terça-feira, abril 18, 2006

Soluções Partilhadas

Não é nova a tendência nacional para importar modelos. O paradigma a nacionalizar é que foi mudando, de acordo com as preferências políticas domésticas. Quem julga que o caminho português deve passar por aumentar a competitividade fiscal, elogia a opção irlandesa; aqueles que pensam que é desregulando o mercado de trabalho que a nossa economia tem futuro, enaltecem as virtudes britânicas; quem defende que o que há que fazer é flexibilizar a legislação laboral, compensando com mais protecção social, aponta os casos holandês e dinamarquês; os que apostam na necessidade de alteração do padrão de especialização, procuram emular a Finlândia.

Provavelmente para que a economia portuguesa tenha futuro, há que aprender com todas as soluções, mas com sensibilidade à especificidade nacional. As importações acríticas vêm sempre acompanhadas de uma propensão para a engenharia social. Ambas são invariavelmente más conselheiras.

Mas uma coisa é copiar políticas, esquecendo as tradições institucionais existentes no nosso país e os equilíbrios muito sensíveis em que assenta a economia portuguesa e consequentemente o nosso tecido social. Outra é aprender com os processos políticos que permitiram a alguns países europeus ultrapassar os bloqueios que enfrentaram no passado.

Se o caminho irlandês, dinamarquês, holandês e finlandês (e aqui a excepção é o Reino Unido) tem algo em comum, é o facto de as reformas terem assentado em processos negociados e em opções partilhadas por Governos e parceiros sociais, sob a forma de pactos sociais.

Apesar de já ter sido assinada uma mão-cheia de pactos sociais em Portugal, a verdade é que temos uma tradição muito fraca de negociação tripartida. Entre nós, quando Governo, patrões e sindicatos negoceiam, fazem-no defendendo intransigentemente a sua posição de partida. Quando os pactos são finalmente celebrados, ou reflectem a posição de parte dos interessados ou têm um alcance muito limitado.

Um pacto social eficaz requer partilha de vulnerabilidades e disponibilidade para alcançar soluções, nas quais todas as partes se afastem das posições de partida. Desse ponto de vista, o ”acordo de médio alcance” celebrado a semana passada sobre o subsídio de desemprego representa um passo em frente. Mas um passo circunscrito, ainda que a uma matéria muito relevante.

Com o ”livro verde sobre as relações laborais” apresentado hoje, abre-se uma nova janela de responsabilidade para Governo e parceiros sociais. Nenhuma das partes negará que a regulação do mercado de trabalho apresenta entre nós uma série de problemas (por ex., rigidez formal com flexibilidade de facto, que nos coloca no pior dos dois mundos; negociação colectiva conservadora e excessivamente centrada nas questões salariais e de tempo de trabalho; ou incapacidade de promover a inovação no mundo laboral). Neste sentido, o livro verde pode funcionar, antes de mais, como um importante instrumento de partilha de informação. Não menos importante, pode ajudar a colocar fim a algumas ideias sistematicamente repetidas, sem que sejam sujeitas a teste empírico e nas quais assenta muita da rigidez negocial das partes. A partilha de informação é mais importante do que aquilo que pode aparentar.

O que Governo e parceiros sociais têm à frente não é mais uma oportunidade para ajudar a desbloquear a economia portuguesa. É uma responsabilidade. Agora importa que saibam abandonar os papéis que se habituaram teimosamente a assumir: patrões devem esquecer a sua agenda frequentemente míope e com pouca capacidade de inovação; sindicatos devem abandonar a combinação de conservadorismo com irrealismo com que partem para a negociação; e Governo deve continuar nesta área a ter uma posição de abertura negocial - aliás contrastante com o voluntarismo unilateral que tem caracterizado muita da acção governativa. Todos devem olhar não tanto para o que os nossos parceiros europeus fizeram, mas antes para o modo como o fizeram. As experiências de sucesso na Europa ensinam uma coisa: ou há soluções negociadas e partilhadas ou dificilmente haverá solução. O que também é válido para as relações laborais.

publicado no Diário Económico

sexta-feira, abril 14, 2006

Saber esperar

Passam as maiorias e a ideia persiste: a oposição não se opõe e não apresenta alternativas. Como em todas as tendências fortes, as causas explicativas encontram-se menos na actuação daqueles que em cada momento ocupam os lugares e mais em factores estruturais.
Quem está na oposição tende a diabolizar a capacidade propagandística do governo. No entanto, esta é uma consequência, em primeiro lugar, da inexistência de um estatuto da oposição adequado, da assimetria quer de posição (por exemplo, nos debates parlamentares), quer de acesso à informação, entre executivo e restantes partidos. A oposição procura sempre trazer para a agenda a valorização do seu estatuto; uma vez no poder a ideia é invariavelmente abandonada. Num país em que se fala tantas vezes em pactos de regime, este é um tema sobre o qual deveria procurar-se um entendimento.
Se o estatuto da oposição pode ser melhorado, há factores mais pesados que dificilmente se transformam. O principal é o código genético dos partidos de poder em Portugal: PS e PSD não nasceram de movimentos sociais, nem são o produto de clivagens sociais e ideológicas lineares. Ainda que com importantes diferenças, ambos são “partidos de cartel”, construídos por elites e assentes na distribuição de recursos públicos.
O seu principal factor de ancoragem social é a distribuição de poder. Na oposição há, naturalmente, menos poder para distribuir, pelo que se assiste a uma deserção de quadros e uma diminuição da capacidade de produzir alternativas.
A resposta funcional dos partidos à fraca ancoragem social é uma crescente ligação às dinâmicas concelhias. Os mecanismos de reprodução de poder interno vão-se tornando mais poderosos e assentando onde o poder é mais estável: nas autarquias. Este processo de ‘autarquização’ dos principais partidos esconde mecanismos que dificultam o exercício de oposição.
Primeiro de tudo, porque o poder dentro dos partidos emana, cada vez mais, de lutas marcadas pela posição face ao poder autárquico em cada concelho. Com o passar do tempo, esta tendência para o fechamento tem vindo a assumir maior relevo, curiosamente sempre a coberto de um discurso que fala de abertura à sociedade civil. Isto ocorre num contexto contaminado pelo financiamento partidário, nomeadamente na sua relação com dimensões muito perversas do estatuto da oposição nos executivos camarários.
Depois, porque as disputas locais não são susceptíveis de ser transpostas para causas nacionais. A oposição não pode limitar-se a federar causas particulares. Com isto, as direcções centrais ficam com poucos interlocutores, tornando-se difícil construir coligações internas robustas.
Uma vez chegado ao governo, o poder passa a emanar do Estado e o partido é secundarizado. Esta opção permite maior liberdade de movimentos e garante a governabilidade, mas há o reverso da medalha: no regresso à oposição é difícil defender novas políticas, estando-se limitado à informação que se tinha aquando no poder.
Com quadros pouco mobilizados e com o poder muito atomizado internamente, os partidos ficam sem capacidade de produzir alternativas e enredam-se na intriga interna. A isto acresce a fragilidade da sociedade civil e uma total ausência de think-tanks que poderiam injectar nos partidos novas ideias e políticas alternativas. A oposição ao governo fica quase reduzida a lugares comuns.
É por tudo isto que o que parece sobrar às sucessivas oposições é resistir internamente e esperar que o cansaço faça com que o eleitorado lhe caia nos braços. Resta saber até quando é que os portugueses verão como legítimo um sistema político fechado e, pior que tudo, bloqueado.
publicado no Expresso

terça-feira, abril 04, 2006

a ingovernabilidade

Maio de 2001. Silvio Berlusconi encena, num programa televisivo, a assinatura de um contrato com os italianos. Mesa e contexto a fazerem lembrar uma conservatória e apenas cinco compromissos. Se não cumprisse pelo menos quatro, era sua palavra de honra, não voltaria a candidatar-se. Foi o momento da campanha. Face a uma esquerda que se apresentava dividida e sem liderança, Berlusconi surgia como o líder, falando directamente aos italianos, sem intermediação. Candidatava-se apoiado por uma larga coligação: desde a Força Itália até essa agremiação grotesca que é a Liga Norte, passando pelos pós-fascistas da AN e pelos democratas-cristãos da UCD. Num país bipolarizado, ganha quem conseguir unir e mobilizar o seu campo político. Há cinco anos foi o centro direita que o conseguiu.

Hoje, nem o mais fervoroso apoiante de Berlusconi arriscaria dizer que um dos cinco compromissos assinados solenemente foi cumprido. A economia italiana encontra-se estagnada e a conflitualidade política atinge níveis altíssimos. Durante estes anos, o Governo pareceu sempre mais empenhado em resolver as dificuldades de Berlusconi ou dos seus próximos com a justiça do que em governar.

Mas, por estranho que possa parecer, o principal problema de Berlusconi não é o controlo hegemónico que exerce sobre a comunicação social, nem sequer a teia de cumplicidades económicas e políticas, características da Primeira República italiana, de que ele é produto. O principal problema do primeiro-ministro italiano é ter, com o seu estilo - feito de piadas de péssimo gosto e de uma crescente megalomania –, enredado a política italiana num espiral de demência colectiva e de populismo maniqueísta, sem que daí resultasse qualquer vantagem para o País. Apesar de, naquilo que é uma experiência incomum, a Itália ter beneficiado de uma legislatura inteira, a instabilidade é a marca forte do regime e Berlusconi é, hoje, o seu principal responsável.

Mas será que alguma coisa mudará com a mais do que provável vitória de Prodi no próximo fim-de-semana?

Prodi surge claramente como o anti-Berlusconi. Ainda assim, partilha com o actual primeiro-ministro um traço comum. Também Prodi se apresenta como o não político, distante daquilo que são os resquícios dos partidos da Primeira República. Mas enquanto Berlusconi é o não político, histriónico e apalhaçado, Prodi é o não político, tranquilo e distante. Mas bastará esta atitude contrastante para tornar a Itália mais governável?

Com um sistema eleitoral em constante mudança e com um sistema partidário ultra pulverizado (cerca de duas dezenas de partidos terão representação parlamentar e o mais votado pouco superará os vinte por cento) é difícil garantir a estabilidade. Se no centro-direita há que unir os moderados da democracia-cristã com os pré-civilizados da Liga Norte e conviver com as idiossincrasias de Berlusconi, a tarefa do centro-esquerda não é menos difícil. As trezentas páginas do programa eleitoral são disso exemplo. Nada é dito e nenhum compromisso é assumido. É que nas áreas sensíveis, como as questões laborais ou orçamentais, é impossível encontrar um acordo entre Refundação Comunista, Democratas de Esquerda, Radicais de Bonino ou centristas da Margarida. Num contexto de austeridade, mesmo se Prodi introduzir alguma moderação e acalmia na política italiana, é pouco provável que a sua coligação resista.

Daqui a um ano, tudo o que pode restar à Itália é regressar às lógicas de equilíbrios que no passado em muito contribuíram para o fim da Primeira República. Incapaz de criar um sistema partidário que garanta a governabilidade, com incentivos políticos e eleitorais ao poder de veto dos pequenos partidos, Prodi pode ver-se obrigado a recompor diariamente a sua aliança eleitoral.

Aliás, a situação que se vive em Itália não é única. Quando olhamos hoje também para França, só podemos recordar o valor da estabilidade política. Ter condições de governabilidade pode não ser suficiente para que os países europeus ultrapassem a crise, mas é certamente condição necessária. É por isso que o caminho percorrido pela Alemanha depois das últimas eleições e por Portugal no último ano é tão importante.

publicado no Diário Económico