quarta-feira, abril 20, 2005

Os autarcas e o dominó

Há anos que vozes de todos os partidos falam insistentemente na renovação da classe política. Poucas são, também, as semanas em que não há um comentador a reclamar o mesmo. O discurso banalizou-se de tal modo que mesmo os mais improváveis renovadores o incorporaram e reproduziram. Agora, o Governo retomou a proposta que o PS havia apresentado na oposição (e levado a cabo internamente, com a revisão estatutária de 2002) e avançou para a limitação dos mandatos para os cargos executivos, com moderação nos efeitos retroactivos. Claro que, assim que se passou do discurso à prática, tudo mudou. Quase que caiu o Carmo e a Trindade. Os doutorados em cinismo logo vieram dizer que a medida era irrelevante e que revelava desconfiança dos dirigentes em relação aos seus pares. Outros criticaram-na por ser tímida – era preciso ir mais longe – e, ainda, por não mexer no essencial. Em Portugal é invariavelmente assim. Todos reclamam reformas e há um vasto consenso sobre o que é preciso fazer. Até ao momento em que se faz alguma coisa. A partir de então, o consenso desfaz-se e afinal o que foi feito não era nem necessário, nem essencial.
Acontece que a renovação da classe política é necessária e essencial. E para começar por algum lado, é boa ideia limitar os mandatos dos cargos executivos. Na prática, é aí que parte importante do problema se coloca. A sucessão de mandatos, quando associada a forte personalização, é susceptível de potenciar excesso de poder e clientelismo. Fenómenos que fragilizam o interesse comum e a qualidade da democracia.
Embora a proposta do Governo abranja, entre outros, o cargo de Primeiro-Ministro, é fundamentalmente ao nível dos governos regionais e das autarquias locais que a questão se põe. Nenhum Primeiro-Ministro, desde o 25 de Abril, exerceu o seu mandato por mais de dez anos. Além de que convém recordar que o exercício do cargo de Presidente da República é limitado a dois mandatos. As reacções dos autarcas e de João Jardim são, por isso, sintomáticas de que se tocou na ferida. E o lugar da ferida é inequívoco.
Num estudo sobre as teias do poder local, Sérgio Faria concluiu que, com a excepção das eleições autárquicas de 1979, altura em que mais de metade dos presidentes de câmaras foram substituídos, verifica-se que a recondução dos autarcas no mandato seguinte é próxima dos 60% e que, até 2001, mais de 50% das autarquias tiveram no máximo três presidentes. Ou seja, nas autarquias há uma forte tendência para a reprodução e manutenção das elites. Tendência que não é comparável, por exemplo, com funções governativas e que só encontra paralelo nos casos dos Governos Regionais da Madeira (apenas um Presidente) e dos Açores (dois).
Com justiça, do poder local é dito que foi das principais conquistas do 25 de Abril. Não apenas porque se tratou de um factor de desenvolvimento do país, mas, também, porque implicou a democratização do poder. Contudo, os últimos 30 anos têm servido para que a outra face tenha sido revelada. Para além das virtudes, o poder autárquico condensa muitos dos problemas de qualidade da democracia portuguesa. À cabeça, surgem as redes de poder intrincadas que se desenvolvem em torno das autarquias, muito por força da personalização das presidências e da sua eternização.
Entre as principais consequências negativas da perpetuação no poder dos autarcas encontra-se a sua reprodução linear no seio dos partidos. Um pouco por todo o país, e nos três partidos que têm dimensão autárquica, há um problema de fraca autonomia nacional face às lógicas concelhias. Claro que este facto tem a vantagem de permitir uma maior mobilização dos militantes devido à proximidade aos problemas. No entanto, faz com que, frequentemente, os partidos percam a dimensão do interesse nacional e se fechem sobre si mesmos. Muito por força do poder quase perpétuo de alguns autarcas, temos assistido a uma lenta evolução de partidos nacionais para a soma de pequenos partidos de interesses locais, federados.
Basta pensar nas listas de deputados. Até recentemente, quando era possível aos autarcas acumularem o cargo com o mandato de deputado, era isso que faziam. Agora, impedidos de o fazer, optam por fazer das listas caixas de ressonância dos seus poderes concelhios. As direcções nacionais dos partidos – de todos os partidos – vêem-se sem margem de autonomia para promover a renovação efectiva dos candidatos a deputados. Foi, por exemplo, isso que aconteceu nas últimas eleições legislativas. José Sócrates cedeu nas listas de deputados (onde lhe era mais difícil fazer face às resistências partidárias) e, paradoxalmente, pôde renovar mais e com maior autonomia na feitura do Governo.
É por isso que, numa visão optimista, o impulso para a renovação dos agentes autárquicos, resultante da limitação dos mandatos, arrisca-se a produzir um efeito dominó. Ao estimular a mudança ao nível das autarquias locais, está-se a criar condições para que a renovação das estruturas partidárias, em alguma medida, também ocorra. Depois de ter empurrado a primeira peça do dominó, é importante que o Governo revele coragem e não recue perante a coligação de resistências que tem surgido. Ao mesmo tempo, esta é uma primeira prova de fogo para o líder da oposição. Marques Mendes, depois de ter tido a ousadia de, no congresso, afrontar o passado recente do partido, tem agora uma oportunidade para afirmar a sua liderança, não cedendo, designadamente perante João Jardim. Adiar a concretização da proposta governativa, ou criar subterfúgios para impossibilitar a sua concretização, seria uma oportunidade perdida. E a deterioração da democracia portuguesa não se compadece com a perca de muito mais oportunidades.
publicado em A Capital