quarta-feira, maio 11, 2005

Privilégios

O que há meia-dúzia de meses era impensável tornou-se realidade: os portugueses fazem uma avaliação positiva de todos os líderes partidários e, pasme-se, até da Assembleia da República. É isso que nos diz a sondagem publicada pelo Expresso do passado Sábado. Se aceitarmos que o essencial dos fenómenos políticos não acontece por acaso ou mero capricho do destino, estes números não serão independentes da preocupação de José Sócrates e de Marques Mendes em afirmarem-se através de questões simbólicas, relacionadas com o sistema político e a sua qualidade.
Este dado é, de certa forma, inédito: as preocupações com a qualidade da democracia são quase exclusivas de quem está na oposição. Antes de mais, porque é aí que se sentem na pele as fragilidades do sistema, mas, também, por se tratar de um tema relativamente fácil de introduzir no debate político. Os jornalistas gostam, tem poucos custos na vida interna dos partidos (em abstracto, toda a gente concorda), além de que os problemas estão identificados, pelo que não há que inventar nada e não se corre o risco de fazer discursos pouco informados.
Um outro aspecto típico deste é que, quando na oposição, os partidos falam sobre mudanças gerais no sistema e têm pouca capacidade para avançar nas mudanças internas. Sem poder para distribuir, que funcione como paliativo para transformações dolorosas, mudar torna-se, internamente, muito difícil. Depois, uma vez chegados ao poder, o tema é secundarizado ou mesmo abandonado, por força das ondas de contestação que inevitavelmente provoca. Mas esta tendência que, apesar de algumas excepções, diria forte, parece estar a ser contrariada.
Em primeiro lugar, porque o Governo tem revelado uma assinalável preocupação com medidas de promoção da qualidade da democracia. A limitação de mandatos e o afrontar dos interesses das corporações (a diminuição das férias judiciais e a venda livre dos medicamentos sem prescrição médica) é disso exemplo. Em segundo lugar, porque Marques Mendes, mesmo tendo alcançado uma vitória interna por uma margem curta, tem combatido interesses instalados no PSD. A firmeza com que afastou a possibilidade de Isaltino Morais e Valentim Loureiro serem candidatos autárquicos com apoio do partido é, não apenas uma acto de coragem, como também, um importante passo para a dignificação da vida política portuguesa, que deveria deixar satisfeitos todos os que se preocupam com a degradação da imagem dos políticos.
Curiosamente, a primeira imagem que, quer José Sócrates, quer Marques Mendes têm procurado deixar prende-se com estes aspectos. E a verdade é que, pese embora se tratem de medidas em parte simbólicas, deixam uma marca forte da preocupação de ambos com a qualidade da democracia e a sua autonomia face a poderes instalados e de fraca legitimidade. A apreciação positiva que, hoje, os portugueses fazem da actuação dos líderes partidários não será, certamente, independente das preocupações que estes têm tido com a melhoria de alguns aspectos do sistema democrático.
Contudo, não é menos verdade que o que tem sido feito é apenas uma pequena parte do que há a fazer. E para fazer o que deve ser feito é importante perceber que a degradação da imagem pública da classe política não se resolve com um ou dois sinais, pelo contrário, requer uma avalanche de medidas que coloque fim a velhos privilégios, até para que seja possível dar novos, bem mais necessários.
Dois exemplos. Sendo verdade que as férias judiciais eram excessivas e injustificadas e que o Governo andou bem ao torná-las idênticas às da larga maioria da população, porque razão, então, se deve manter o privilégio dos deputados, que vêem o parlamento encerrado durante um período de tempo superior aos 25 dias úteis que a lei prevê para a maioria dos portugueses? Ou, porque razão continuam os autarcas a ter um esquema de reforma em que o exercício do cargo de presidente é altamente vantajoso para efeitos de aposentação (isto num quadro em que, ao contrário do que é voz popular, o regime dos deputados é hoje razoável)?
É evidente que a melhoria da relação de confiança dos cidadãos com o sistema político não depende, no essencial, do fim de benefícios excessivos da classe política. Mas reduzir privilégios é parte importante daquele processo, além de que é um requisito fundamental para que seja possível dar novos e necessários privilégios, como seja a melhoria na remuneração dos políticos. É que há certamente uma regalia que em Portugal estes não têm: ganhar muito dinheiro. E esse facto ajuda a explicar a existência de muitos benefícios, menos públicos.

P.S. A crer no Expresso, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, João Amaral Tomás, anda “apaixonado” pelo flat-rate tax (imposto de taxa única). Depois das ex-Repúblicas Soviéticas, do Economist e de José Manuel Fernandes – por esta ordem –, a moda chegou ao governo do PS. Espantoso. Se é verdade que a simplificação dos benefícios fiscais é uma necessidade, confundir esta com o fim da progressividade fiscal (um dos pilares da governação da esquerda social-democrata), é algo que só lembraria aos mais destemidos neo-liberais. Que um membro do actual Governo – para mais com responsabilidade na matéria – tenha uma paixão pela ideia só se compreende se nos recordamos do entusiasmo revelado por Amaral Tomás com o anterior governo, do qual fez parte como adjunto de gabinetes ministeriais, quer no tempo de Durão Barroso, quer no de Santana Lopes.

publicado em A Capital