quinta-feira, junho 30, 2005

O défice como cavalo de Tróia

O défice tem servido para muitas coisas. Algumas delas positivas, como seja capacitar o Governo para levar a cabo medidas que, de outro modo, seriam difíceis de legitimar e implementar. Mas algumas negativas. Entre estas destaca-se a tentativa de justificar o desequilíbrio orçamental com o peso excessivo do denominado “Estado Social”.
Esta ideia tem feito o seu caminho e o défice tem sido um autêntico “cavalo de Tróia” para todos aqueles que fazem do ataque ao Estado Providência bandeira política. Numas versões, o essencial do problema nacional é termos um Estado Social que oferece muitas regalias. Noutras, supostamente mais informadas pela experiência “estrangeira”, o problema nem é apenas nosso. As causas vêm de fora e, no fundo, a culpa é do modelo social europeu, que coloca obstáculos ao bom funcionamento da economia europeia e põe em risco a disciplina orçamental. O que se passa entre nós seria, apenas, uma versão extrema do problema europeu.
Nisto, o crescimento contínuo da despesa pública, que o orçamento rectificativo não procura esconder, tem servido para ajudar à festa de responsabilização da dimensão social por tudo o que de mau se passa na economia portuguesa. Mas será de facto assim?
Antes de mais, convém relembrar um dado simples, estranhamente afastado do debate. Se é verdade que o peso da despesa pública no total do PIB é, entre nós, elevado (ainda que inferior a grande parte da dos países europeus, o que não é atenuante), o mesmo não se passa com a despesa social. Portugal continua a gastar apenas 21,1% do seu PIB em despesa social, perto de 3 pontos menos do que a média europeia (OCDE, UE-15). E, como é sabido, o que se gasta em despesa social condiciona de modo decisivo o padrão de desigualdades. Entre outros factores, esta é parte da explicação para nos mantermos na cauda da Europa em níveis de pobreza – o que nos deveria envergonhar a todos como sociedade.
Portugal tem um problema com a despesa pública e tem um problema com a dimensão social do Estado. Mas estes problemas são de natureza diametralmente oposta. A menos que se confunda toda a despesa pública com despesa social, o problema português não é com a riqueza que o Estado despende em protecção social, mas com a despesa pública, expurgada desta componente.
Já a responsabilidade do modelo social pelo “problema europeu” levanta outras questões, não menos relevantes para as opções políticas em Portugal.
O modelo social europeu tem sido, simultaneamente, responsabilizado pela esclerose da “velha” Europa e como última barricada a defender, perante os ataques selváticos da globalização neo-liberal dirigida a partir do “Novo Mundo”. Dá-se o caso de a dimensão social ser, entre as várias componentes tradicionais das políticas públicas, das menos europeizadas. O essencial das políticas sociais mantém-se na esfera de competência dos Estados-membros e o modelo social europeu pouco passa de um conjunto de princípios políticos partilhados, mas que assume manifestações muito diversas em cada um dos países. Com culturas institucionais fortemente enraizadas, dificilmente a Europa poderia ambicionar a harmonização da componente social dos Estados-membros. Pelo que este é um daqueles assuntos em que ambos os lados do espectro político estão frequentemente envolvidos numa luta contra “moinhos de vento”.
Do mesmo modo que o problema das contas públicas em Portugal não resulta da componente social da despesa pública, também o problema das economias e da robustez orçamental da Europa não decorre do modelo social em si. Há países que têm sabido conciliar economias competitivas com modelos sociais desenvolvidos e outros não. Não há, neste como em muitos outros domínios, um problema europeu. O que há são diferentes problemas nacionais.
Tal como as causas para o mau comportamento de algumas das economias europeias devem ser procuradas em factores domésticos, os problemas dos Estados Providência europeus radicam na forma como estes respondem às transformações das suas economias e estruturas sociais. Imputar a um suposto modelo europeu comum a responsabilidade pelos problemas de alguns dos países europeus é errado
Neste quadro, o desafio para Portugal é, ao mesmo tempo, saber desenvolver o seu modelo de Estado Providência (entre outras coisas, aumentando a despesa social), sem repetir os maus exemplos europeus. Olhar para a Europa continua a ser a melhor opção quando se quer conciliar disciplina orçamental, crescimento do emprego e equidade na distribuição de rendimentos. Contudo, é necessário olhar não para a Europa como um todo, mas para alguns países europeus.
publicado no Diário Económico

quarta-feira, junho 29, 2005

Derrotar Ferreira Torres

Estou convencido que na realidade nada é tal e qual como descrito pela teoria. Na política, pensava, isto era ainda mais verdade. Observadas todas as dimensões, nenhum partido, nenhum político é exactamente como a construção que de si é feita. Tudo e todos representam mais do que a ideia que deles é dada. Todos não. Avelino Ferreira Torres é uma excepção. É difícil encontrar outro político que tipifique de forma tão linear um conceito. Ferreira Torres é o populista. O populista em todo o seu esplendor. O populista sem subterfúgios, sem dimensão escondida para um dia nos surpreender.
Não há, entre nós, outro exemplar que corporize de modo tão nítido o populismo político. Em Ferreira Torres está lá tudo. O distanciamento face aos outros políticos; os métodos duvidosos; a proximidade com o submundo do futebol; a imagem de que subiu “na vida a pulso”; a aposta no desenvolvimento urbano selvático e a coligação objectiva com a comunicação social tablóide.
Agora, depois de ter dado cabo do Marco de Canavezes, tornando o concelho num caso de estudo de caciquismo e caos urbanístico, a figura resolveu avançar como independente, liberto das agrilhoas partidárias, para o concelho vizinho de Amarante. Não se trata de um concelho qualquer. Amarante é uma das terras mais preservadas do distrito do Porto, tem um património cultural relevante e um Presidente de Câmara decente. Que terá feito Amarante para correr o risco de ter o senhor do Marco como Presidente da Câmara?
A sessão de apresentação da sua candidatura à autarquia, este fim de semana, foi um exemplo paradigmático do populismo político.
A crer nos relatos, Ferreira Torres terá dito que com ele “não haveria tachos”. Pois não, afinal o personagem não é como os outros políticos – leia-se, os que se enchem e enchem os seus amigos, criando vastas clientelas. Claro, basta visitar o Marco e questionar as oposições. No entretanto, já que não há tachos, vai oferecendo viagens de helicóptero aos amarantinos – como que reproduzindo as viagens de automóvel oferecidas pelos caciques locais no princípio do século.
Depois, com ele, naturalmente que há desenvolvimento, “a terra anda para frente”. Não por acaso, à cabeça do seu programa eleitoral, encontra-se “a substituição dos cruzamentos com semáforos por rotundas” (sic). Afinal, como lembrava um dos participantes no jantar, “diz-se que ele faz e acontece, mas tem obra; os outros, que não fazem nem acontecem, não têm nada para mostrar". Há um pequeno problema, a “obra” de que fala o comensal assentou no essencial em duas coisas: endividamento brutal da autarquia a que presidiu e crescimento caótico do concelho.
Para culminar tudo, estão as companhias. O homem que deu o seu nome a um estádio – num exemplo que tem seguidores um pouco por todo o país – aproveitou o jantar para ser homenageado pelos Super Dragões. Conhecido invasor de campos de futebol e pontapeador de bancos de suplentes, faz todo o sentido que seja distinguido por um conjunto de rapaziada que se tem especializado em destruir estações de serviço.
Mas, entre os que frequentaram o repasto não se encontravam só uns exemplares de gangs de desordeiros. Também lá estavam, para compor o ramalhete, as “celebridades” da quinta: a Cinha que foi “apoiar o homem”, o Pedro Reis que tem “a certeza que ele vai fazer muito por esta cidade que parece fantástica” ou ainda a Paula Coelho, que queria ser vereadora do desporto. As hostes agradeceram. Uma participante mais entusiasmada disse mesmo: “isto é uma loucura, nunca tinha visto tanta gente famosa à minha frente. São tão simpáticos e afáveis que quase se parecem connosco, gente do campo e das aldeias”. Claro está, o personagem interessa às televisões populistas. O seu eleitorado confunde-se com o público tablóide. Além de que, mesmo sendo político, ele é diferente. É um deles, do “povo”, mas tem o poder de os aproximar daqueles que a televisão todos os dias lhes impõe como modelo de sucesso e de vida realizada. Exploração dos aspectos mais resistentes da pobreza em Portugal, é disso que se trata.
Foi com futebol, caciquismo, “obra” e desrespeito das regras de decência do jogo democrático que Ferreira Torres reinou no Marco durante anos a fios. E, como é sabido, em programa que ganha não se mexe. Em Amarante, bastou somar a televisão popular e os seus personagens filisteus para termos uma mistura ainda mais explosiva. Uma mistura que o dá à frente nas sondagens.
Por tudo isto, em Outubro, derrotar Ferreira Torres em Amarante é fundamental para o concelho. Mas, os amarantinos, ao derrotarem Ferreira Torres, estarão também a dar um sinal para a democracia portuguesa de que a coligação da decência é mais poderosa do que as velhas lógicas caciquistas e clientelares, agora apoiadas pela comunicação social tablóide. Derrotar Ferreira Torres é dar uma vitória à democracia. O que, nos tempos que correm, não é pouco.
P.S.
Há pouco mais de um ano que, a convite do Luís Osório, escrevo semanalmente na Capital. Durante este período, pude observar como, sob a sua direcção e do Rogério Rodrigues, A Capital se transformou de um jornal em declínio num jornal com crescente notoriedade. Além do mais, mesmo com conhecidos constrangimentos e limitações, num ano, mostraram que há espaço para um quotidiano simultaneamente menos institucionalizado e ideologicamente mais engajado. Perante a sua demissão, não posso deixar de lhes dar os parabéns pelo trabalho notável, agradecer-lhes o convite para escrever e fazer votos para que A Capital possa continuar o seu processo de “renascimento”.
publicado em A Capital

quarta-feira, junho 22, 2005

Duros com o crime e com as causas do crime

Na maior parte das questões políticas, os “olhares cientistas”, que chegam acompanhados das estatísticas, dos números que trazem a verdade, são hoje dos que mais ordenam. Em muitos domínios, a percepção social dos fenómenos é quase consequência directa de uma experiência transmitida, alimentada pelo saber. Com a criminalidade não é assim. O que conta é a percepção de cada um. No crime, os números só ganham existência quando servem para confirmar o que se sente. A criminalidade pode estar a baixar, os assaltos a diminuir, mas isso pouco importa. A sensação, devidamente alimentada pelas televisões tablóides, é que ela cresce todos os dias, torna-se mais violenta, foge ao controlo da polícia e vai minando a confiança dos cidadãos no Estado, ao mesmo tempo que promove o ódio face ao outro. Podemos gostar ou não, mas esta é a realidade e naturalmente é ela que conta.
Deste ponto de vista, os agentes políticos têm particulares responsabilidades. Não há nada tão perigoso como aproveitar, num jeito populista, a onda crescente de insegurança. Do mesmo modo que não há nada tão irresponsável como fingir que a criminalidade não é, hoje, um problema prioritário para os portugueses.
Não deixa por isso de ser curioso que, por via do arrastão ou não, a criminalidade volte agora ao topo da agenda política. Não é novidade. Quando o PS está no poder, o assunto é usado como arma de arremesso. Foi assim no passado, quando cada assalto em bombas de gasolina dava direito a abertura de telejornais, e volta a sê-lo agora. O que nos recorda, por exemplo, que, espantosamente, enquanto o CDS esteve no Governo, quase que parecia que não existia criminalidade. Terá sido mesmo assim? Ou, pelo contrário, será que o que se passa é que, quando na oposição, o CDS ergue esta bandeira porque sabe que lhe dá audiência e tem poucos custos? Resta saber se durante os três anos de coligação PSD-CDS foi resolvido algum problema sério que determine a sensação de insegurança.
Acontece que grande parte do debate político em torno da criminalidade assenta numa dicotomia simplificadora. De um lado, estão aqueles que defendem a autoridade do Estado, das polícias, na defesa dos cidadãos face aos bandidos. Do outro, os que pensam que os assaltantes são vítimas da exclusão social em que vivem e que o que é necessário é combater as causas da sua situação, promovendo a integração. É um daqueles casos em que ninguém tem razão e em que ambos têm razão, sem que se chegue a perceber porque motivo os discursos se deixam acantonar de um dos lados do debate.
Na verdade, ser duro com o crime não implica que se deixe de ser, por um momento que seja, duro com as causas do crime. Não há nada que impeça que se privilegie no curto prazo a defesa da segurança dos cidadãos – que é simultaneamente uma garantia de liberdade individual e de preservação do Estado de direito – e que se invista de forma séria no combate às causas da criminalidade – contrariando os processos de exclusão social e promovendo a integração de todos os que estão do lado de “fora”.
Não há nenhuma razão para que a esquerda não assuma esta agenda. Por um lado, porque a defesa do Estado de direito é essencial para o objectivo mais amplo de preservação do papel do Estado, como mecanismo de regulação e também de promoção de direitos. Por outro, porque ao ser a esquerda a assumi-la, é possível acentuar a dimensão económica e social da integração, afastando os riscos de sublinhar a sua componente cultural (numa lógica estigmatizadora e meio folclórica que serve para reproduzir os estereótipos que estão na base do racismo).
Convém não esquecer que a realidade diz-nos que os cidadãos se sentem inseguros e que essa insegurança potencia fenómenos de xenofobia. Ter a consciência clara que este processo está a minar as nossas sociedades é essencial. Por agora, encontra-se nas margens do debate político, em manifestações com pouca gente, mas o risco de se tornar um tema central é grande.
Por isso, é preciso responder com firmeza e intransigência à criminalidade, sublinhando a autoridade do Estado e apoiando as forças policiais para que possam garantir a segurança dos cidadãos. Mas, tal não impede que se aposte ainda mais nas políticas de integração, através da escola pública, da garantia material de mínimos sociais de cidadania e do combate sem preconceitos aos vários factores de exclusão (à cabeça a toxicodependência). Nos nossos dias, a opção não é ser duro com o crime ou com as causas do crime. A opção passa por fazer as duas coisas em simultâneo.

P.S. ouvir os dirigentes sindicais dos professores afirmar que as medidas tomadas pelo Ministério da Educação para contrariar a greve aos dias de exames são indignas no pós-25 de Abril, só reforça o que aqui escrevi a semana passada. Indigno do pós-25 de Abril é a persistência, em Portugal, de grupos que têm privilégios relativos quase exclusivos e que, na defesa desses privilégios, optam por prejudicar objectivamente, no caso, a vida dos jovens que enfrentam com natural ansiedade os exames. Além de que revela uma total ausência de sentido táctico da parte dos sindicatos, que, em lugar de alargarem a sua base de apoio, optam por diminui-la.

publicado em A Capital

quinta-feira, junho 16, 2005

Salvos pela Europa

As medidas apresentadas pelo Governo na sequência do relatório Constâncio têm sido, com justiça, classificadas de necessárias e legítimas. Ainda assim, ao mesmo tempo, é afirmado que, no médio prazo, pouco impacto têm na diminuição do desequilíbrio das contas públicas. Este facto prova que o défice, tantas vezes invocado como razão da austeridade, funciona também como caução política para o Governo fazer o que, em condições normais, dificilmente faria.
No fundo, nada de novo. Nos últimos trinta anos, ajustamentos nas nossas políticas públicas com impacto social e político negativo foram invariavelmente feitos quando existia um constrangimento externo forte. Em meados da década de oitenta com o bloco central, o pretexto foi a adesão à CEE; dez anos depois, a entrada na moeda única; agora, a razão invocada é os 3% de défice permitidos pelo PEC. Comum a todas estas situações foi o facto de a Europa ter sido usada como desculpa. Desculpa para levar à prática medidas que visavam cumprir requisitos de facto existentes, mas, também, para alterar políticas que não tinham a ver directamente com imposições europeias.
Antes de mais, este facto diz-nos muito sobre a política portuguesa. Com um sistema que tem evoluído para um presidencialismo de primeiro-ministro, com um parlamento em crise de legitimidade e com um corporativismo artificial, a capacidade do Estado em desenvolver políticas enfrenta poucos pontos de veto formais. Apesar disto, paradoxalmente, o Estado português tem pouca capacidade para implementar políticas difíceis, que promovam ajustamentos necessários. É que os pontos de veto formais são poucos, mas os bloqueios subterrâneos são, pelo contrário, muitos e poderosos.
Por isso, Portugal tem recorrido à ajuda externa, simultaneamente, como mecanismo para aumentar a sua capacidade institucional e para “passar as culpas”. Algo que, aliás, acontece um pouco por toda a Europa, mas com particular incidência nos países do Sul. Aí, a UE tem funcionado como pretexto para os Estados levarem a cabo políticas que, por si só, não teriam capacidade de concretizar, mesmo quando os actores políticos as identificam como necessárias. E isto ocorre, não tanto pela coacção de facto, mas, sim, através da persuasão da opinião pública. O que leva a que se possa sustentar que, ao contrário do que é muitas vezes afirmado, a integração não tem ameaçado a soberania do Estado-nação, pelo contrário, tem contribuído, ainda que de forma indirecta, para a sua salvação (veja-se a este propósito, o livro de Alan Milward, The European Rescue of the Nation State). Mas, este comportamento, característico do Estado português, levanta, entre outros, dois tipos de problemas.
Primeiro, o que se prende com a eventual tendência das políticas públicas, assim que a pressão externa é aliviada ou desaparece, para abandonarem o padrão de ajustamento e regressarem ao modelo prévio. Exemplo disto seria, por exemplo, a reposição do sistema de progressão automática de carreiras na função pública quando fossem ultrapassadas as dificuldades que enfrenta a despesa.
Segundo, o que tem a ver com a tentação de importar modelos que noutros países se revelaram virtuosos, mas que não são adequados à realidade social portuguesa. Na verdade, muitas soluções “europeias”, que entusiasmam na teoria e que aparentam ser panaceias para todos os males, tendem, na prática, a revelar-se exactamente o contrário. A Europa pode servir de exemplo e constrangimento positivo. Mas para que assim seja, é necessário realismo e uma dose justa de conhecimento dos equilíbrios frágeis em que assenta o Estado, mas, essencialmente, a sociedade e o tecido empresarial portugueses. Importar o que vem de fora de modo acrítico, tem sido um erro demasiadamente popular na história política portuguesa recente.
Quando, entre nós, se celebram vinte anos da assinatura da adesão e numa altura em que a Europa, a propósito do Tratado Constitucional, tem embarcado em discussões, por vezes, fetichistas, era bom recordar que foi também a integração que ajudou a criar uma entidade capaz de funcionar como desculpa para os Estados-nação ajustarem as suas políticas públicas. Sob a pressão do constrangimento europeu, e em nome do défice, Portugal pode estar, novamente, a ser salvo pela Europa.
publicado no Diário Económico

quarta-feira, junho 15, 2005

Saber Resistir

A unanimidade em torno da ideia de colocar fim a privilégios injustificados tornou-se muito popular. De funcionários públicos a juizes e farmacêuticos, passando pela classe política, vários foram os grupos e corporações identificados como detentores de regalias inaceitáveis. E aí começam os problemas: em abstracto, todos os portugueses são a favor do fim de privilégios; o mesmo acontece em concreto, desde que os privilégios postos em causa não sejam os seus. O governo optou por enfrentar vários interesses ao mesmo tempo. Naturalmente que quase ninguém ficou satisfeito, e nem sequer serviu de compensação o facto do vizinho ter sido também “atacado”.
Há, por isso, duas marcas distintivas na governação de José Sócrates. A primeira é terem sido abertas muitas frentes de acção em simultâneo. A segunda é que, nesse processo, também foram enfrentados os grupos que compõem tradicionalmente a base de apoio eleitoral do Partido Socialista: à cabeça os funcionários públicos e entre estes os professores.
Comparemos o que agora se passa com o que se passou durante os governos de António Guterres. Então, o caderno reivindicativo dos funcionários públicos e dos professores em particular foi, por diversas vezes, satisfeito. O clima político que se vivia era de descompressão e o diálogo a palavra de ordem. Com uma maioria relativa no parlamento, restavam ao Governo de Guterres poucas opções para além de surfar o contexto. Hoje, é quase tudo ao contrário e o país tem, no médio prazo, muito a lucrar com isso.
Em termos relativos, sublinhe-se o relativo, os professores do 2º e 3º ciclo são, entre os funcionários públicos, dos grupos profissionais com uma situação laboral mais protegida. Considerando o seu núcleo duro, não apenas têm vínculos contratuais inamovíveis, como beneficiam de uma série de mecanismos que lhes permitem reduzir, de facto, os horários de trabalho, gozando ainda de um período de férias invejável. Normalmente, é dito que isso acontece para compensar o facto da profissão ser desgastante e ter uma componente não lectiva também exigente.
Confesso que este argumento sempre me pareceu frágil. Será a profissão de professor mais exigente do que a de um funcionário público que atende numa repartição de finanças ou num centro de emprego? Ou o que dizer de um enfermeiro ou de um médico que até uma idade avançada é obrigado a fazer bancos no hospital? Há alguma razão para um professor poder ter horários mais leves do que os restantes funcionários do Estado? Ainda para mais num quadro em que as famílias necessitam que os seus filhos estejam durante mais tempo na escola, em ocupações não curriculares, de modo a compensar as vidas profissionais mais exigentes dos pais.
No entanto, onde a situação atinge contornos de verdadeiro escândalo é no número impressionante de professores que tem horários zero (ou seja, são pagos pelo Ministério da Educação sem terem, por diversas razões, que dar aulas). Ou, ainda, naquilo que julgo ser situação única, na existência de sindicatos que não têm qualquer actividade, mas que existem para, ao terem órgãos eleitos, desobrigarem alguns professores da actividade lectiva (que ainda assim continuam a ser pagos pelo Ministério). Trata-se de um total desrespeito pelos colegas e, essencialmente, pela dignidade do movimento sindical.
Ora, face a este quadro, o Governo decidiu proceder a uma série de alterações que só podem ser consideradas razoáveis e legítimas num contexto de austeridade como o que vivemos. Por um lado, medidas que visam colocar fim a mecanismos que permitiam acumular os vários tipos de redução da componente lectiva (a antiguidade, a idade, mas, também, o exercício de cargos de natureza pedagógica). E por outro, apostando em medidas que moralizem o sistema: restringindo os destacamentos de professores para outros serviços que não as escolas; dificultando a acumulação da docência com outras funções (há cerca de 10 mil professores que se encontram nesta situação!); e, ainda, criando procedimentos mais ágeis na análise das situações de redução ou dispensa da actividade lectiva por doença.
Neste contexto, as principais federações sindicais decidiram convocar uma greve, para a próxima semana, nos dias em que decorrem os exames nacionais. A data foi escolhida, a acreditar nas declarações de um dirigente sindical que ouvi num telejornal, porque depois disso os alunos já não estão nas escolas.
Isto significa duas coisas. Antes de mais, que fazer greve fora do período de aulas não tem qualquer efeito – o que ajuda a fazer cair por terra o argumento da relevância das actividades não lectivas no trabalho dos professores. Depois, revela algo que é característico do ensino em Portugal: o sistema é frequentemente orientado para servir os professores e não as famílias e os alunos. Só assim se explica que se opte por convocar uma greve precisamente para um momento de exames nacionais, dias que os alunos e as famílias enfrentam com particular ansiedade.
O caso dos professores é paradigmático das resistências e barreiras que o Governo vai enfrentar sempre que passar do discurso abstracto para a sua concretização prática. Além de que é um sector particularmente sensível do ponto de vista da sustentabilidade política do executivo, já que, tradicionalmente, o PS tem uma significativa penetração eleitoral neste grupo. Num momento em que é preciso tomar medidas difíceis, saber resistir às reacções corporativas tem de ser parte essencial da acção do Governo. Saber resistir aos interesses da própria base eleitoral é, além do mais, um sinal de coragem política. Algo que o país precisa.
artigo publicado em A Capital

quarta-feira, junho 08, 2005

Tanto trabalho para isto!

A margem de manobra para a estratégia do Governo era curta. É verdade que as condições institucionais eram ímpares na história política recente. Com uma sólida maioria absoluta de um só partido, com o Presidente e o governador do Banco de Portugal a apoiarem a estratégia seguida, era possível convencer os portugueses da necessidade de um pacote de políticas de austeridade. Bastava que a isso se somasse a sensibilidade política que faltou a Durão Barroso quando optou pelo discurso da tanga. Por isso, a táctica seguida foi clara: um conjunto de declarações sobre a dimensão chocante do défice servia para criar o contexto; depois, face ao valor apurado, José Sócrates tinha condições para impor medidas difíceis, diminuindo o impacto negativo das mesmas na popularidade do Governo. Mas, ainda assim, a estratégia tinha custos elevados que havia que minorar. Para tal, era preciso encontrar uma dimensão que colocasse a opinião pública em sintonia com o Governo. A opção foi compensar a austeridade com o fim de privilégios da classe política, generalizadamente vistos como injustificados.
Acontece que esta opção, sendo muito popular, acarretava riscos enormes, visto trilhar caminhos perigosos. E, na verdade, poucos dias bastaram para que o feitiço se virasse contra o feiticeiro. Estava tudo a correr tão bem, pensava o Governo. A prestação de José Sócrates fora muito convincente, o país tinha interiorizado a necessidade de passar por momentos difíceis e a popularidade do governo não se havia ressentido significativamente com as opções tomadas. Mas, no melhor pano cai a nódoa. E quando as nódoas são claramente evitáveis, têm tendência a deixar uma marca forte, que raramente sai. A acumulação da subvenção vitalícia do Banco de Portugal com o ordenado de Ministro por Campos e Cunha é uma nódoa que o bom senso deveria ter evitado.
Se acreditarmos nos sinais que chegam à imprensa, Campos e Cunha tem sido um elemento perturbador da coesão interna do Governo. Primeiro, porque ainda antes de tomar posse fez declarações que contradiziam o defendido pelo Primeiro-Ministro, ao vir falar do aumento de impostos. Depois, porque, através de fugas seleccionadas, foi colocando constrangimentos sobre os seus colegas para que se vissem obrigados a adoptar as soluções por ele defendidas – leia-se, o inevitável aumento dos impostos. Caso contrário, ficámos a saber na altura, pelo Expresso, apresentaria a sua demissão. Até aqui estávamos no domínio da pressão legítima sobre os restantes membros do Governo. Se a opção tomada foi a melhor, é outra questão.
Mas com a acumulação de remunerações, o caso muda de figura. O que está em causa não é, naturalmente, um assunto de legalidade. É evidente que Campos e Cunha tem toda a legitimidade formal para acumular o ordenado de Ministro com a subvenção de oito mil euros por ter sido durante seis anos vice-governador do Banco de Portugal. O que está em causa é uma questão política, com um impacto simbólico que contagia toda a acção do executivo. Isto é sobretudo verdade porquanto foi o governo que decidiu pôr fim a regalias injustificadas da classe política para dar o exemplo.
E o problema poderia ter sido evitado. Bastava um pouco de sensibilidade para os tempos que vivemos. Aliás, a solução parece já ter sido encontrada, com a decisão do Governo de aprovar um diploma que obriga quem exerce cargos políticos e é, simultaneamente, beneficiário de uma pensão a optar pela totalidade de uma das remunerações e um terço da outra. A solução é boa, mas chegou tarde e já não serve para limpar a nódoa. O que é estranho é que um Ministro que foi a face visível do combate aos privilégios injustificados, não se tenha apercebido, no mesmo momento em que apresentava medidas austeras para a função pública, que também ele beneficiava de um privilégio absolutamente injustificado. O Ministro Campos e Cunha teve a oportunidade de dar o exemplo e ajudar à aceitação pública das medidas do Governo. Na altura adequada, não o quis fazer. Agora, é tarde.
Contudo, a publicitação do sistema de reformas do Banco de Portugal levanta outras questões, talvez bem mais gravosas. Parece que Campos e Cunha não foi responsável pela criação deste esquema de pensões. Mas então quem foi? Que país é este onde a grande maioria dos trabalhadores que faz descontos para a segurança social recebe pensões modestas, mas que são as praticáveis, e depois é possível a alguém, por exercer um cargo durante seis anos, e mesmo quando está ainda em idade activa, ficar a receber uma remuneração vitalícia de mais de 1500 contos mensais? Como é que é financiado este esquema de pensões? Beneficia quem? Qual é a sua sustentabilidade? E serve para quê?
Esta é, afinal, uma das características perversas do Estado português: a capacidade de sobreproteger certos sectores da população, ao mesmo tempo que deixa em situação precária grande parte dos portugueses. Poucas coisas contribuem tanto para o descrédito do Estado como a existência destas regalias injustificados – sejam elas no Banco de Portugal, na Caixa Geral de Depósitos, em alguns corpos especiais ou entre a classe política. A sensação de que há dois países mina a confiança dos portugueses nas instituições.
Por tudo isto, Campos e Cunha perdeu a legitimidade e a autoridade para exigir sacrifícios aos portugueses. O Governo teve tanto trabalho para levar avante a sua estratégia de pôr fim a um conjunto de privilégios que não merecia que isto lhe acontecesse.
publicado em A Capital

quarta-feira, junho 01, 2005

Dr. Cavaco e Sr. Bismarck: a mesma táctica

Nos últimos dias, o “mito Cavaco” tem revelado os seus pés de barro. A procissão ainda nem sequer se aproximou do adro e as fragilidades do proto-candidato começam a vir ao de cima. O artigo de Miguel Cadilhe veio consolidar uma ideia que já vinha fazendo o seu caminho – o pai do “monstro voraz” é, afinal, Cavaco Silva. Vale a pena, a este propósito, recuar no tempo, para se perceber como muitas das ideias feitas em torno de Cavaco Silva são falsas e o seu prestígio frequentemente fundado na falta de memória.
Na verdade, como tem sido assinalado, hoje, a situação do país é comparável com a de 1983. Então, como é sabido, PS e PSD coligaram-se para levar a cabo políticas necessárias para cumprir os requisitos para a adesão à então CEE e, ao mesmo tempo, sanear as contas públicas. A coligação improvável serviu para tornar possível medidas de austeridade, garantindo, simultaneamente, que a sua impopularidade não encontraria eco na disputa político-partidária. E o que fez então Cavaco Silva?
Simples. Em 1985, foi fazer a rodagem do seu carro à Figueira da Foz, tendo sido eleito líder do PSD, baseado numa plataforma que fazia do combate demagógico ao Bloco Central a principal bandeira. O mesmo Cavaco Silva que hoje se apresenta como arauto do rigor e da austeridade, ascendeu ao poder surfando a onda da impopularidade do Bloco Central. O Governo tomava medidas difíceis, mas que hoje ninguém hesita em classificar de absolutamente necessárias. Cavaco Silva aproveitou a impopularidade do Governo para trepar os primeiros degraus do poder.
Uma vez ganhas as eleições de 1985, consolidou algumas das características que já estavam latentes na sua acção. Antes de mais, a ideia de que não era um político e que se encontrava fora do sistema. Algo de espantoso para alguém que ao longo da sua vida o que fez foi essencialmente política. Senão vejamos: quando Pinto Balsemão era primeiro-ministro, foi um dos principais instigadores da oposição interna no PSD; antes já tinha sido Ministro das Finanças e viria a ser Primeiro-Ministro por uma década e candidato derrotado à Presidência da República. Ainda assim, continua a passar por ser essencialmente um Professor, alguém que está acima da disputa partidária. Apesar de pouco se conhecer da sua actividade académica.
Contudo, insiste em ser o político anti-classe política. O último exemplo disso mesmo foi o artigo sobre a boa e a má moeda, publicado nas vésperas da queda do Governo Santana Lopes. Então, toda a gente se apressou a dar cobertura à tese da suposta degradação da classe política, por contraponto a um momento anterior (terá sido o dos memoráveis elencos governativos de Cavaco Silva?). Mesmo à esquerda, houve um uso instrumental das palavras do ex-primeiro-ministro (do que me recordo, apenas com a excepção de Manuel Alegre). O que importava, então, era o objectivo táctico de derrubar Santana Lopes. Meses depois, o objectivo estratégico é encontrar um adversário presidencial para Cavaco e paga-se a táctica de há uns meses.
Mas, porventura, o aspecto mais característico da sua acção como primeiro-ministro foi a aplicação, em Portugal, do que é chamado de “efeito Bismarck”. O princípio é simples. Otto von Bismarck, enquanto primeiro-ministro da Prússia, na segunda metade do século XIX, tinha dois grandes objectivos: o primeiro era a unificação de uma nação, no caso a Alemanha, e o segundo era contrariar o poder crescente do movimento social-democrata. O que o chanceler Bismarck fez para responder a este duplo problema foi aplicar o que se tornaria uma solução politicamente popular entre os líderes de perfil autocrático.
O “efeito Bismarck” consiste, no essencial, na conjugação de dois tipos de medidas políticas. Um primeiro que visa a fidelização dos agentes da administração pública ao poder político e que assenta na criação de situações de privilégio relativo dos funcionários públicos em termos de vínculo laboral e de protecção na reforma; e um segundo que passa por generalizar a protecção social, com um perfil conservador e fora de uma lógica emancipatória, como forma de esvaziar, ainda que com propósitos diferentes, o caderno reivindicativo do movimento social-democrata. O resultado destas medidas é historicamente a criação de um modelo de Estado Providência de perfil corporativo e conservador.
Ora, o que Cavaco Silva fez enquanto primeiro-ministro foi precisamente isto. Vivia-se um contexto de algum desafogo financeiro, o país beneficiava da alavanca de desenvolvimento do primeiro Pacote Delors e o Governo optou por apostar no desenvolvimento do “monstro voraz”. Fê-lo através da criação de um conjunto de regalias para a administração pública que, no médio prazo, se têm tornado financeiramente insustentáveis e socialmente iníquas (à cabeça a promoção automática das carreiras, que por si só representa uma parcela muito importante do aumento da despesa com remunerações). Ao mesmo tempo que se aumentou a dimensão social do Estado, sem cuidar da sua modernização – por exemplo, aumentaram-se as pensões sem que houvesse uma preocupação de aumentar a justiça interna ao sistema de pensões.
Com a recuperação subliminar da ideia autoritária de que não era um político, herdando algum desafogo financeiro consequência das medidas difíceis tomadas durante o Bloco Central e dos fundos comunitários, Cavaco Silva, para ganhar eleições, limitou-se a aplicar uma fórmula conhecida: aumentou, de modo perverso, as regalias dos funcionários públicos e a dimensão social do Estado. No fundo, utilizou a táctica já experimentada cem anos antes por Bismarck, na Alemanha. O resultado só poderia ser a criação de um Estado que é um “monstro”, não tanto pelo que gasta, mas pelos obstáculos corporativos que cria e que dificultam a sua reforma e adequação a novos contextos. Que, mesmo assim, Cavaco Silva tenha construído a imagem de alguém que tomou medidas difíceis não deixa de ser espantoso. Afinal, o que fez foi governar do modo mais fácil, mas que é também aquele que deixa herança mais pesada no médio-prazo.
artigo publicado em A Capital