quarta-feira, junho 29, 2005

Derrotar Ferreira Torres

Estou convencido que na realidade nada é tal e qual como descrito pela teoria. Na política, pensava, isto era ainda mais verdade. Observadas todas as dimensões, nenhum partido, nenhum político é exactamente como a construção que de si é feita. Tudo e todos representam mais do que a ideia que deles é dada. Todos não. Avelino Ferreira Torres é uma excepção. É difícil encontrar outro político que tipifique de forma tão linear um conceito. Ferreira Torres é o populista. O populista em todo o seu esplendor. O populista sem subterfúgios, sem dimensão escondida para um dia nos surpreender.
Não há, entre nós, outro exemplar que corporize de modo tão nítido o populismo político. Em Ferreira Torres está lá tudo. O distanciamento face aos outros políticos; os métodos duvidosos; a proximidade com o submundo do futebol; a imagem de que subiu “na vida a pulso”; a aposta no desenvolvimento urbano selvático e a coligação objectiva com a comunicação social tablóide.
Agora, depois de ter dado cabo do Marco de Canavezes, tornando o concelho num caso de estudo de caciquismo e caos urbanístico, a figura resolveu avançar como independente, liberto das agrilhoas partidárias, para o concelho vizinho de Amarante. Não se trata de um concelho qualquer. Amarante é uma das terras mais preservadas do distrito do Porto, tem um património cultural relevante e um Presidente de Câmara decente. Que terá feito Amarante para correr o risco de ter o senhor do Marco como Presidente da Câmara?
A sessão de apresentação da sua candidatura à autarquia, este fim de semana, foi um exemplo paradigmático do populismo político.
A crer nos relatos, Ferreira Torres terá dito que com ele “não haveria tachos”. Pois não, afinal o personagem não é como os outros políticos – leia-se, os que se enchem e enchem os seus amigos, criando vastas clientelas. Claro, basta visitar o Marco e questionar as oposições. No entretanto, já que não há tachos, vai oferecendo viagens de helicóptero aos amarantinos – como que reproduzindo as viagens de automóvel oferecidas pelos caciques locais no princípio do século.
Depois, com ele, naturalmente que há desenvolvimento, “a terra anda para frente”. Não por acaso, à cabeça do seu programa eleitoral, encontra-se “a substituição dos cruzamentos com semáforos por rotundas” (sic). Afinal, como lembrava um dos participantes no jantar, “diz-se que ele faz e acontece, mas tem obra; os outros, que não fazem nem acontecem, não têm nada para mostrar". Há um pequeno problema, a “obra” de que fala o comensal assentou no essencial em duas coisas: endividamento brutal da autarquia a que presidiu e crescimento caótico do concelho.
Para culminar tudo, estão as companhias. O homem que deu o seu nome a um estádio – num exemplo que tem seguidores um pouco por todo o país – aproveitou o jantar para ser homenageado pelos Super Dragões. Conhecido invasor de campos de futebol e pontapeador de bancos de suplentes, faz todo o sentido que seja distinguido por um conjunto de rapaziada que se tem especializado em destruir estações de serviço.
Mas, entre os que frequentaram o repasto não se encontravam só uns exemplares de gangs de desordeiros. Também lá estavam, para compor o ramalhete, as “celebridades” da quinta: a Cinha que foi “apoiar o homem”, o Pedro Reis que tem “a certeza que ele vai fazer muito por esta cidade que parece fantástica” ou ainda a Paula Coelho, que queria ser vereadora do desporto. As hostes agradeceram. Uma participante mais entusiasmada disse mesmo: “isto é uma loucura, nunca tinha visto tanta gente famosa à minha frente. São tão simpáticos e afáveis que quase se parecem connosco, gente do campo e das aldeias”. Claro está, o personagem interessa às televisões populistas. O seu eleitorado confunde-se com o público tablóide. Além de que, mesmo sendo político, ele é diferente. É um deles, do “povo”, mas tem o poder de os aproximar daqueles que a televisão todos os dias lhes impõe como modelo de sucesso e de vida realizada. Exploração dos aspectos mais resistentes da pobreza em Portugal, é disso que se trata.
Foi com futebol, caciquismo, “obra” e desrespeito das regras de decência do jogo democrático que Ferreira Torres reinou no Marco durante anos a fios. E, como é sabido, em programa que ganha não se mexe. Em Amarante, bastou somar a televisão popular e os seus personagens filisteus para termos uma mistura ainda mais explosiva. Uma mistura que o dá à frente nas sondagens.
Por tudo isto, em Outubro, derrotar Ferreira Torres em Amarante é fundamental para o concelho. Mas, os amarantinos, ao derrotarem Ferreira Torres, estarão também a dar um sinal para a democracia portuguesa de que a coligação da decência é mais poderosa do que as velhas lógicas caciquistas e clientelares, agora apoiadas pela comunicação social tablóide. Derrotar Ferreira Torres é dar uma vitória à democracia. O que, nos tempos que correm, não é pouco.
P.S.
Há pouco mais de um ano que, a convite do Luís Osório, escrevo semanalmente na Capital. Durante este período, pude observar como, sob a sua direcção e do Rogério Rodrigues, A Capital se transformou de um jornal em declínio num jornal com crescente notoriedade. Além do mais, mesmo com conhecidos constrangimentos e limitações, num ano, mostraram que há espaço para um quotidiano simultaneamente menos institucionalizado e ideologicamente mais engajado. Perante a sua demissão, não posso deixar de lhes dar os parabéns pelo trabalho notável, agradecer-lhes o convite para escrever e fazer votos para que A Capital possa continuar o seu processo de “renascimento”.
publicado em A Capital