quarta-feira, maio 25, 2005

A Armadilha da Tanga

Hegel terá escrito que os grandes acontecimentos históricos se repetem. Marx, apesar de várias gerações de hegelianos nunca terem encontrado a referência original, acrescentou, numa formulação famosa, que tal acontece primeiro como tragédia e depois como farsa. Vem isto a propósito do relatório de Vitor Constâncio e dos 6,83% de défice das contas públicas. Precisamente três anos depois, tudo parece repetir-se, com duas agravantes, por um lado, o número apurado é superior e, por outro, há o risco de, na repetição, a tragédia assumir, agora, contornos fársicos.
Sabemos hoje o que se passou em 2002. Uma campanha eleitoral em que o então candidato Durão Barroso prometeu tudo a todos, isto enquanto falava de um défice próximo do do Burundi. Ao mesmo tempo, o seu futuro parceiro de coligação andava de feira em feira a acenar aos pensionistas com aumentos que das duas uma: ou davam cabo da sustentabilidade financeira da segurança social ou, ao desvalorizar o esforço daqueles que mais contribuíram, comprometiam a equidade interna ao sistema de pensões.
Mas, uma vez no poder, com o auxílio do primeiro relatório Constâncio, o discurso das promessas foi transformando em tanga. Do optimismo demagógico da campanha, Durão Barroso evoluiu para um pessimismo que se revelou trágico para a confiança dos agentes económicos. Tudo acompanhado por uma política orçamental que estrangulou o investimento e, claro, não resolveu nenhum problema, nem do lado da despesa, nem do lado da receita. No fim de cada ano, enquanto se faziam juras de que a retoma estava a caminho, lá vinham as manigâncias e os malabarismos contabílisticos. Claro que o relatório Constâncio II não poderia surpreender: a consolidação orçamental ficou por fazer.
Acontece que as contas públicas não são uma abstracção instrumental para a guerrilha política. Pelo contrário, o défice tem efeitos sociais, económicos e também políticos. A forma desastrosa como o anterior governo geriu as contas públicas explica a crise da nossa economia, o disparar do desemprego e a mudança de governo três anos depois das eleições. O governo de Durão Barroso caiu na armadilha da tanga. Usou o défice como arma de arremesso e não mais se livrou do uso instrumental que quis dar às contas públicas. Tinha um problema, amplificou-o e quando procurou resolvê-lo já não tinha à mão alguns dos poucos instrumentos que ainda sobram aos governos. Pelo caminho, deu mais uma machadada na credibilidade da classe política, ao meter na gaveta as promessas feitas durante a campanha eleitoral.
Três anos de oposição, espera-se, terão ensinado diversas coisas ao Partido Socialista – entre elas os riscos da armadilha da tanga. Desse ponto de vista, a campanha eleitoral deu sinais positivos. Antes de mais, pela sensibilidade demonstrada por José Sócrates à estrutura social portuguesa. É que, pura e simplesmente, o país não aguenta soluções draconianas, que procuram resolver de uma assentada problemas com lastro histórico. Depois, porque o PS não optou pela solução fácil de levar a cabo um acerto de contas com o passado recente, combinado com uma plataforma eleitoral assente em promessas demagógicas. O caminho seguido foi o da razoabilidade política: realismo na definição do problema e afirmação da diferença em áreas chaves para o desenvolvimento. Daí que tenha sido sublinhado que a obsessão com o défice tem como resultado dar cabo da economia, ao mesmo tempo que não resolve nenhum problema nas finanças.
Deste discurso decorre, naturalmente, que a nesga (estreita) de oportunidade para o país reside no investimento em áreas estratégicas para aumentar o potencial de crescimento e na consolidação de uma almofada social que minore o impacto da absolutamente necessária (e sempre adiada) reestruturação do padrão de especialização da economia portuguesa. Mas isso foi durante a campanha. Uma vez no governo, a gestão política do problema é bem mais complexa. Por tudo isto, hoje é o primeiro dia verdadeiramente decisivo do novo governo. Tem de ser um dia de clarificação e de rumo para o futuro.
É claro que a resolução da equação orçamental é difícil. O que está em jogo não é nem uma questão tecnocrática, nem académica e muito menos contabilística. Pelo contrário, é um problema político sério, tão ou mais sério do que aquele que o bloco central – tantas vezes injustamente criticado – enfrentou. E os problemas políticos requerem sensibilidade política e sensibilidade tout court. Quem tenha lido com atenção os sinais dados em fugas para a imprensa nas últimas semanas, rapidamente percebe que sensibilidade é algo que existe em doses desiguais no seio do governo.
Entre outras coisas, é essencial evitar cair na armadilha da tanga e com ela repetir os erros do passado. A tentação tem sido grande nos últimos dias. Mas esta opção, como ficou provado, não só não resolveu nenhum dos problemas existentes, como até teve o condão de acrescentar novos àqueles que já existiam. Contudo, as situações difíceis representam também oportunidades. O constrangimento orçamental pode servir para resolver problemas pesados que o país enfrenta, designadamente pondo fim a situações de privilégio relativo da função pública, que são hoje injustificadas. Mas o que há a fazer tem de ser feito com sensibilidade microscópica e percebendo que a receita macroeconómica, tão sedutora no papel, de cortar cegamente na despesa, aumentando indiscriminadamente a pressão na receita, trará os mesmos resultados dos últimos três anos. Para resolver o problema do défice há que, a partir de amanhã, deixar de falar do défice. Repetir a história, já não seria uma tragédia, mas, sim, uma farsa.
publicado em A Capital

quarta-feira, maio 18, 2005

Tocado à distância

"Here are the young men, the weight on their shoulders
Here are the young men, well where have they been?
(...)
Weary inside, now our heart’s lost forever
Can’t replace the fear or the thrill of the chase
Each ritual showed up the door for our wanderings
Open then shut, then slammed in our face"
Joy Division, Decades (1980)

Faz hoje precisamente vinte e cinco anos que começou a década de oitenta. Faz hoje, dia 18 de Maio de 2005, vinte e cinco anos que Ian Curtis, vocalista dos Joy Division se suicidou. É uma das características fortes da cultura contemporânea: ser marcada pelos seus ícones suicidas. Os setenta tiveram Jim Morrison, os noventa Kurt Cobain e os oitenta, Ian Curtis. E, se olharmos para trás das luzes e do glamour, esta foi uma década dura. A música dos Joy Division é, simultaneamente, o retrato dessa dureza e o princípio do que viria a seguir.
Pense-se na improbabilidade sociológica. Fim dos anos setenta, quatro rapazes de Manchester, uma cidade desinteressante, perdida no Norte de Inglaterra, que se juntam para pegar no que sobrava do movimento Punk e, com uma nitidez quase excessiva, preparar a cultura contemporânea, e a música em particular, para o futuro. Mas, depois, pense-se na “condição da classe operária em Inglaterra” no prelúdio da revolução Thatcheriana, junte-se-lhe os despojos situacionistas chegados com o grito do baixo materialismo dos Sex Pistols, some-se o lado sombrio da cultura europeia da década de trinta e o acontecimento Joy Division percebe-se melhor. Uma banda que lançou dois álbuns e que, verdade seja dita, apenas com um deles, Closer, o segundo e publicado postumamente, deixou uma marca decisiva para perceber a música dos anos seguintes, os últimos vinte e cinco.
A música do grupo não foi feita para passar o tempo ou para o prazer. Foi feita para a inquietação, para o desassossego. O Miguel Esteves Cardoso, que sobre os Joy Division escreveu quase tudo o que devia ser escrito – veja-se o recentemente re-editado, Escrítica Pop (Assírio e Alvim) – dizia, em 1981, que “Joy Division é apenas um problema que se pôs à música. E se é trágico que não tenha solução, é certamente belo conhecê-lo inteiramente. E dizê-lo.” E parte do problema é o verdadeiro murro no estômago desferido pelas letras de Ian Curtis. As suas palavras angustiadas não tratavam as “coisas” por metáforas ou por outros nomes. Pelo contrário, padeciam de excesso de nitidez e de realidade. No meio estava sempre um negrume, que revelava sinais de vitalidade na relação com o cruel, com o absoluto. Nada do que Ian Curtis escreveu é frio ou sobre o medo. O que nos deixou foi o confronto e um incómodo quase insuportável – que não é típico da cultura popular.
E as palavras traziam com elas música. Uma voz chegada de um outro lugar, mais perto da clareza e da luz, os movimentos frenéticos de Curtis em palco, as guitarras cruas, a raiva vinda de “fora”, herdeira da simplicidade de processos do Punk, e uma camada rítmica densa, mas que soava como que separada do resto, sobreposta. E neste aspecto estava inscrito algo de novo: não mais a música moderna abandonaria o papel do ritmo, do ritmo sem ponto de fuga.
No entanto, as bandas emblemáticas não existem isoladas do tempo e do lugar. E Manchester foi, durante a década de oitenta, o lugar. O lugar em que o ritmo passou a contar e em que, pela mão de Tony Wilson e da Factory Records, este se juntou à música urbana. Mas a epilepsia crescente de Curtis e a sua pulsão suicida, concretizada aos 23 anos num dia quotidiano, não o deixariam participar no que se seguiria: a festa da Madchester do final dos anos oitenta.
Hoje, mais de duas décadas passadas, entre o que persiste está, não só a introspecção transparentemente dura cantada por Ian Curtis, como, também, a estranheza do que os três sobreviventes à sua morte fizeram. Mantiveram a viagem prevista para a América – partiriam poucos dias após 18 de Maio. Aí, conta a lenda, ouviram os ritmos mecânicos que começavam a despontar vindos do underground. O guitarrista fez-se vocalista e passaram a assinar as canções como New Order, naquela que é a mais improvável das transformações de sucesso da história da música e caso único de sobrevivência de uma banda à morte do seu líder. No regresso, mudaram de rosto, levaram o ritmo mais longe e têm-se encarregado de mostrar que a redenção também pode ser feita a dançar. Foi, por isso, nesse momento, no dia da morte de Ian Curtis, que os anos oitenta começaram. Sem a tristeza angustiante dos Joy Division não existiria o falso hedonismo dos New Order, nem o sentimentalismo exacerbado dos The Smiths. Do mesmo modo que teria sido improvável que Stone Roses, Happy Mondays e Primal Scream tivessem, no final da década, posto toda a gente a dançar debaixo de batidas ácidas.
Vinte e cinco anos depois da morte de Ian Curtis, por feliz coincidência, os New Order, que ao vivo regressaram aos temas dos Joy Division, tocam pela primeira vez em Lisboa (dia 28 de Maio), e, por um par de horas, o passado ficará certamente mais perto. Como que tocado à distância. E, no entretanto, algo permanece imutável: os jovens carregam o mesmo peso sobre os ombros.

Publicado em A Capital

quinta-feira, maio 12, 2005

Novos Mínimos Sociais

Uma das marcas mais resistentes da sociedade portuguesa é a pobreza. A pobreza que, ao longo dos últimos anos, se tem transformado, assumindo novos contornos, mas que, ainda assim, persiste. É, aliás, essa combinação de mudança com resistência que faz com que em Portugal coexista a velha pobreza, fruto de décadas de desigualdades sociais, com a nova pobreza, resultante de novos factores de exclusão social.
A isto acresce que em Portugal nem o trabalho, nem a protecção social imunizam da pobreza. Na Europa dos quinze não é assim: os pobres são, no essencial, aqueles que acumulam factores de exclusão e que vivem, por diversas razões, à margem do sistema (do mercado de trabalho e da protecção pública). Em Portugal, pelo contrário, grande parte da pobreza concentra-se nos trabalhadores de baixos salários, com baixas qualificações e numa fatia importante dos pensionistas. Entre nós, trabalhar ou receber uma pensão não é suficiente para ultrapassar o limiar de privação. Essa é uma marca distintiva do nosso modelo de bem-estar e a sua principal fragilidade.
Foi neste contexto que no Governo de António Guterres, em paralelo com o desenvolvimento de políticas sociais direccionadas para o combate a formas extremas de exclusão (à cabeça o rendimento mínimo garantido), se iniciou um processo de aumento diferenciado das pensões, fazendo crescer mais as mais baixas e beneficiando as carreiras contributivas mais longas. O objectivo era dar passos para que o nosso modelo evoluísse de uma matriz quase exclusivamente de seguro social para uma lógica redistributiva. Contudo, este debate cedo foi contaminado pelo discurso populista de Paulo Portas dirigido aos pensionistas e que levou a que o governo PSD/CDS tenha desvalorizado o princípio contributivo nos aumentos das pensões mais baixas e propagandeado, sem concretizar, a equiparação das pensões ao salário mínimo.
Hoje é sabido, por um lado, que há fortes limites financeiros a uma política indiscriminada de aumentos das pensões mais baixas e, por outro, que não beneficiar mais quem mais descontou, acarreta o risco de, no médio prazo, desincentivar o esforço contributivo. Neste sentido, o discurso de equiparação da convergência das pensões que têm complementos sociais pagos pelo Orçamento de Estado ao salário mínimo deveria ser secundarizado, na medida em que nos leva a um beco financeiro sem saída e produz efeitos perversos em termos de justiça social relativa.
Mas, também porque, no que é mais um paradoxo da sociedade portuguesa, ao mesmo tempo que é sabido que grande parte da população em situação de pobreza é pensionista, um estudo recente de Miguel Gouveia e Carlos Farinha Rodrigues veio revelar que apenas 1/3 dos pensionistas que recebem pensões mínimas com complementos sociais são pobres (ou vivem em agregados pobres). Quer isto dizer que há recursos dos impostos que deveriam estar a ser utilizados para libertar os cidadãos idosos da pobreza e que estão a ser despendidos com quem, por força de ter outros rendimentos, não está, de facto, em situação de carência absoluta. Ou seja, 2/3 dos que recebem pensões baixas não estão abaixo do limiar de pobreza.
Num quadro de sérios constrangimentos financeiros e de fragilidade da situação social de muitos idosos, é absolutamente necessário que o Estado saiba dirigir o seu esforço para aqueles que de facto mais necessitam. Continuar a caminhar no sentido da equiparação das pensões não contributivas com o salário mínimo é uma má opção, que consome grande parte dos recursos e não promove a justiça social.
A alternativa é criar uma nova abordagem às políticas de mínimos sociais. Uma abordagem que combata o populismo que, da esquerda à direita, ora cavalga o discurso dos aumentos generalizados, ora quer tratar como igual o que é diferente. A opção é fazer depender de condição de recursos e eventualmente do nível de dependência, todas as pensões que têm uma componente assegurada pelo Orçamento de Estado. Não podendo dar mais a todos, o Estado português tem de assumir prioridades políticas.
Alargar às pensões que têm componente não contributiva o princípio da diferenciação positiva, dando complementos a quem mais precisa, é a alternativa para um país com um modelo de protecção frágil e que tem de fazer do combate à pobreza a sua prioridade. Manter o discurso da equiparação ao salário mínimo, é, pelo contrário, a melhor forma de gastar mais, gastando mal. No fundo, a forma de continuar a fazer com que a política social em Portugal não seja eficaz no combate à pobreza.
publicado no Diário Económico

quarta-feira, maio 11, 2005

Privilégios

O que há meia-dúzia de meses era impensável tornou-se realidade: os portugueses fazem uma avaliação positiva de todos os líderes partidários e, pasme-se, até da Assembleia da República. É isso que nos diz a sondagem publicada pelo Expresso do passado Sábado. Se aceitarmos que o essencial dos fenómenos políticos não acontece por acaso ou mero capricho do destino, estes números não serão independentes da preocupação de José Sócrates e de Marques Mendes em afirmarem-se através de questões simbólicas, relacionadas com o sistema político e a sua qualidade.
Este dado é, de certa forma, inédito: as preocupações com a qualidade da democracia são quase exclusivas de quem está na oposição. Antes de mais, porque é aí que se sentem na pele as fragilidades do sistema, mas, também, por se tratar de um tema relativamente fácil de introduzir no debate político. Os jornalistas gostam, tem poucos custos na vida interna dos partidos (em abstracto, toda a gente concorda), além de que os problemas estão identificados, pelo que não há que inventar nada e não se corre o risco de fazer discursos pouco informados.
Um outro aspecto típico deste é que, quando na oposição, os partidos falam sobre mudanças gerais no sistema e têm pouca capacidade para avançar nas mudanças internas. Sem poder para distribuir, que funcione como paliativo para transformações dolorosas, mudar torna-se, internamente, muito difícil. Depois, uma vez chegados ao poder, o tema é secundarizado ou mesmo abandonado, por força das ondas de contestação que inevitavelmente provoca. Mas esta tendência que, apesar de algumas excepções, diria forte, parece estar a ser contrariada.
Em primeiro lugar, porque o Governo tem revelado uma assinalável preocupação com medidas de promoção da qualidade da democracia. A limitação de mandatos e o afrontar dos interesses das corporações (a diminuição das férias judiciais e a venda livre dos medicamentos sem prescrição médica) é disso exemplo. Em segundo lugar, porque Marques Mendes, mesmo tendo alcançado uma vitória interna por uma margem curta, tem combatido interesses instalados no PSD. A firmeza com que afastou a possibilidade de Isaltino Morais e Valentim Loureiro serem candidatos autárquicos com apoio do partido é, não apenas uma acto de coragem, como também, um importante passo para a dignificação da vida política portuguesa, que deveria deixar satisfeitos todos os que se preocupam com a degradação da imagem dos políticos.
Curiosamente, a primeira imagem que, quer José Sócrates, quer Marques Mendes têm procurado deixar prende-se com estes aspectos. E a verdade é que, pese embora se tratem de medidas em parte simbólicas, deixam uma marca forte da preocupação de ambos com a qualidade da democracia e a sua autonomia face a poderes instalados e de fraca legitimidade. A apreciação positiva que, hoje, os portugueses fazem da actuação dos líderes partidários não será, certamente, independente das preocupações que estes têm tido com a melhoria de alguns aspectos do sistema democrático.
Contudo, não é menos verdade que o que tem sido feito é apenas uma pequena parte do que há a fazer. E para fazer o que deve ser feito é importante perceber que a degradação da imagem pública da classe política não se resolve com um ou dois sinais, pelo contrário, requer uma avalanche de medidas que coloque fim a velhos privilégios, até para que seja possível dar novos, bem mais necessários.
Dois exemplos. Sendo verdade que as férias judiciais eram excessivas e injustificadas e que o Governo andou bem ao torná-las idênticas às da larga maioria da população, porque razão, então, se deve manter o privilégio dos deputados, que vêem o parlamento encerrado durante um período de tempo superior aos 25 dias úteis que a lei prevê para a maioria dos portugueses? Ou, porque razão continuam os autarcas a ter um esquema de reforma em que o exercício do cargo de presidente é altamente vantajoso para efeitos de aposentação (isto num quadro em que, ao contrário do que é voz popular, o regime dos deputados é hoje razoável)?
É evidente que a melhoria da relação de confiança dos cidadãos com o sistema político não depende, no essencial, do fim de benefícios excessivos da classe política. Mas reduzir privilégios é parte importante daquele processo, além de que é um requisito fundamental para que seja possível dar novos e necessários privilégios, como seja a melhoria na remuneração dos políticos. É que há certamente uma regalia que em Portugal estes não têm: ganhar muito dinheiro. E esse facto ajuda a explicar a existência de muitos benefícios, menos públicos.

P.S. A crer no Expresso, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, João Amaral Tomás, anda “apaixonado” pelo flat-rate tax (imposto de taxa única). Depois das ex-Repúblicas Soviéticas, do Economist e de José Manuel Fernandes – por esta ordem –, a moda chegou ao governo do PS. Espantoso. Se é verdade que a simplificação dos benefícios fiscais é uma necessidade, confundir esta com o fim da progressividade fiscal (um dos pilares da governação da esquerda social-democrata), é algo que só lembraria aos mais destemidos neo-liberais. Que um membro do actual Governo – para mais com responsabilidade na matéria – tenha uma paixão pela ideia só se compreende se nos recordamos do entusiasmo revelado por Amaral Tomás com o anterior governo, do qual fez parte como adjunto de gabinetes ministeriais, quer no tempo de Durão Barroso, quer no de Santana Lopes.

publicado em A Capital

quinta-feira, maio 05, 2005

Quando o surf entrou na Baía

O surf está na moda. Melhor, o surf está outra vez na moda. O surf esteve na moda em meados dos anos 80, no tempo em que se dançava à surfista e se vestia de fluorescente. Então, os surfistas quase não existiam, pelo que pouco tiveram a ver com a moda do surf. Depois, em meados dos anos 90, o surf voltou a estar na moda. Por essa altura, gerou-se um hype em torno do ser radical. O Portugal Radical surfou os sinais do tempo e mostrou ao país o surf e, pela primeira vez, juntou-lhe os surfistas. Depois disso, a história é conhecida: os surfistas desentenderam-se, gerou-se algum vazio competitivo e, entretanto, o surf passou a actor secundário.
Mas como que para provar que o retorno não se baseia num eterno mito, o surf volta a estar na moda. Os sinais são muitos: telenovelas em que o surf cria o contexto; a surf music (ou música tocada por surfistas) que esgota o Coliseu; as surf schools que inundam o litoral de novos praticantes e, ainda, as escolas secundárias nas quais é difícil vislumbrar alguém que não se vista à surfista. Ainda assim, as revistas de surf mantém as vendas quase inalteradas e os surfistas pouco têm lucrado com a popularidade do surf. No meio disto, uma parte significativa dos tops nacionais são ainda da geração PR e Portugal, que tem uma longa e apreciável costa e um número significativo de participantes, tem praticamente apenas um solitário corredor no circuito mundial.
Mas há dias que, quando chegam, podem fazer com que nada seja como dantes. Pense-se naquela “quarta-feira” de ondas grandes, o dia do tow-in na Baía de Cascais. Um dia solarengo de Inverno. Centenas de pessoas a assistir, aparato mediático, discussões acesas na net, notícias nos telejornais das oito. Houve de tudo um pouco. Dos bravos às bravatas. Dos patrocinados aos outcasts. Mas, acima de tudo, o que até há uns anos seria impensável: o surf naquele lugar e com aquelas condições.
Antes de mais, o cenário. A Baía de Cascais. Uma baía, lugar de abrigo, de águas paradas e Cascais, o sítio, por excelência, da integração, da não-contracultura. O espaço do sucesso e paradigma do bem-estar na vida. É que, ainda que o surf em muitos casos tenha nascido naqueles ambientes – e em Portugal foi em larga medida assim –, a verdade é que sai deles e, quando regressa, volta transformado, mudando o lugar, mas, principalmente, as pessoas. Por isso, aquele dia revelou, também, que o surf pode regressar aos lugares da normalização e tornar-se aceitável, conforme aos padrões. Que isso seja feito com condições extremas não deixa, ainda assim, de ser paradoxal.
Depois, numa altura em que vivemos a terceira vaga da moda do surf, aquele dia de tow-in foi um momento para os surfistas participarem na tendência. Nas telenovelas ou no surfwear, os surfistas pouco participam. Naquele dia, o meio do surf foi, por momentos, (re)apropriado pelos surfistas, que ao surfarem aquelas ondas como que forçaram, pela mediatização, a sua entrada no surf integrado e gerador de lucros.
Há momentos que, por si só, mudam o contexto e o sentido das coisas. Aquele dia de tow-in na Baía de Cascais pode ter sido um deles. É provável que já tenham sido surfadas ondas maiores em Portugal. É ainda mais provável que muitos, um pouco por todo o país, tenham estado em situações mais limite. Mas as coisas só existem quando são visíveis, apropriadas pelos media. E foi isso mesmo que aconteceu com a entrada do surf na Baía. Resta saber se os surfistas vão continuar à margem dessa notoriedade ou, pelo contrário, vão aproveitá-la. É que seria uma estupidez deixar que o destino do surf não fosse tomado nas mãos pelos surfistas e que, estando o surf na moda, todos não lucrassem com o fenómeno. Os que vivem do surf e todos os outros que vivem para o surf. Os primeiros com melhores patrocínios e prémios; os segundos com uma maior preocupação dos poderes públicos com as ondas, a sua preservação e valorização.
artigo publicado no número de Abril da Surf Portugal.

quarta-feira, maio 04, 2005

O pano e a nódoa

Há onze anos, quando foi eleito líder do Partido Trabalhista, Tony Blair iniciou uma revolução na política britânica. Então, e após década e meia da experiência ultra-liberal da Senhora Thatcher, a esquerda encontrava-se acantonada. Face à revolução imposta pelos conservadores limitava-se a apresentar uma cultura de resistência e a responder com velhos discursos e velhas políticas. O resultado foi uma sucessão de derrotas eleitorais.
Tony Blair, já acompanhado pelo seu amigo/rival Gordon Brown, percebeu que para ganhar não bastava esperar pela degradação dos conservadores, era também preciso desenvolver uma agenda ideológica e política própria, que funcionasse como contraponto ao modelo de Thatcher. O objectivo era construir um New Labour, capaz de olhar para o futuro, quebrando os imobilismos do passado. Esta estratégia foi levada a cabo com uma densidade ideológica normalmente afastada da política partidária.
A primeira batalha foi a promoção da mudança interna no partido, designadamente colocando fim ao poder desproporcional que os sindicatos mantinham e ultrapassando o conservadorismo ideológico, visível, por exemplo, no anacronismo da célebre Clause 4 da declaração de princípios – que, em 1994, defendia a propriedade pelos trabalhadores dos meios de produção e o controlo e administração popular da indústria (sic). A modificação desse artigo, libertou o partido de parte da sua imagem de velha esquerda e deu um sinal do que aí viria.
Inspirando-se em Bill Clinton e nos New Democrats, Tony Blair, sob a etiqueta de terceira via, levou a cabo uma reforma da agenda social-democrata. A ideia era simples: a esquerda só poderia sobreviver se fizesse aquilo que sempre revelou capacidade para fazer ao longo do século – renovar-se. E esta renovação passava por assumir a liderança no combate ideológico, mas, também, ao nível das políticas. Naturalmente, a vontade refundadora de Tony Blair foi recebida com um coro de críticas, muitas delas fruto de leituras apressadas do que estava em causa e resultantes do conservadorismo político de parte da esquerda europeia.
Contudo, Tony Blair revelava essencialmente uma vontade de adequar, com realismo e pragmatismo, os princípios fundadores da esquerda democrática ao contexto social do fim do século XX. Mais democracia, colocando fim ao poder cristalizado dos sindicatos no interior do seu próprio partido, mas, também, devolvendo o poder às regiões, a Gales e à Escócia; Um novo papel para o Estado, apostando na activação das políticas públicas; e colocando o rigor na gestão das finanças públicas como instrumento central para o bom funcionamento da economia e para o crescimento do emprego. Dez anos depois, o saldo é claramente positivo e o idealismo pragmático do New Labour revelou-se uma experiência de sucesso.
Antes de mais, porque com Gordon Brown como Ministro das Finanças, os trabalhistas foram capazes de contrariar o anátema que sobre eles pairava, de que eram medíocres na gestão das finanças públicas. O Reino Unido tem vivido um período ímpar de crescimento económico, com finanças saudáveis. Pelo caminho, foi recuperada a ideia de pleno-emprego, que entretanto havia sido abandonada pela esquerda europeia. Hoje, os níveis de emprego no Reino Unido são modelares em termos europeus. Pode ser dito, com razão, que muitos desses empregos são precários, mal pagos e pouco qualificados. É verdade, mas o mau emprego é, ainda assim, preferível ao desemprego e este tem sido a resposta dada, nos últimos largos anos, por outras grandes economias europeias.
Depois, porque a saúde financeira possibilitou o investimento na administração pública. Contudo, este foi feito com a percepção que não bastava gastar mais, era preciso activar não apenas os beneficiários (o célebre slogan “from welfare to work”), mas, simultaneamente, activar as políticas, colocando pressão sobre os serviços públicos, para que estes desenvolvessem novas respostas sociais. Desse ponto de vista, a opção do governo britânico é muito próxima do que foi feito nos países escandinavos no início da década de noventa.
Finalmente, porque Blair foi um dos grandes responsáveis por dar prioridade na política internacional às questões ambientais, ao combate à pobreza ou à redução da dívida do terceiro-mundo, recuperando uma agenda progressista que havia sido secundarizada durante décadas.
No entanto, provavelmente a maior vitória política de Tony Blair foi ter feito com que a esquerda reassumisse a condução política, definindo os parâmetros e a gramática do debate. É sabido que quem controla os temas em discussão, quem controla a política, naturalmente tem vantagem na competição eleitoral. Hoje, na política britânica os temas centrais da discussão são introduzidos quer pelos trabalhistas, quer pelos liberais, deixando aos conservadores uma agenda anti-sistémica, populista e de reacção. Tony Blair percebeu bem a relevância do combate cultural e de como a política é uma esfera com autonomia para formatar o modo como vemos os dilemas que enfrentam as políticas públicas e a forma como podemos superá-los. Neste aspecto, o caso britânico é excepção, pois, um pouco por toda a Europa, a esquerda tem dado o flanco à direita no combate cultural – Portugal, aliás, é disso exemplo.
Mas, “no melhor pano cai a nódoa”. E o Governo de Blair carrega uma nódoa que, por mais que seja limpa, dificilmente sairá: ter acompanhado os EUA de Bush na guerra do Iraque. É esta decisão que faz com que aquele que deveria ser recordado como o primeiro-ministro da renovação da social-democracia, do crescimento e do emprego, corra o risco de ficar para a história por más razões.
Amanhã, quando os ingleses forem votar, estarão perante um dilema: penalizar Blair pela participação na guerra, esquecendo a boa performance na política doméstica e com isso entregar o poder aos conservadores ou, pelo contrário, apostar que, nos próximos anos, os trabalhistas, eventualmente com Gordon Brown na liderança, serão capazes de levar mais longe o seu reformismo e corrigir a opção quanto ao Iraque. Um terceiro mandato dos trabalhistas, que servisse para atenuar o erro iraquiano, era importante, entre outras razões, para que a esquerda pudesse com tranquilidade incorporar o património da experiência de sucesso do New Labour.
publicado em A Capital