quinta-feira, setembro 22, 2005

Desfazendo Evidências

Com a abertura do ano lectivo e com o relatório da OCDE divulgado na semana passada, a educação foi de novo notícia. Voltámos a saber que o nosso nível de escolaridade é o mais baixo da OCDE, atrás da Turquia, com mais de 30 anos de atraso em relação à média e uma eternidade de quase um século face aos países escandinavos. Este é o cenário grotesco em que vivemos, um cenário que aliás se tem mantido constante. Basta recordar que já em 1897, num Manifesto subscrito, entre outros, por Bernardino Machado, se escrevia, perante os primeiros dados estatísticos comparativos, que “o Portugal de tradições orgulhosas, o descobridor da Índia, está, pela instrução, muito abaixo da Turquia”. Assim era no final do século XIX e assim se mantém hoje.

Mas, com o regresso da educação à agenda mediática, chegaram também muitas das “evidências” em que se baseia o discurso sobre o tema. Se há terreno onde imperam os “achismos”, opiniões baseadas em pseudo-evidências, sem sustentação empírica e cuja veracidade assenta na sua repetição ao longo dos tempos, esse é o da educação. Era, por isso, importante que, mais do que repetirmos debates fundados em dicotomias improdutivas, fossemos capazes de cortar com o senso comum que contamina o campo da educação.

É este, em parte, o propósito do livro “Evidentemente - histórias da educação” de António Nóvoa, publicado pelas Edições ASA (2005): superar as oposições e as banalidades “irritantemente óbvias, mas sempre repetidas como se fossem novidade” em que assentam as discussões sobre as coisas da educação. O exercício é, a um tempo, simples e sofisticado. Através de 50 textos, cada um de uma página, ilustrados com imagens, procura-se de modo assumidamente incompleto traçar a genealogia de muitas das discussões sobre educação em Portugal.

Lidas as páginas, o que perpassa é a ideia de que, ao longo de dois séculos, se discutiu invariavelmente da mesma maneira, como se fosse impossível acumular conhecimento e valorizar as realizações que, de facto, ocorreram. Como escreve Nóvoa, “quando se trata de educação, nenhum político tem dúvidas, nenhum comentador se engana, nenhum português hesita. Palavras gastas. Inúteis. Banalidades. Mentiras. O que é evidente, mente. Evidentemente.” Dois exemplos paradigmáticos: a ignorância dos alunos e o atraso educacional.

Sendo difícil situar com exactidão o período em que se generalizou a ideia de que os alunos estão cada vez mais mal preparados, a verdade é que se trata de um discurso há muito presente. Se os alunos são cada vez mais ignorantes, tal deveria acontecer por relação a um momento anterior, em que supostamente estariam mais bem preparados. Acontece que, desde finais do século XIX, se diz que os alunos sabem sempre menos. O que hoje se ouve frequentemente, já se ouvia no passado. Por exemplo, em 1947, João Anglin escrevia, “quem anda envolvido nas lides do ensino sabe a dose de benevolência que é preciso empregar para não excluir maior número de alunos, dado o grau de preguiça e de indigência mental a que se chegou”. No livro, as referências similares são muitas, dando corpo a um discurso passa-culpas que persiste.

Desde meados do século XIX que o atraso de Portugal surge directamente ligado ao retrato educativo do país. Vamo-nos “descobrindo, periodicamente, um país atrasado. Fixamos metas imaginando os outros países parados. Por isso, quando as cumprimos, constatamos perturbados que a distância que nos separa da ‘civilização’ é cada vez maior”. Hoje, estamos tão pessimistas como sempre, basta lembrar o que escreveu Agostinho de Campos, em 1933: “de quando em quando, ouve-se por aí, muito a sério e em tom de profundo convencimento: precisamos de uma reforma geral do ensino... melhor seria dizer, logo de uma vez: faz-nos falta um milagre da nossa senhora de Fátima.”
É por isso que, como parece sugerir Nóvoa, o caminho da mudança dever-se-ia basear mais na reforma do que já existe do que na invenção do que poderá ser. E este movimento deveria assentar menos no voluntarismo político – que insiste em impor reformas legislativas a partir do centro – e mais na dotação das escolas com capacidades autónomas de inovação e de desenvolvimento. Na educação, como em tudo o resto, o caminho faz-se de pequenos gestos, de estudo e investigação. “A certeza de conhecer e de possuir “a solução” é o caminho mais curto para a ignorância. E não se pode acabar com isto?” questiona o autor. O seu livro, pelos efeitos demonstrativos, é um bom contributo para esse objectivo.

artigo publicado no Diário Económico.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Consequências à esquerda

A candidatura de Mário Soares teve, num primeiro momento, o efeito de mostrar que Cavaco Silva estava longe de ter uma avenida aberta até Belém. De repente, o que parecia uma eleição irremediavelmente perdida para a esquerda deixou de o ser. Com Soares na corrida, foi Cavaco Silva que passou a ter de recuperar terreno. Mas, os primeiros momentos rapidamente passam. Com a pulverização de candidaturas à esquerda o cenário pode mudar de novo.

Hoje, o que importa saber é se a existência de um candidato do PCP e outro do BE são úteis para derrotar Cavaco. Será que estes candidatos podem contribuir para a mobilização do eleitorado de esquerda, fazendo o essencial do discurso contra-Cavaco e permitindo a Mário Soares um regresso ao seu posicionamento tradicional, mais ao centro-esquerda? Ou, pelo contrário, a unidade em torno de um candidato único à direita, face à pulverização à esquerda, favorecerá Cavaco Silva? A este propósito, é importante lembrar duas ou três coisas.

Em primeiro lugar, há que contar com a despolitização crescente do País. Os sintomas de desafectação dos portugueses face à política são crescentes, o que leva a que, cada vez menos, exista disponibilidade para ouvir falar de política, “aturar” campanhas eleitorais e eleições. Este contexto ajudará a tornar a existência de uma segunda volta muito improvável. Os portugueses quererão resolver a eleição de uma só vez, até porque a opção é, efectivamente, entre dois candidatos.

Em segundo lugar, como chamou a atenção Pedro Magalhães (www.margensdeerro.blogspot.com), em 1986, altura em que à esquerda houve três candidatos contra um à direita, a soma dos votos nesses três candidatos foi inferior à soma dos votos dos partidos que os apoiavam nas legislativas imediatamente anteriores. Ou seja, na primeira volta das presidenciais de 1986, Soares, Zenha e Pintasilgo tiveram menos votos do que PS, PRD e PCP nas legislativas de 1985. A este facto há que somar o que aconteceu nas legislativas de 1995 e nas presidenciais de 1996. Também nessa altura, e quando a sua imagem estava longe da de hoje, Cavaco somou mais votos aos resultados dos partidos de direita do que Sampaio à esquerda. Em Janeiro, findo o “estado de graça” do actual governo, a maioria de votos dos partidos de esquerda nas últimas legislativas - que foi esmagadora - dificilmente será apropriada pelos candidatos de esquerda.

Em terceiro lugar, a existência de um candidato à direita e de três à esquerda ajuda a que o candidato de direita se posicione para lá dos partidos que o apoiam, ao mesmo tempo que os candidatos de esquerda surgem como prolongamento de cada um dos três partidos. Aceitando que os portugueses tendem a escolher para presidente alguém com independência partidária, a pulverização de candidatos não é de todo útil à vitória da esquerda.

Mas, no essencial, o que as candidaturas de Jerónimo de Sousa e de Francisco Louçã nos dizem é que estão no terreno para se marcarem mutuamente. O objectivo já não é, nem derrotar Cavaco, nem mobilizar o eleitorado de esquerda. Pelo contrário, o principal propósito dos dois candidatos é impedir que num caso o BE e noutro o PCP ocupem a agenda da política doméstica. Desse ponto de vista, o BE tem especiais responsabilidades. É que em lugar de revelar a sua suposta modernidade, apoiando à primeira volta um candidato ganhador, optou por retomar a postura de que é um partido de fora do sistema, revelando a sua irresponsabilidade perante uma eventual vitória de Cavaco. A replicação pelo BE da táctica tradicional do PCP terá, além do mais, o condão de obrigar a que os candidatos de ambos os partidos não desistam, sob pena de perderem definitivamente a face. O erro está feito, pelo que, daqui para a frente, PCP e BE estarão confrontados com uma de duas hipóteses: ou contribuem para a vitória de Cavaco e para o esfrangalhamento da esquerda ou repetem o velho truque da desistência. Em qualquer dos casos serão actores numa farsa.

É por isso que depois de com a disponibilidade corajosa de Mário Soares a esquerda ter ganho vantagem na corrida para Belém, nas últimas semanas, com as candidaturas de Jerónimo de Sousa e de Francisco Louçã e, essencialmente, com o espiral de declarações de ambos, assumindo o compromisso de irem até ao fim, Cavaco, enquanto se esconde em mais um tabu, tem, sem ter ido a jogo, marcado pontos.

publicado no Diário Económico.