domingo, fevereiro 27, 2005

Causas e consequências

É impressionante a unanimidade em torno da exclusividade da culpa de Santana Lopes na derrocada de Domingo passado. O desplante é tal que os mesmos que ficaram no conforto do silêncio em Junho, aquando do abandono de Durão Barroso, vêm agora juntar-se ao coro dos críticos do santanismo. Como se tudo o que aconteceu nos últimos meses não fosse então previsível e como se o governo não estivesse também já irremediavelmente marcado pelos anos anteriores.
Se olharmos para os resultados de Domingo, vemos que a soma dos votos do PSD e do CDS não anda longe nem do resultado das europeias, nem daquilo que era a percentagem de portugueses que dizia identificar-se com o governo – agora, mas, também, quando Durão Barroso era primeiro-ministro. O PP de Paulo Portas bem podia sonhar com 10%, mas, a menos que o PSD descesse para uns improváveis 25%, tal objectivo era impossível de alcançar. Por mais voltas que se desse, a soma dos dois partidos dificilmente superaria os 36%. É que o que esteve em jogo nestas eleições foi, é certo, a avaliação da prestação devastadora de Santana Lopes, mas o essencial do contexto político já existia antes.
Na verdade, com o discurso da tanga, com o apoio à intervenção no Iraque e com a desastrosa política financeira, económica e social, o governo PSD/PP já tinha uma sólida e indelével imagem junto dos portugueses. Imagem que deixou, ao longo de três anos, um lastro de desmobilização do eleitorado de centro direita e promoveu um corte radical com o eleitorado flutuante. O efeito combinado destes dois factores revelou-se naturalmente trágico para as ambições políticas do PSD e do PP. Santana Lopes, com as suas inenarráveis idiossincrasias, foi a machadada final num processo que se havia iniciado com Durão Barroso e Paulo Portas.
É por isso que se a direita, designadamente o PSD, quer perceber as causas da sua derrota, deve olhar não apenas para o consulado de Santana Lopes, mas com igual atenção para todo o período em que Durão Barroso foi primeiro-ministro. Se o fizer será possível, por exemplo, contrariar algumas das ideias feitas (e falsas) que se disseminaram – à cabeça das quais a de que o populismo foi introduzido com o seu último líder. Aliás, basta recordar a campanha eleitoral de 2002 para se perceber que o gérmen do populismo e da campanha negativa já estava presente com Durão Barroso.
Mas enquanto à direita é altura de reflectir sobre as causas do desaire, à esquerda importa ter em atenção as consequências da vitória.
A existência de uma clara e sólida maioria socialista, combinada com 22 deputados à esquerda do PS, cria um contexto que, garantindo as condições de governabilidade de que o país necessitava em absoluto, pode acarretar uma recomposição deste espaço político.
Numa altura em que a área do centro-direita está vazia, órfã de líder e, acima de tudo, de estratégia e caminho, a tentação do PS ocupar esse espaço é grande. Grande e perigosa. Em primeiro lugar, porque não é o seu espaço natural e, em política, o transformismo não recompensa, nem cria raízes com resultados eleitorais. E em segundo lugar, porque, com o passar do tempo, o PSD voltará a ocupar o lugar que lhe pertence.
Desse ponto de vista, o PS tem de resistir à tendência para agir por contraponto à oposição estridente do Bloco, e também do PCP, que procurarão empurrar o novo governo para o centro-direita. Aliás, a precipitação com que o Bloco veio colocar o referendo ao aborto em cima da mesa, como se fosse a primeira das prioridades políticas do país, é já disso sinal.
Num contexto repleto de dificuldades financeiras e de bloqueios sociais, garantir a sustentabilidade da actual maioria de centro-esquerda, e principalmente a sua capacidade reformista, implica uma gestão sensível do espaço político à sua esquerda. Responder ao radicalismo do Bloco e do PCP, movendo o PS excessivamente para o centro é uma estratégia que hoje se afigura fácil, mas que trará custos eleitorais sérios no médio-prazo. Convém, a este propósito, não esquecer a lição de 1999. Então, a vitória de Pirro de António Guterres deveu-se, em grande medida, a um descuidar das questões simbólicas para a esquerda, que teve como consequência uma inusitada e inesperada subida dos votos à esquerda do PS. Impedir que nas próximas eleições isso se repita, depende de opções que se tomam agora e não com as próximas eleições à vista. Como o passado nos lembra, não basta governar de facto à esquerda, há que também “parecer” que se governa.
publicado em A Capital

domingo, fevereiro 20, 2005

Salvar Carcavelos e o resto das praias

O tema instalou-se na retórica política. De um quadrante a outro do sistema partidário, não há hoje quem não valorize o papel do mar como alavanca de um novo modelo de desenvolvimento. O mar como recurso estratégico. Não apenas o mar à “antiga”, da vocação marítima, dos descobrimentos e da construção da nossa identidade colectiva. Mas, também, o mar como factor de valorização do futuro. Como pólo de criação de novas oportunidades, por exemplo no turismo.
Contudo, neste, como em muitos outros casos, há os discursos e, depois, há a prática. E a prática é uma orla costeira que frequentemente parece servir como laboratório para experiências que visam replicar os cenários da Iª Guerra mundial. Por inércia, por incúria ou por acção premeditada, se bem que não com a intensidade do passado, continuam os atentados ambientais e, acima de tudo, uma visão míope do potencial existente na costa portuguesa. De Norte a Sul do País e nas regiões autónomas, assiste-se a um discurso político que é diariamente contrariado pela desvalorização efectiva do litoral.
E entre as novas oportunidades que o litoral português apresenta está o surf. O surf que hoje em Portugal tem um número já assinalável de praticantes, que movimenta um mercado ainda frágil mas já com alguma dimensão e que, só por isso, deveria ser protegido. Mas o surf que, para além do mais, tem um potencial ainda por explorar enquanto instrumento ao serviço de um desenvolvimento harmonioso para as nossas zonas turísticas.
Como escreveu, há tempos, Gonçalo Cadilhe, que já viu e viajou o suficiente para saber daquilo que fala: "uma onda perfeita de surf pode ser o motor da economia de uma inteira região. Pequenas localidades que nunca teriam saído do anonimato, que teriam permanecido esquecidas na periferia do mundo, são hoje internacionalmente famosas em todo mundo pelo simples facto de possuírem uma onda perfeita ao fundo da rua. (...) O turismo de surf não é turismo de massa, é turismo sustentável e continuado, é um nicho de mercado sólido e em crescimento." Aliás, com uma boa gestão e com visão de futuro, não há nenhuma razão para que as zonas propícias ao surf não possam evoluir para locais um pouco à imagem das estâncias de ski. E, como é sabido, abundam hoje pela Europa casos de sucesso em termos de desenvolvimento virtuoso de inteiras regiões, literalmente “puxadas” pelo ski.
E, desse ponto de vista, Portugal tem condições únicas na Europa e mesmo bastante competitivas a nível mundial. Não apenas temos uma extensa faixa costeira, com excelentes condições para receber os diversos tipos de ondulação, como é possível praticar surf durante doze meses por ano. Se a isto acrescentarmos a centralidade do País, quando comparado com os destinos exóticos do surf e os preços muito competitivos que apresentamos, há aqui um nicho de mercado quase virgem e de enorme potencial. Do Norte a Sul do país há ondas para todos e para todos os gostos.
Mas acontece que a prática de surf implica que as praias não sejam destruídas e que, na sua preservação, a conservação das ondas seja tida em consideração. Ora, infelizmente, temos assistido entre nós a uma sistemática desvalorização das ondas. O caso mais paradigmático disto mesmo ocorreu na Madeira, com o betão que deu cabo da onda do Jardim do Mar (para muitos a melhor onda portuguesa e uma das melhores do mundo!). Apesar de eventualmente menos dramáticos, a verdade é que outros exemplos de deterioração das praias abundam. Carcavelos ameaçava ser a próxima onda a ser destruída. Ameaçava porque já não vai ser.
Estamos pouco habituados, é verdade, mas por vezes, em Portugal, as coisas correm bem. E no caso de Carcavelos, tudo indica, vão correr bem. A história é simples: estava projectada pela Câmara de Cascais a construção de dois esporões que iriam colocar em sério risco as ondas. Mas, na fase de discussão pública do projecto, os surfistas uniram-se para salvar as ondas, tendo feito um parecer técnico sobre o projecto da autarquia. A Câmara foi sensível aos argumentos e aceitou na totalidade as reivindicações aí expostas. Resultado, Carcavelos vai ter obras que vão cuidar que as ondas se mantenham com a qualidade habitual e, tudo indica, numa das praias da linha vai ser construído o primeiro recife artificial da Europa, pensado para a prática do surf.
O caso de Carcavelos revela, no essencial, três coisas. A primeira, que é possível ter sucesso na luta pela qualificação do litoral e das praias em Portugal. Segundo, que há autarcas sensíveis ao potencial do surf e que revelam uma visão que foge à miopia dominante. E terceiro, que o exemplo de Carcavelos pode servir para que se comecem a salvar as praias que, por todo o país, são ameaçadas. O surf é uma razão e mais um pretexto para que isso seja feito.

publicado em A Capital

domingo, fevereiro 13, 2005

Alternativa Pântano

Faz agora três anos que a palavra pântano entrou no léxico político português. A palavra, porque a realidade política está presente desde pelo menos 1999. A partir da vitória de António Guterres nas legislativas, ficou clara a fraca governabilidade do país num contexto de abrandamento económico sem uma maioria sólida. Como é sabido, nos últimos tempos do governo de Guterres, os episódios foram-se sucedendo, dando forma à ideia de incapacidade de decisão. Contudo, o que esteve presente foi, antes, a dificuldade de decidir num contexto político que era avesso ao estabelecimento de pactos que possibilitassem a tomada de medidas impopulares e difíceis.
Este cenário faz parte da história. No entanto, em Fevereiro de 2005 estamos confrontados com um contexto político que pode trazer um síndroma semelhante. O problema é que apresenta sintomas bem mais graves. Tem, nesse aspecto, razão a miserável campanha que tem sido levada a cabo pelo PSD: “Os portugueses não querem que eles voltem”. Acontece que o “eles” não são aqueles que tiveram responsabilidades políticas de 1995 a 2002. O que os portugueses não querem que voltem são as circunstâncias políticas em que decorreu essa governação.
É que mais do que em 1995 – após dois mandatos absolutos de Cavaco Silva, repletos de autismo e arrogância – quando a ideia de maioria absoluta provocava irritação epidérmica, ou do que em 1999 – depois de quatro anos em que o país viveu uma descompressão de que necessitava –, em 2005 a maioria absoluta é uma necessidade absoluta do sistema. Um bem em si e a única forma viável de enfrentar o pântano, mas, também, os outros males que a ele se têm juntado.
Em trinta anos de democracia, nunca como agora o país conviveu com tantas crises em simultâneo. A crise económica e social, que tem assumido contornos dramáticos e parece todos os dias querer condenar a economia portuguesa e o bem-estar de todos; a crise financeira do Estado, que ameaça hipotecar o futuro do país; a crise de confiança, que revela um país deprimido e desmobilizado; e a crise de legitimidade do sistema político, que mostra o cepticismo e a descrença dos portugueses face à classe política, aos seus discursos e práticas.
O pântano, que no passado remetia essencialmente para a ausência de condições de estabilidade política e de governabilidade, assume hoje uma extensão bem maior e preocupante. O pântano é agora a conjugação de crises que o país enfrenta. Mas ao pântano há que juntar o lamaçal. O lamaçal que é filho do populismo e que, designadamente sob a forma de boatos ou de testemunhos de face escondida tem dado um contributo inestimável para que recaia sobre o sistema político uma suspeição generalizada, levando a que assumir responsabilidades políticas implique alguma coragem.
Têm, por isso, alguma razão os cínicos militantes quando afirmam que a extensão do mal é tal que dificilmente o país poderá inverter a tendência para o abismo que tem demonstrado nos últimos tempos. É certo, aliás, que ninguém tem revelado (até porque provavelmente não existe) uma resposta global e convincente para o problema. Nem mesmo a terapia dos diversos choques parece adequada aos nossos males. Contudo, uma coisa é certa. As margens de manobra que nos restam têm de assentar na possibilidade de alguém governar, independentemente de impopularidades momentâneas ou de condicionalismos negociais.
Ninguém duvidará que a economia precisa de crescer, que os equilíbrios sociais têm de ser restabelecidos, que as finanças públicas têm de ser equilibradas e as instituições estabilizadas e dignificadas. Mas, face à extensão e intensidade dos problemas que enfrentamos, a tarefa não será fácil.
Concretizar estes objectivos exige programas, mas requer em absoluto pessoas e pessoas competentes. Ora, quem é que pode estar disponível para assumir responsabilidades governativas num contexto em que as medidas fáceis não podem ser tomadas, porque não há condições económicas para as tomar e as difíceis e necessárias não podem ser levadas a cabo, porque não existem condições políticas para as concretizar? A resposta parece evidente.
Inverter este ciclo não é tarefa para uma legislatura, nem depende, no essencial, da acção dos responsáveis políticos. Vai muito para além disso. Mas começar a inverter este ciclo implica que o sistema político contribua para a sua inversão. Para tal, é necessário um governo estável, de gente competente e com condições políticas para levar a cabo o seu próprio programa. Um governo que não tenha de desperdiçar capital e energia em negociações improdutivas. Por uma vez, estou com os pessimistas profissionais. Em 2005, em Portugal, a alternativa a um governo de maioria absoluta é o pântano. Mas um pântano ainda mais profundo do que aquele que hoje conhecemos e do qual teremos ainda maiores dificuldades em sair.

publicado em A Capital

domingo, fevereiro 06, 2005

Para onde nos leva esta campanha?

Gosto de campanhas eleitorais. Mas, desta feita, vejo várias vantagens em estar literalmente a 2.500 quilómetros de distância. Ainda assim, mesmo longe, confesso que o essencial da campanha tem-me chegado. Tenho as várias caixas de e-mails cheias do essencial da campanha: boatos. Boatos que não começaram agora e que se inserem numa táctica com contornos mais organizados do que aparenta e que já dura há algum tempo - tendo aliás, no passado recente, atingido outras pessoas de modo particularmente brutal. Confesso que já esperava que os boatos fossem usados como arma de campanha. Afinal, o facto de terem sido lançados com antecedência e de forma sistemática já o antecipava. O que não esperava é que o candidato do PSD a primeiro-ministro lhes desse eco de forma torpe.
Há que reconhecer, no entanto, que esse passo em frente foi apenas a cereja no topo de um bolo que já vinha sendo cozinhado. O PSD tem assentado o fundamental da sua acção numa campanha negativa, de contornos relativamente inéditos entre nós. Se pensarmos apenas nos outdoors, vemos que todos têm uma lógica de crítica ao PS e, pasme-se, até ao Bloco de Esquerda. É certo que houve uma tentativa de lançar um cartaz com uma imagem positiva, acontece que foi impedida por Cavaco Silva.
Ora em Portugal nunca aconteceu que o essencial da campanha de qualquer um dos dois maiores partidos assentasse em denegrir o principal adversário. Campanhas negativas sempre as houve, mas, no passado, circunscreviam-se, por exemplo, ao PP e ao Bloco - ou seja, aos partidos das margens. E o que é a utilização do boato senão a forma mais vil e rasteira de campanha negativa?
Estas coisas não surgem do nada. E na verdade, também neste caso, já havia um lastro, que foi agora elevado a um novo patamar. Quer com a campanha de Santana Lopes para a Câmara de Lisboa, quer nas anteriores legislativas com Durão Barroso, a marca já estava lá. A marca da irresponsabilidade nas promessas (uma piscina por freguesia, convém não esquecer, prometiam os cartazes de Santana Lopes em Lisboa) e a lama demagógica (os cartazes das crianças a questionar os avós sobre as listas de espera nos hospitais, com Durão Barroso). Também nas últimas europeias - recorde-se, ainda com Durão Barroso -, a coligação de direita, mesmo estando no poder, optou por uma campanha de ataque sistemático ao PS, com outdoors de resposta directa pela negativa e com a mesma lógica de reportar ao passado, que foi agora seguida com os novos outdoors em que surgem figuras dos governos de António Guterres.
Trata-se no fundo da importação via Brasil da lógica dominante nas campanhas políticas norte-americanas. Nestas, o "bota-abaixismo" é uma arma muito importante e lançar lama sobre o adversário altamente compensador.
No frente-a-frente desta semana, Santana Lopes reconheceu mesmo a importação do modelo. Quando confrontado por Sócrates com os cartazes da JSD onde este aparece, acompanhado pela pergunta - sabe mesmo quem é? - afirmou, sem pruridos, que esse tipo de campanha é normal na democracia norte-americana. É normal, mas é também lamentável. É algo que não deveria ser importado e que viola o conjunto de regras em que deveria assentar o jogo democrático.
Em Portugal, nesta campanha, passou-se a linha de fronteira da decência e, como é sabido, quando esse passo é dado, raramente se consegue voltar ao lugar de partida. Desse ponto de vista, nada será como dantes na política portuguesa depois da experiência santanista. Pode haver quem ache que se tratou de uma vacina contra o populismo. Acontece que o mais provável é que o populismo seja um vírus que uma vez entrado no sistema não mais o abandona, ainda que possa enfrentar períodos de quarentena.
Muito se tem dito sobre a forma como a experiência santanista e esta campanha em particular estão a alterar o PSD, transformando-o num partido de uma outra natureza. Os mais optimistas julgam que depois da noite de 20 de Fevereiro a normalidade regressará ao partido. Temo que este prognóstico benévolo não se concretize. É que sendo verdade que a campanha de Santana Lopes está a ser particularmente arrojada do ponto de vista do "bota-abaixismo", no fundo, limita-se a dar continuidade, ainda que a um novo nível, ao que já vinha sendo feito com Durão Barroso. Por outro lado, os partidos, como qualquer instituição, têm sempre uma significativa inércia face à mudança. Uma vez instalado um conjunto de agentes e de mecanismos, substitui-los é sempre muito difícil. E a verdade é que a lógica santanista se instalou na máquina e nas práticas do PSD. Saber até que ponto vai ser possível demove-lo é uma das questões decisivas para o pós-20 de Fevereiro. Decisiva para o PSD, mas essencialmente para a saúde da democracia portuguesa.

publicado em A Capital