quarta-feira, junho 01, 2005

Dr. Cavaco e Sr. Bismarck: a mesma táctica

Nos últimos dias, o “mito Cavaco” tem revelado os seus pés de barro. A procissão ainda nem sequer se aproximou do adro e as fragilidades do proto-candidato começam a vir ao de cima. O artigo de Miguel Cadilhe veio consolidar uma ideia que já vinha fazendo o seu caminho – o pai do “monstro voraz” é, afinal, Cavaco Silva. Vale a pena, a este propósito, recuar no tempo, para se perceber como muitas das ideias feitas em torno de Cavaco Silva são falsas e o seu prestígio frequentemente fundado na falta de memória.
Na verdade, como tem sido assinalado, hoje, a situação do país é comparável com a de 1983. Então, como é sabido, PS e PSD coligaram-se para levar a cabo políticas necessárias para cumprir os requisitos para a adesão à então CEE e, ao mesmo tempo, sanear as contas públicas. A coligação improvável serviu para tornar possível medidas de austeridade, garantindo, simultaneamente, que a sua impopularidade não encontraria eco na disputa político-partidária. E o que fez então Cavaco Silva?
Simples. Em 1985, foi fazer a rodagem do seu carro à Figueira da Foz, tendo sido eleito líder do PSD, baseado numa plataforma que fazia do combate demagógico ao Bloco Central a principal bandeira. O mesmo Cavaco Silva que hoje se apresenta como arauto do rigor e da austeridade, ascendeu ao poder surfando a onda da impopularidade do Bloco Central. O Governo tomava medidas difíceis, mas que hoje ninguém hesita em classificar de absolutamente necessárias. Cavaco Silva aproveitou a impopularidade do Governo para trepar os primeiros degraus do poder.
Uma vez ganhas as eleições de 1985, consolidou algumas das características que já estavam latentes na sua acção. Antes de mais, a ideia de que não era um político e que se encontrava fora do sistema. Algo de espantoso para alguém que ao longo da sua vida o que fez foi essencialmente política. Senão vejamos: quando Pinto Balsemão era primeiro-ministro, foi um dos principais instigadores da oposição interna no PSD; antes já tinha sido Ministro das Finanças e viria a ser Primeiro-Ministro por uma década e candidato derrotado à Presidência da República. Ainda assim, continua a passar por ser essencialmente um Professor, alguém que está acima da disputa partidária. Apesar de pouco se conhecer da sua actividade académica.
Contudo, insiste em ser o político anti-classe política. O último exemplo disso mesmo foi o artigo sobre a boa e a má moeda, publicado nas vésperas da queda do Governo Santana Lopes. Então, toda a gente se apressou a dar cobertura à tese da suposta degradação da classe política, por contraponto a um momento anterior (terá sido o dos memoráveis elencos governativos de Cavaco Silva?). Mesmo à esquerda, houve um uso instrumental das palavras do ex-primeiro-ministro (do que me recordo, apenas com a excepção de Manuel Alegre). O que importava, então, era o objectivo táctico de derrubar Santana Lopes. Meses depois, o objectivo estratégico é encontrar um adversário presidencial para Cavaco e paga-se a táctica de há uns meses.
Mas, porventura, o aspecto mais característico da sua acção como primeiro-ministro foi a aplicação, em Portugal, do que é chamado de “efeito Bismarck”. O princípio é simples. Otto von Bismarck, enquanto primeiro-ministro da Prússia, na segunda metade do século XIX, tinha dois grandes objectivos: o primeiro era a unificação de uma nação, no caso a Alemanha, e o segundo era contrariar o poder crescente do movimento social-democrata. O que o chanceler Bismarck fez para responder a este duplo problema foi aplicar o que se tornaria uma solução politicamente popular entre os líderes de perfil autocrático.
O “efeito Bismarck” consiste, no essencial, na conjugação de dois tipos de medidas políticas. Um primeiro que visa a fidelização dos agentes da administração pública ao poder político e que assenta na criação de situações de privilégio relativo dos funcionários públicos em termos de vínculo laboral e de protecção na reforma; e um segundo que passa por generalizar a protecção social, com um perfil conservador e fora de uma lógica emancipatória, como forma de esvaziar, ainda que com propósitos diferentes, o caderno reivindicativo do movimento social-democrata. O resultado destas medidas é historicamente a criação de um modelo de Estado Providência de perfil corporativo e conservador.
Ora, o que Cavaco Silva fez enquanto primeiro-ministro foi precisamente isto. Vivia-se um contexto de algum desafogo financeiro, o país beneficiava da alavanca de desenvolvimento do primeiro Pacote Delors e o Governo optou por apostar no desenvolvimento do “monstro voraz”. Fê-lo através da criação de um conjunto de regalias para a administração pública que, no médio prazo, se têm tornado financeiramente insustentáveis e socialmente iníquas (à cabeça a promoção automática das carreiras, que por si só representa uma parcela muito importante do aumento da despesa com remunerações). Ao mesmo tempo que se aumentou a dimensão social do Estado, sem cuidar da sua modernização – por exemplo, aumentaram-se as pensões sem que houvesse uma preocupação de aumentar a justiça interna ao sistema de pensões.
Com a recuperação subliminar da ideia autoritária de que não era um político, herdando algum desafogo financeiro consequência das medidas difíceis tomadas durante o Bloco Central e dos fundos comunitários, Cavaco Silva, para ganhar eleições, limitou-se a aplicar uma fórmula conhecida: aumentou, de modo perverso, as regalias dos funcionários públicos e a dimensão social do Estado. No fundo, utilizou a táctica já experimentada cem anos antes por Bismarck, na Alemanha. O resultado só poderia ser a criação de um Estado que é um “monstro”, não tanto pelo que gasta, mas pelos obstáculos corporativos que cria e que dificultam a sua reforma e adequação a novos contextos. Que, mesmo assim, Cavaco Silva tenha construído a imagem de alguém que tomou medidas difíceis não deixa de ser espantoso. Afinal, o que fez foi governar do modo mais fácil, mas que é também aquele que deixa herança mais pesada no médio-prazo.
artigo publicado em A Capital