quarta-feira, junho 15, 2005

Saber Resistir

A unanimidade em torno da ideia de colocar fim a privilégios injustificados tornou-se muito popular. De funcionários públicos a juizes e farmacêuticos, passando pela classe política, vários foram os grupos e corporações identificados como detentores de regalias inaceitáveis. E aí começam os problemas: em abstracto, todos os portugueses são a favor do fim de privilégios; o mesmo acontece em concreto, desde que os privilégios postos em causa não sejam os seus. O governo optou por enfrentar vários interesses ao mesmo tempo. Naturalmente que quase ninguém ficou satisfeito, e nem sequer serviu de compensação o facto do vizinho ter sido também “atacado”.
Há, por isso, duas marcas distintivas na governação de José Sócrates. A primeira é terem sido abertas muitas frentes de acção em simultâneo. A segunda é que, nesse processo, também foram enfrentados os grupos que compõem tradicionalmente a base de apoio eleitoral do Partido Socialista: à cabeça os funcionários públicos e entre estes os professores.
Comparemos o que agora se passa com o que se passou durante os governos de António Guterres. Então, o caderno reivindicativo dos funcionários públicos e dos professores em particular foi, por diversas vezes, satisfeito. O clima político que se vivia era de descompressão e o diálogo a palavra de ordem. Com uma maioria relativa no parlamento, restavam ao Governo de Guterres poucas opções para além de surfar o contexto. Hoje, é quase tudo ao contrário e o país tem, no médio prazo, muito a lucrar com isso.
Em termos relativos, sublinhe-se o relativo, os professores do 2º e 3º ciclo são, entre os funcionários públicos, dos grupos profissionais com uma situação laboral mais protegida. Considerando o seu núcleo duro, não apenas têm vínculos contratuais inamovíveis, como beneficiam de uma série de mecanismos que lhes permitem reduzir, de facto, os horários de trabalho, gozando ainda de um período de férias invejável. Normalmente, é dito que isso acontece para compensar o facto da profissão ser desgastante e ter uma componente não lectiva também exigente.
Confesso que este argumento sempre me pareceu frágil. Será a profissão de professor mais exigente do que a de um funcionário público que atende numa repartição de finanças ou num centro de emprego? Ou o que dizer de um enfermeiro ou de um médico que até uma idade avançada é obrigado a fazer bancos no hospital? Há alguma razão para um professor poder ter horários mais leves do que os restantes funcionários do Estado? Ainda para mais num quadro em que as famílias necessitam que os seus filhos estejam durante mais tempo na escola, em ocupações não curriculares, de modo a compensar as vidas profissionais mais exigentes dos pais.
No entanto, onde a situação atinge contornos de verdadeiro escândalo é no número impressionante de professores que tem horários zero (ou seja, são pagos pelo Ministério da Educação sem terem, por diversas razões, que dar aulas). Ou, ainda, naquilo que julgo ser situação única, na existência de sindicatos que não têm qualquer actividade, mas que existem para, ao terem órgãos eleitos, desobrigarem alguns professores da actividade lectiva (que ainda assim continuam a ser pagos pelo Ministério). Trata-se de um total desrespeito pelos colegas e, essencialmente, pela dignidade do movimento sindical.
Ora, face a este quadro, o Governo decidiu proceder a uma série de alterações que só podem ser consideradas razoáveis e legítimas num contexto de austeridade como o que vivemos. Por um lado, medidas que visam colocar fim a mecanismos que permitiam acumular os vários tipos de redução da componente lectiva (a antiguidade, a idade, mas, também, o exercício de cargos de natureza pedagógica). E por outro, apostando em medidas que moralizem o sistema: restringindo os destacamentos de professores para outros serviços que não as escolas; dificultando a acumulação da docência com outras funções (há cerca de 10 mil professores que se encontram nesta situação!); e, ainda, criando procedimentos mais ágeis na análise das situações de redução ou dispensa da actividade lectiva por doença.
Neste contexto, as principais federações sindicais decidiram convocar uma greve, para a próxima semana, nos dias em que decorrem os exames nacionais. A data foi escolhida, a acreditar nas declarações de um dirigente sindical que ouvi num telejornal, porque depois disso os alunos já não estão nas escolas.
Isto significa duas coisas. Antes de mais, que fazer greve fora do período de aulas não tem qualquer efeito – o que ajuda a fazer cair por terra o argumento da relevância das actividades não lectivas no trabalho dos professores. Depois, revela algo que é característico do ensino em Portugal: o sistema é frequentemente orientado para servir os professores e não as famílias e os alunos. Só assim se explica que se opte por convocar uma greve precisamente para um momento de exames nacionais, dias que os alunos e as famílias enfrentam com particular ansiedade.
O caso dos professores é paradigmático das resistências e barreiras que o Governo vai enfrentar sempre que passar do discurso abstracto para a sua concretização prática. Além de que é um sector particularmente sensível do ponto de vista da sustentabilidade política do executivo, já que, tradicionalmente, o PS tem uma significativa penetração eleitoral neste grupo. Num momento em que é preciso tomar medidas difíceis, saber resistir às reacções corporativas tem de ser parte essencial da acção do Governo. Saber resistir aos interesses da própria base eleitoral é, além do mais, um sinal de coragem política. Algo que o país precisa.
artigo publicado em A Capital