quinta-feira, dezembro 15, 2005

uma obra notável

“Allegro ma non troppo” (tradução portuguesa, Celta Editora). Assim se chama uma obra notável, na qual o historiador italiano Carlo M. Cipolla define as cinco leis fundamentais da estupidez humana. Entre estas destaca-se aquela que o próprio qualifica de regra de ouro: “uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa um dano a outra pessoa ou grupo de pessoas, sem que disso resulte alguma vantagem para si, ou podendo até vir a sofrer um prejuízo”. Esta lei assenta na divisão dos seres humanos em quatro categorias distintas: os crédulos; os inteligentes; os bandidos e os estúpidos. Na quinta lei, Cipolla afirma mesmo que “a pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigosa que existe”. Para bem da simplificação, e tendo em conta os quatro tipos definidos, o historiador italiano chega a um corolário lógico: “o estúpido é mais perigoso do que o bandido”, precisamente por causar perdas ao bem-comum, sem que daí obtenha ganhos. Há, no entanto, um problema adicional: nas sociedades em declínio, é permitido aos membros estúpidos tornarem-se mais activos, podendo mesmo levar toda uma sociedade à ruína. Ao longo dos tempos, é possível identificar diversos casos históricos onde tal ocorreu.

“Uma obra notável”, foi também desta forma que o Procurador-Geral da República qualificou o trabalho do Ministério Público no âmbito do processo Casa Pia. Acontece que o verdadeiramente notável nesta história têm sido as declarações e a acção do Procurador-Geral. A obra, essa, é infelizmente trágica. Trágica porque a verdade sobre o que de facto se passou na Casa Pia é hoje uma miragem e porque, neste processo, foi possível, levianamente, desfazer reputações públicas e vidas pessoais. Com prejuízo para muitos e sem benefício para ninguém.

E teria sido possível seguir outro caminho? Claro que sim. Desde os primeiros momentos que os indícios da fragilidade da investigação eram manifestos - testemunhos incoerentes e no mínimo delirantes; prisões decretadas sem fundamento legal e com base em escutas burlescas. Mas, em lugar de proceder a uma investigação aos caminhos que levava a investigação, o Procurador-Geral optou sempre por dar votos de confiança à equipa que dirigia o processo, chegando ao ponto de endereçar elementos de contra-prova para a mesma e, mais tarde, optando por avocar as queixas apresentadas por testemunhos falsos, encaminhando-as para os mesmos procuradores que as haviam considerado credíveis. Perante a fragilidade da investigação – que saltava à vista de quem quisesse ver e que acabaria inevitavelmente por nos trazer à actual descredibilização do processo – o Procurador não enveredou pelo caminho sensato de procurar perceber o que de facto se passava, preferindo dar cobertura sistemática a erros grosseiros.

O resultado é hoje claro. Três anos depois, quem quer que estivesse interessado em lançar uma cortina de fumo sobre os factos ocorridos na Casa Pia não sonharia encontrar-se em melhor posição do que a actual. A verdade é, hoje, um objectivo inalcançável. O que sobra é dúvida e descrédito. Sobre todos paira a suspeição, sem que daí resulte qualquer vantagem para o apuramento da verdade. Pelo caminho, desfizeram-se reputações e vidas pessoais – para além do dano colateral que foi a decapitação de uma direcção partidária. É esta a obra notável do Procurador-Geral da República, acolitado pelos sempre solícitos drª Catalina Pestana, drsº Pedro Strecht e João Guerra, isto já para não falar do inspector Dias André ou dos, entretanto desaparecidos, drsº José Pedro Namora e Rui Teixeira.

Pegando na tipologia de Carlo Cipolla, poder-se-ia dizer que bandidos estiveram certamente por detrás do que realmente se passou na Casa Pia. Antes de mais, por terem sido os verdadeiros responsáveis pelos bárbaros abusos sexuais, mas, igualmente, porque depois foram capazes de gerar uma enorme confusão em redor do processo. Contudo, a prossecução deste fim requereu o auxílio de “estúpidos”, sem os quais não teriam alcançado os seus objectivos. Ao longo destes anos eles foram vários. E uma coisa é clara: quando a Justiça não funciona, afastando-se da verdade e, pelo caminho, lesa o interesse de terceiros, as sociedades democráticas caminham para a ruína.
publicado no Diário Económico