terça-feira, março 21, 2006

O estado da oposição

Um ano depois da eleição de Marques Mendes, a ideia generalizou-se: é um líder fraco, não faz oposição ao Governo e, pasme-se, não apresenta alternativas. Passam as maiorias e, em Portugal, é esta invariavelmente a avaliação que é feita de quem está na oposição. Mas não é a única. Há ainda outra, feita a partir do Governo e que, retomando o mais enraizado conservadorismo, lembra que a oposição não se opõe ao Governo, mas, sim, ao País. Ora, quando os fenómenos se repetem, com actores diferentes, devemos procurar as suas causas na estrutura e não nos agentes.

A ausência de um estatuto formalizado de líder da oposição é uma das causas explicativas. Nos debates parlamentares com o primeiro-ministro há uma relação assimétrica, em que aquele goza de uma distribuição de tempos favorável. Isto já para não falar no próprio posicionamento no espaço da Assembleia (o primeiro-ministro fala de cima para baixo) ou da discrepância entre a informação de que dispõe o Governo e aquela que chega às oposições. A isto há que somar a frequente deserção dos elementos tecnicamente mais qualificados quando os partidos de poder vão para a oposição.

Mas a fragilização das lideranças partidárias na oposição nasce mais de dentro do que de fora. Tal facto não é independente da matriz genética dos partidos de poder em Portugal. Quer PSD, quer PS são o que se usa chamar de partidos de cartel por contraposição a partidos de massas – ou seja, foram construídos de cima para baixo, pela vontade de elites e muito dependentes de recursos estatais.

A maioria dos partidos europeus nasceu ou da institucionalização de movimentos sociais ou da cristalização de clivagens. Em Portugal, por terem nascido tardia e abruptamente têm um enraizamento social fraco, ao mesmo tempo que revelam significativa plasticidade ideológica e identitária – nisto o PCP é uma excepção. Foi o poder, nas suas variadas vertentes – executivo, autárquico, de intermediação – que construiu os partidos. Sem poder para distribuir, PS e PSD revelam enormes dificuldades em criar laços de solidariedade interna, pelo que qualquer pretexto serve para criticar as lideranças. Por força das suas idiossincrasias, isto é mais verdade para o PSD do que para o PS.

Acontece que uma vez no poder, a mesma plasticidade que funciona como desvantagem na oposição – a tal ideia que os partidos são um “saco de gatos”– passa a funcionar como vantagem. Sem lógicas identitárias fortes e não sendo o espelho de interesses sociais organizados, PS e PSD podem governar de acordo com as contingências do momento, não sofrendo grandes resistências internas quando mudam as suas próprias prioridades políticas e reconfiguram a sua base de apoio.

Deste ponto de vista, a experiência governativa recente do PSD e CDS ajuda também a compreender a situação na oposição à direita. Se nos governos de maioria absoluta o PSD usou a sua plasticidade ideológica para penetrar no eleitorado de centro – estratégia retomada por Cavaco Silva -, com Durão Barroso e depois com Santana Lopes assumiu uma agenda economicamente liberal e socialmente conservadora. Tal como nos anos oitenta com a AD, o papel do CDS nesta estratégia não foi despiciendo.

Esta opção teve, contudo, uma consequência: esvaziou eleitoralmente o PSD e afastou-o da sua base de apoio. Sem poder para distribuir e após uma deriva para a direita, o PSD descaracterizou-se e ficou a necessitar de fazer importantes rupturas. Sendo que a essencial não é com o santanismo, mas, sim, com a opção pela via “sulista, elitista e liberal”. Uma estratégia cuja concretização, convenhamos, é difícil de levar a cabo na oposição.

Com fracas solidariedades orgânicas, sem poder para distribuir e face à inexistência do estatuto adequado, é difícil que alguém possa aspirar a ter uma estratégia a partir da oposição. Resistir parece ser aquilo que resta a Marques Mendes. Aliás essa tem sido a via para o sucesso. Foi assim quando Guterres esperou pelo tabu de Cavaco, quando Durão beneficiou da demissão de Guterres, quando Santana esperou pelo abandono de Durão ou quando Sócrates ganhou com a dissolução do Governo Santana Lopes.

O problema é que esta predominância da táctica face à estratégia é sintomática do estado em que se encontra a política portuguesa. Volatilidade, imprevisibilidade e esvaziamento ideológico, são estes os melhores termos para descrever o que se passa. Convenhamos que não são termos exemplares.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, março 07, 2006

Vida para além do défice

Numa intervenção no Parlamento em 25 de Abril de 2003, Jorge Sampaio sublinhou a necessidade de existência de vida para além do défice. A declaração tinha destinatários óbvios: o Governo de Durão Barroso e a ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite. Não era para menos. Um ano depois da tomada de posse, o Governo parecia mover-se apenas por um objectivo: combater o défice das contas públicas. A prioridade era acertada. A disciplina orçamental é um bem em si mesmo.

Disciplinar as contas públicas era – e continua a ser – a prioridade nacional. No entanto, limitar a acção governativa a esse objectivo não apenas não o resolve, como compromete a restante actividade do executivo. Aliás, nada obriga a que a contenção orçamental não ande de braço dado com a reforma do conjunto das políticas públicas. Pelo contrário, aquele objectivo pode até funcionar como um constrangimento positivo, colocando pressão sobre os Governos para que mudem políticas – o que de outro modo poderiam não se sentir obrigados a fazer.

Três anos depois da intervenção do Presidente Sampaio, há uma diferença clara entre o Governo que então cumpria um ano e o actual executivo. Enquanto Durão Barroso nunca se conseguiu libertar da imagem de uma governação centrada na retórica sobre o combate ao défice, José Sócrates conseguiu, mantendo a pressão sobre as contas públicas, avançar com mudanças noutras áreas da governação. Em muitos casos, aliás, a necessidade de disciplina orçamental, parecendo um constrangimento, acabou por ser uma vantagem.

Pensemos na educação e na segurança social. Em ambas as áreas, ao longo do último ano, tem sido tomado um conjunto de medidas que representam passos reformistas importantes. Resta saber se sem o constrangimento orçamental o Governo as teria levado a cabo. Um exemplo de cada um dos sectores.

A racionalização da rede escolar. Ninguém tem dúvidas de que escolas com muito poucos alunos têm efeitos pedagógicos nocivos, não sendo nem boas para os alunos, nem para os professores. Além de que implicam despesas de funcionamento elevadas e pouco eficientes. Acontece que fechar escolas, por menos alunos que estas tenham, é tremendamente impopular. O Governo iniciou um processo complexo de encerramento de escolas, que entra em conflito com interesses locais poderosos. Neste caso, a necessidade de diminuir a despesa pública, não sendo o motivo por detrás desta opção, acabou, no entanto, por funcionar como um pretexto com impacto positivo. Sem a ajuda do problema das contas públicas dificilmente o Governo compraria esta “guerra”.

O complemento social para idosos. Na última década, o objectivo de combater a pobreza dos idosos assentou (ainda que com importantes variações) na progressiva equiparação das pensões mais baixas ao salário mínimo. Como é evidente, esta opção é financeiramente pesada, além de que produz desigualdades relativas por prejudicar os pensionistas com pensões pouco acima do salário mínimo. Com o novo complemento social optou-se por responder selectivamente aos idosos com pensões baixas que, por ausência de outros recursos, sejam de facto pobres. Mais uma vez, a contenção orçamental ajudou o Governo a enveredar por um caminho que promove de modo mais eficiente a equidade. Sem a necessidade de disciplina orçamental os Governos continuariam a seguir o caminho popular (e populista) de aumentar indiscriminadamente, com verbas do Orçamento de Estado, todas as pensões abaixo do salário mínimo. Também aqui o défice ajudou a criar as condições para que o Governo pudesse seguir por um caminho mais impopular, mas socialmente mais justo.

Um ano depois da sua tomada de posse, o Governo de Durão Barroso tinha a sua acção tolhida pela retórica da disciplina orçamental. Quando cumpre um ano, o actual Governo, continuando a fazer das contas públicas uma questão fundamental, tem sabido utilizar o problema orçamental como constrangimento para mudar o que de outro modo dificilmente teria capacidade para fazer. Neste sentido, tem sabido combater o défice mostrando que há vida para além deste.

artigo publicado no Diário Económico.