domingo, janeiro 30, 2005

De quem é a culpa?

As eleições legislativas servem sempre para avaliar a performance daqueles que foram escolhidos no acto eleitoral anterior e escolher entre as diversas opções para exercer o poder nos anos seguintes. Estas eleições não serão naturalmente excepção. No entanto, a campanha eleitoral tem-se centrado nos últimos meses de desgovernação, esquecendo os dois anos e meio que os antecederam. Este esquecimento não apenas desresponsabiliza o anterior primeiro-ministro, Durão Barroso, como, para além do mais, leva a que a clarificação sobre o que vai ser feito nos próximos quatro anos, designadamente por contraponto a estes três, seja secundarizada. Centrar todas as baterias no ataque ao inenarrável Santana Lopes é, do ponto de vista táctico, uma boa opção, mas esquece a questão estratégica: a oposição ao desastre governativo que ocorreu durante o consulado de Durão Barroso.
Para compreendermos como é que o país chegou aqui – sendo o aqui esta conjugação quase única e, espera-se!, irrepetível de depressão social, instabilidade política e profunda crise económica, financeira e social – não basta olhar para a acção de Santana Lopes. Há que recuar a Março de 2002, quando os portugueses foram a votos.
Naquela que foi a mais polarizada das campanhas legislativas em Portugal, Durão Barroso apresentou-se com uma estratégia clara: para ganhar, era preciso prometer tudo a todos, independentemente da capacidade efectiva de, uma vez no poder, cumprir o prometido. O caso de com essa atitude ter faltado à verdade aos portugueses pouco pareceu importar ao então candidato. Este facto, desde logo, faz que seja hoje difícil saber o que avaliar – as promessas feitas e não cumpridas ou a prática política que foi levada a cabo e que os portugueses não sufragaram? Independentemente da resposta, com a sua postura, Durão Barroso deu um importante contributo para a descredibilização da classe política.
Mas, uma vez chegado ao Governo, não lhe ocorreu nada melhor do que, no momento em que tomava posse, afirmar que tinha encontrado o "país de tanga". Para além de a afirmação ser bem reveladora do estilo que o acompanharia daí para a frente, com ela conseguiu dar uma machadada na confiança dos portugueses e dos agentes económicos, lançando-a para níveis impensavelmente baixos. A consequência foi uma recessão económica ímpar e um enorme descalabro orçamental. À crise financeira, Durão Barroso, através de políticas erradas e de uma gestão das expectativas desastrosa, conseguiu somar uma crise económica, que, depois, fez acompanhar de uma contra-reforma social.
Ao mesmo tempo que não era capaz de controlar o défice (curiosamente a sua principal bandeira eleitoral), abandonou a aposta nos factores que podem tornar a economia portuguesa viável no médio prazo – o investimento na inovação, na ciência, na tecnologia e na educação/formação. Paradoxalmente, assim que se viu nas vestes de presidente da Comissão, recuperou a Agenda de Lisboa que em Lisboa havia desprezado.
No meio de tudo isto, conseguiu ainda romper o tradicional consenso entre os dois maiores partidos portugueses em torno da política internacional. O apoio inusitado à guerra no Iraque e o patrocínio da Cimeira das Lajes ameaçaram a credibilidade internacional adquirida por Portugal, sob diversas administrações, em 30 anos de democracia – além de que foram opções cujos motivos estão ainda longe de estar totalmente esclarecidos.
Naturalmente, quando a sua acção foi avaliada os portugueses infligiram-lhe a maior derrota eleitoral da direita, mesmo num contexto em que o principal partido da oposição estava a ser alvo da mais tenebrosa campanha que o Portugal democrático conheceu. Face à derrocada e perante a incapacidade de proceder a uma renovação na sua equipa governativa, aproveitou a primeira oportunidade para "abandonar o barco". Não contente com isso, tratou de garantir que entregaria o poder a Santana Lopes.
É por isso que, quase três anos depois, é inevitável relembrar que parte fundamental das culpas do estado a que o País chegou deve ser assacada a Durão Barroso. As opções políticas substantivas erradas foram por ele tomadas, Santana Lopes limitou-se a juntar-lhes um autêntico desvario institucional (o que está longe de ser pouco), que acabaria por ditar a sentença de morte a uma já combalida coligação de direita.
Para compreender o que se irá passar daqui a duas semanas, importa recordar que com a péssima prestação de Durão Barroso em termos de políticas, a direita desmobilizou o voto e dilapidou o seu eleitorado. Mas, como à direita a prestação do líder partidário é uma variável decisiva para a opção de voto, a desastrosa actuação de Santana Lopes acentuará a derrota e levará, também, a que o PSD abra o flanco. Designadamente fazendo que o parceiro menor da coligação acabe por sair relativamente bem de um filme em que participou activamente desde o início. O que não deixa de ser espantoso.

publicado em A Capital

domingo, janeiro 23, 2005

Sensibilidade, bom senso e estabilidade

Por estes dias, os dois principais partidos portugueses apresentaram os seus programas de governo. Até aqui, o que se conhecia eram os programas eleitorais dos partidos dos extremos e umas quantas promessas avulsas dos restantes partidos. Acontece que de um programa eleitoral a um programa de governo vai uma grande distância. Onde aquele se limita a juntar um conjunto de reivindicações legítimas, mas frequentemente irrealistas, este caracteriza-se, teoricamente, por se tratar de um conjunto coerente de propostas, com sustentabilidade financeira, exequibilidade administrativa e ainda viabilidade política de facto.
A distinção entre programa eleitoral e programa de governo é parte, aliás, da explicação de como chegámos aqui. Para perceber o verdadeiro desastre político que ocorreu nestes últimos três anos é essencial recordar o que se passou nas legislativas de 2002, nomeadamente no que toca a promessas. Até porque votar numa eleições legislativas implica sempre duas coisas: avaliar o que se passou e escolher a melhor opção para o futuro. Sobre o que se passou, verdade seja dita, o essencial das responsabilidades não pode ser assacada a Santana Lopes, mas, sim, a Durão Barroso.
Em Março de 2002, Durão Barroso prometeu tudo a todos. O resultado é conhecido, uma vez chegado ao Governo, meteu as promessas na gaveta e depois, quando percebeu o enredo em que se tinha metido e para onde estava a levar o país, colocou-se literalmente «fresco». Acontece que quando os principais responsáveis políticos assim agem, é a credibilidade de todos agentes do sistema que fica afectada. Se às promessas não cumpridas, somarmos o desastre financeiro, económico e social, temos o quadro perfeito para a deslegitimação crescente do sistema político aos olhos dos portugueses. O resultado tem sido só um: os portugueses acreditam pouco ou nada nos políticos e tendem a desconfiar do que estes lhes prometem.
Ora este contexto exige dos partidos e dos seus dirigentes uma nova atitude face às campanhas eleitorais e ao que nelas se promete fazer. Como é que podemos sair daqui? Como é que se pode contribuir para que a classe política, os partidos e o sistema ganhem um novo capital de credibilidade?
Antes de mais, desenvolvendo processos de formulação de políticas mais próximos dos das democracias institucionalizadas. Processos assentes em três fases, com responsabilidades repartidas por diversos actores. Uma primeira fase a que se poderia chamar de «científica», em que se analisariam os problemas e se revelaria a realidade. Uma segunda fase, onde a «comunidade dos agentes» discutiria as receitas e as soluções para os problemas previamente identificados, naturalmente com base em visões político-ideológicas. E, finalmente, a fase da «retórica política» - o momento para se determinar as oportunidades de agir ou não. As alterações do calendário eleitoral levaram a que ainda não tenha sido desta que os partidos tenham procurado desenvolver um processo de formulação de políticas deste tipo, aproveitando para enfrentar um problema grave da sociedade portuguesa: a confusão entre estas diversas fases e a promiscuidade entre os seus actores principais (muitos dos quais, aliás, participam nos vários momentos, ocupando frequentemente lugares contraditórios).
Depois, prometer pouco e falar verdade.
O contexto actual é, aliás, propício a que isso aconteça. Mais do que nunca os portugueses estão dispostos a aceitar políticas difíceis. Por estranho que possa parecer, prometer pouco é hoje uma opção triplamente virtuosa. Ao não diluir as propostas centrais num mar de promessas para todos e a propósito de tudo, permite identificar com precisão o que é que os partidos pretendem de facto fazer; contribui para (re)legitimar a acção do poder político aos olhos dos cidadãos - afinal, «os políticos prometem e cumprem» -; e, no fim, ainda compensa eleitoralmente.
Daqui a três semanas os portugueses devem escolher entre quem promete um mundo dourado e perfeito, que depois será incapaz de concretizar, e entre quem seja capaz de definir um conjunto limitado e realista de objectivos e que revele vontade política para os concretizar. Face ao estado a que o País chegou, a isto há que somar sensibilidade na escolha das áreas prioritárias de intervenção reformista, bom senso na forma como se colocam em prática as políticas e estabilidade institucional na gestão da coisa pública. Parece pouco, mas é um ponto de partida decisivo para aquilo que o país precisa e que, ainda que não sendo motivador de grandes entusiasmos públicos, deveria estar implícito num bom programa de governo.

publicado em A Capital

domingo, janeiro 16, 2005

O que os portugueses querem

Dificilmente passam três meses sem que Jorge Sampaio faça um apelo aos consensos. No ano novo, o Presidente voltou à carga com a ideia. O que o país precisa é de acordos entre os partidos para resolver, sem conflitualidade, os problemas quase-insolúveis que enfrenta, do défice à saúde, passando pela educação e pela segurança social. Mas como estes acordos têm sido difíceis de alcançar, nada melhor do que, a meia-dúzia de semanas das eleições, introduzir, numa amena tertúlia televisiva, o tema da alteração do sistema eleitoral com o objectivo de facilitar a obtenção de maiorias absolutas (esquecendo que este sistema já as proporcionou por duas vezes ao PSD e, a crer nas sondagens, encarregar-se-á de, pela primeira vez, a proporcionar ao PS). Tudo revela um assinalável sentido de oportunidade, mas esconde também um mal-político do país.
Acima de tudo, a ideia de consenso. É pouco claro se por força de tanta endoutrinação das elites, ou por genuína (pre)disposição social, a verdade é que os portugueses querem que os partidos se entendam. Que se entendam a propósito de muitas matérias, sendo que a maioria das quais é da esfera da salutar divergência política. Como revelam os estudos de opinião, a maioria dos portugueses pensa que os partidos só servem para dividir as pessoas e criar discórdia estéril. Aliás, Santana Lopes que intui bem estas coisas, aproveitou a sua mensagem de Natal para dizer qualquer coisa como, “é preciso uma política mais bonita”. Leia-se, sem discussões e conflitualidade.
Mas este problema não nasceu agora, atormenta as democracias liberais, pelo menos, desde o início do século XX. A União Nacional, por exemplo, serviu para enfrentar essa dificuldade. Acontece que em democracia, a política é, por natureza, o domínio da clivagem e do conflito enquadrado institucionalmente. Como tal, os consensos são necessários apenas quando não há capacidade institucional para enfrentar os problemas. Que se saiba não foi por falta dessa mesma capacidade que, por exemplo, o Governo PSD/PP não resolveu o problema das contas públicas. Apoiados por uma maioria parlamentar absoluta, na prática o PSD e o PP não precisavam de consensualizar (como aliás não fizeram) nada com o PS para cumprir o seu programa dito reformista. É que, tirando os compromissos que vão para além do espaço de uma legislatura, os consensos inter-partidários não só não são necessários, como acabam por produzir um efeito negativo: a indiferenciação crescente entre os partidos.
Ora, o que a maioria dos portugueses pensa também é que, apesar dos políticos discutirem muito, em última análise os partidos são todos iguais. Do taxista ao empresário, de uma forma mais ou menos sofisticada, a opinião é frequente: pouca diferença existe entre os partidos, designadamente entre os dois maiores. Paradoxal. Ao mesmo tempo há um desejo de despolitização da política e uma desmobilização porque os partidos são, no essencial, iguais.
Para contrariar esta ideia os partidos com vocação de poder têm um caminho a trilhar. Mostrar que são de facto diferentes, até porque a sua capacidade de mobilização eleitoral reside, em larga medida, nisso mesmo. É, por isso, importante que quer o PSD, quer o PS contrariarem a ideia dos consensos e nos seus programas e discursos se preocupem, acima de tudo, em apresentar projectos que sejam percepcionados pelos eleitores como se tratando de verdadeiras alternativas, com compromissos determinados e contrastantes. Quando os partidos de poder procuram, a todo o custo, não se comprometer com nada, procurando agradar a “gregos e troianos”, ou, em alternativa, só se comprometem com algo, quando os custos são reduzidos (afinal é para minorar os custos das medidas difíceis que servem os consensos), os eleitores normalmente desmobilizam e tendem a optar ou pela abstenção ou por partidos nos extremos do espectro partidário.
Os problemas que o país enfrenta não se resolvem nem com consensos, nem, no essencial, com alterações do sistema político. Quando a campanha eleitoral já está, de facto, a decorrer, o tempo não deve ser para esses temas. Agora é, acima de tudo, o momento para os partidos se desentenderem, de modo a que fique claro o que pretendem.
Até porque, pelo caminho, ajudam a resolver o problema dos portugueses que, ao quererem simultaneamente consensos inter-partidários e uma maior diferenciação entre os partidos, desejam coisas contraditórias e inconciliáveis. É, aliás, boa altura para os partidos esquecerem um pouco o que os portugueses querem e escolherem o que o país e a democracia precisam: verdadeiras alternativas e capacidade institucional e política de as pôr em prática. Se os partidos assim o fizerem, no futuro, os portugueses encarregar-se-ão de lhes agradecer.
publicado em A Capital

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Filhos? ... difícil é mantê-los.

A menos de dois meses das eleições e quando as vozes que afirmam que a sociedade portuguesa se encontra bloqueada são quase hegemónicas – muito por força da debilidade do nosso modelo produtivo, das baixas qualificações dos activos e ainda, naquilo que tem sido o factor mais apontado, pelo desequilíbrio das contas públicas – é boa altura para contrariar este fatalismo, identificando áreas onde as políticas públicas podem fazer a diferença. A política de família não é apenas uma dessas áreas, como é decisiva para a capacidade do país continuar a produzir riqueza.
A baixa taxa de fertilidade é, hoje, um dos problemas mais agudos que enfrentam as sociedades europeias. Em Portugal esta situação assume contornos particularmente preocupantes, tendo o país passado, num curto espaço de tempo, de uma das taxas mais elevadas da União Europeia, para valores inferiores à média. Este fenómeno tem consequências negativas, ao abalar as fundações em que assenta o nosso modelo de bem-estar. Embora, as causas que o originam sejam, em si mesmas, claramente positivas: o aumento dos níveis de escolaridade e consequente adiamento da entrada no mercado de trabalho; aumento exponencial da participação feminina no mercado de trabalho; ambições profissionais crescentes e a alteração dos costumes e da sexualidade.
Contudo, estes factores têm questionado o modelo de família em que assenta, tradicionalmente, a produção de bem-estar. O novo contexto em que vivemos, foi responsável, entre outras consequências, pela baixa da taxa de fertilidade, colocando em risco a capacidade futura do país em criar riqueza e reduzindo a sustentabilidade financeira dos esquemas de protecção social.
Responder a esta situação implica repensar a política de família. A questão não é, nem pode ser, voltar de forma anacrónica ao modelo de família do passado, mas, sim, criar condições para que a constituição de família não seja um obstáculo à participação no mercado de trabalho. Não podemos ter um mercado de trabalho que promove, cada vez mais, a flexibilidade e a mobilidade (regional e de empregos) e um modelo de família que bloqueie essa dinâmica. Se continuarmos por esse caminho, o resultado será necessariamente a perpetuação de um trade-off em que a família tem saído perdedora.
Uma política de família activa não deve ter como objectivo a promoção de um modelo de família particular. Pelo contrário, deve promover o aumento da taxa de fertilidade e possibilitar a constituição de famílias compatíveis com as exigências do mercado de trabalho, nomeadamente com a participação crescente das mulheres, sobre quem continua a recair de forma desproporcional o ónus do bem-estar familiar.
Uma esquerda moderna deve fazer da política de família um eixo central e prioritário da sua acção. Uma política de família virada para o futuro e desprovida de retórica ideológica passadista. É que numa altura em que as sociedades modernas – e a portuguesa em particular – geram dinâmicas que prejudicam a possibilidade de se ter filhos, cabe ao Estado contrariar essas mesmas dinâmicas, com políticas que apostem no futuro e que conciliem o bem-estar material das famílias com a possibilidade destas terem filhos.
O país tem de equilibrar as suas contas públicas e de desenvolver novas políticas para a competitividade, mas precisa, com igual intensidade, de uma política que faça da família um eixo central do seu modelo de bem-estar. O nosso futuro depende tanto desta dimensão das políticas públicas como das restantes.
O próximo governo deveria voltar a preocupar-se com o leque e a qualidade das respostas de apoio às famílias que querem ter filhos e, simultaneamente, criar mais incentivos à possibilidade de os ter. Designadamente, fazendo com que as escolas assumam o seu papel de apoio às famílias, evoluindo de escolas que se ocupam das aulas, para escolas que se ocupam das crianças – por ex. alargando o tempo de permanência das crianças na escola em actividades extra-curriculares; voltando a desenvolver as respostas para a primeira infância e o pré-escolar; tornando o mercado de trabalho amigável para a vida familiar, com horários mais flexíveis e promovendo o part-time, sem diminuição de direitos; incentivando o exercício efectivo dos direitos já existentes em termos de licenças parentais, para as mães, mas, também, para os pais; e alterando o sistema fiscal para que acomode diferentes modelos de estrutura familiar e para que incentive, de forma mais intensa, o aumento da taxa de fertilidade.
Uma política de família activa não é, nem pode ser, uma política dirigida a um modelo anacrónico de família. Tem de ser uma política que promova efectivamente a possibilidade de se ter filhos, mas que não colida com a participação dos pais no mercado de trabalho. O país precisa que todos façamos mais filhos, o desafio é fazer com que seja mais fácil às famílias mantê-los.
publicado em A Capital