantes. Não há dúvidas que face ao que se tem passado entre nós, o argumento parece, à primeira vista, aliciante. No entanto, esconde um caminho perigoso.
O discurso da degradação da classe política é recorrente e faz-se sentir, com maior ou menor intensidade, em todos os quadrantes políticos e em todos os estratos sociais. Do taxista com ressabiamento social do “antigamente é que isto era” ao quadro superior que defende que “no sector privado é que as coisas funcionam”, este discurso tem-se generalizado a um ritmo avassalador. Acontece que aquilo a que se assiste entre nós é, no essencial, um processo natural em todas as democracias consolidadas e que pouco tem a ver com idiossincrasias nacionais. Passado os períodos carismáticos, associados normalmente às transições de regime, os sistemas políticos tendem a ser governados por “homens” normais, ao mesmo tempo que se acentua o distanciamento entre as elites da sociedade e as da política. Com a normalização institucional, passam a predominar aqueles que, para utilizar a linguagem de Max Weber, vivem “da” política, por contraponto àqueles que vivem “para” a política.
É certo que em Portugal há uma agravante. Desde o 25 de Abril, as expectativas da população foram sempre crescentes, sendo que hoje já não é possível responder politicamente do mesmo modo aos desejos dos portugueses. Isto leva a que o processo de profissionalização da classe política tenha coexistido no tempo com a incapacidade do Estado em continuar a assegurar crescimento económico contínuo e melhoria das condições de vida ano após ano. Tudo isto contribui para a degradação da imagem do sistema político e por acréscimo da classe política aos olhos dos cidadãos.
O artigo de Cavaco tem um segundo elemento, que procura retomar o essencial da identidade política do ex-primeiro-ministro. O que perpassa por todo o texto é, também, que o próprio Cavaco não só não pertence à classe política, como paira acima dela, vindo directamente do mundo dos “competentes” (de que naturalmente não fazem parte os políticos). Acontece que, hoje como em 1985, aquando da sua mitificada deslocação à Figueira da Foz, o que Cavaco introduz com o seu discurso é a ideia perigosa de que a gestão da coisa pública não é uma questão de opções políticas, mas, essencialmente, de gestão técnica, de competência. Ora, este discurso regenerador, não apenas valoriza a indiferenciação das alternativas em jogo, como utiliza para avaliar a actividade política parâmetros que não são conformes com a sua natureza específica.
Com o seu artigo, em que desqualifica os agentes do sistema de que faz parte, Cavaco regressa à amálgama ideológica que sempre o caracterizou. Um misto de populismo de direita que dá voz às desconfianças difusas face ao sistema político, com uma visão tecnocrática que não apenas glorifica elites – que, tragicamente para o país não existem - como trata as questões públicas como meros assuntos técnicos. Que Cavaco regresse à sua fórmula do passado não surpreende; que a esquerda em nome de interesses circunstanciais tenha embarcado no seu discurso é que é admirável. A menos que se esteja a assistir a um desinvestimento nas eleições presidenciais.
publicado em A Capital, 1 de Dezembro