terça-feira, maio 30, 2006

O problema da credibilidade

Num artigo no DN de sexta-feira, escrito certamente ainda na ressaca do último “Prós e contras” a propósito do livro de Manuel Maria Carrilho, Fátima Campos Ferreira afirmava que “quem falar verdade ganha. (...) Por mais difícil que a ideia seja de aceitar, só a sinceridade convence”. Convenhamos que a afirmação, vinda de quem modera um dos poucos programas de debate político com audiências significativas na televisão portuguesa, gera alguma perplexidade. Tanto mais que a organização do próprio programa assenta em torno da clivagem entre os que estão a favor de uma determinada opção e os que estão contra.

Sinal dos tempos: a ideia de que ganhar depende não de divergências estratégicas, fundadas em princípios ideológicos distintos, mas, sim, de um conjunto de categorias politicamente neutras – “verdade”, “credibilidade”, “rigor”, “sinceridade” – tem feito caminho. Não há razão nenhuma para que de ambos os lados da barricada – entre os que estão “pró” e os que estão “contra” – estas qualidades não sejam regra. Convenhamos que quando a possibilidade de vencer radica naquelas categorias, é porque chegámos ao grau zero da política.

O recurso a categorias louváveis, mas neutras, como critério para escolhas tem como efeito um empobrecimento da disputa política, funcionando como obstáculo à clarificação das opções ideológicas em que devem assentar as preferências de sociedade.

De cada vez que um político se afirma pela “credibilidade”, pelo “trabalho”, pelo “rigor”, está a insinuar que o “outro”, o seu adversário, quer seja interno, quer externo, não tem essas qualidades. Entretanto, vai-se consolidando a deriva populista, alimentada pela indistinção ideológica e por uma perversa neutralidade axiológica. Não há, claro, problema na afirmação política através destas categorias. Mas há um sério problema quando a elas se encontra limitada.

Marques Mendes tem procurado construir a sua liderança em torno da ideia de credibilidade. Foram estas as regras do jogo que escolheu jogar: credibilidade por comparação com Santana Lopes; credibilidade na escolha dos candidatos autárquicos e credibilidade nas alternativas às políticas do Governo. Acontece que ao colocar a sua afirmação nestes termos, corre o risco de ser avaliado principalmente através desta mesma categoria. Para além da credibilidade, como aliás tem sido notado, não há no PSD um programa político alternativo e contrastante. E afirmar a credibilidade é a melhor forma de evitar escolher um caminho, baseado em diferenças políticas.

É por isso que é particularmente dramático o que se passou no último congresso do PSD, quando Marques Mendes propôs a criação de uma linha de financiamento no próximo Quadro Comunitário de Apoio para pagar as rescisões na Administração Pública. É que se a opção por diminuir o peso da despesa com salários na função pública é do domínio da salutar e necessária distinção política, já a proposta de recorrer aos fundos europeus para o fazer, revela um extraordinário desconhecimento das regras em que estes assentam, bem como das prioridades políticas da União Europeia (que conflituam claramente com o financiamento comunitário de tal medida). Não se exige a um líder da oposição que domine tecnicamente todos os assuntos. Mas neste caso há um problema de total ausência de credibilidade numa área central para a governação do País.

Para quem sublinha a credibilidade e usa a palavra como ‘leit-motiv’ da sua afirmação, é terrível aparecer com propostas políticas que não são credíveis, não por se basearem em opções ideológicas discutíveis, mas, sim, por assentarem num profundo desconhecimento técnico. Quando alguém busca sustento na credibilidade, de cada vez que falha nos aspectos técnicos das suas opções, está a chamar a atenção para a manifesta fragilidade da sua estratégia.

“Quem com ferro mata, com ferro morre”, costuma dizer-se. Pois quem da credibilidade procura viver politicamente, também é por ela que morre. Mas o mais grave é que a colocação do debate político nestes termos, empobrece as escolhas e fere de morte a própria ideia de debate concorrencial.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, maio 16, 2006

Em nome da família

Aldeias que são repovoadas, maternidades que fecham e sustentabilidade da Segurança Social. Nas últimas semanas, a percepção de que Portugal está a envelhecer e que os portugueses têm cada vez menos filhos tem estado no centro da agenda política.

Entretanto, esta ideia foi reforçada pelo estudo do Instituto para as Políticas de Família (uma ONG europeia), amplamente divulgado na semana que passou. No essencial, o IPF vem dizer-nos que a baixa taxa de natalidade é, hoje, um dos problemas mais agudos enfrentados pelas sociedades europeias e que assume contornos particularmente preocupantes nos países da Europa do Sul. Não só os países mediterrâneos apresentam os valores mais baixos do continente, como tiveram evoluções negativas muito acentuadas num curto período. É esta tendência que leva a que Espanha, Itália e Portugal sejam os países europeus onde a percentagem da população com menos de 14 anos é menor – cerca de 15%, quando há pouco mais de vinte anos era de 26%, naquilo que foi o maior decréscimo de toda a UE.

Estas transformações têm um impacto que vai muito para além da esfera familiar – diminuem a capacidade futura dos países para produzir riqueza e abalam as fundações em que assenta o modelo de bem-estar. São transformações tanto mais complexas quanto resultam de factores que são, em si mesmos, positivos: aumento dos níveis de escolaridade, adiamento da entrada no mercado de trabalho e, consequentemente, da transição para a vida adulta; crescimento da taxa de emprego feminina; liberalização dos costumes e autonomização da sexualidade.

Não devemos, no entanto, aceitar como uma fatalidade o envelhecimento da Europa. Numa altura em que há um cepticismo generalizado sobre a capacidade das políticas públicas para transformar a sociedade, eis uma área onde o Estado pode fazer algo, conciliando crescimento da natalidade com as transformações sociais que ocorreram nas últimas décadas. Não se trata de desenvolver políticas que promovam um regresso a modelo de família anacrónico, mas, sim, de dar condições para que a constituição de família não colida com “forças irresistíveis”, à cabeça, a participação feminina no mercado de trabalho.

É aqui que reside o essencial das causas para a baixa da natalidade: não podemos ter um mercado de trabalho que promove, cada vez mais, a flexibilidade e a mobilidade (regional e de empregos) e um modelo de família que bloqueie essa dinâmica. Se continuarmos por esse caminho, o resultado será necessariamente a perpetuação de um ‘trade-off’ em que a família tem saído perdedora e com ela a capacidade futura de produzir riqueza.

Como sabemos através dos bons exemplos dos nossos parceiros europeus, não é por existir uma maternidade em cada esquina, nem por a política fiscal ou os descontos para a Segurança Social incentivarem a natalidade que os europeus têm mais filhos. O que faz toda a diferença é a existência de uma rede de serviços à família desenvolvida, da primeira infância ao ensino secundário, com preços sociais, e com horários sensíveis à participação dos pais no mercado de trabalho.

Não por acaso, o estudo do IPF confirma também que são os países da Europa do Sul aqueles onde menos se gasta em políticas de família – de 0,5% do PIB no caso espanhol até cerca de 1% para Itália e Portugal. Isto num contexto em que a média europeia é de mais do dobro, ainda assim longe dos cerca de 4% do PIB que os países escandinavos destinam a esta área das políticas públicas. Ou seja, há uma relação entre o que um país gasta em políticas de família e a variação da taxa de natalidade.

Este imobilismo das políticas públicas assenta, aliás, num velho paradoxo: quanto maior é a naturalização do papel da família, menor é a tendência para as políticas públicas investirem no apoio à família. Foi o historial de responsabilização da família como rede de apoio que fez com que, ao longo de décadas, os países da Europa do Sul tenham negligenciado esta área. Por estranho que possa parecer, a invocação da família ajudou Portugal a ficar numa das piores situações em termos de natalidade. É, por isso, importante que a retórica sobre a família seja substituída por políticas que, de facto, a apoiem.

artigo publicado no Diário Económico

terça-feira, maio 02, 2006

"Sócrates vai à China"

Há na ciência política um argumento muito popular, inspirado na viagem do Presidente Nixon à China em 1972. O contexto é simples: em plena Guerra Fria, o então Presidente norte-americano, insuspeito de simpatias comunistas, deslocou-se, numa viagem preparada com grande secretismo, a Pequim, para reatar relações diplomáticas com a China e iniciar uma aproximação entre blocos de modo a colocar fim à Guerra Fria.

Desde então, a expressão ‘Nixon goes to China’ tem sido usada para explicar casos em que Governos e/ou actores políticos levam a cabo acções e estratégias que, à partida, seriam improváveis tendo em conta o seu posicionamento ideológico ou político-partidário. O argumento aplica-se, essencialmente, a opções baseadas no realismo e nas quais a capacidade política dos actores aumenta por força da distância face ao seu lugar de origem – ex., a um Presidente Republicano era mais fácil promover a aproximação a um país comunista, na medida em que não corria o risco de ser acusado, no caso, de ter simpatias pró-maoistas.

Isto vem a propósito das propostas do Governo para promover a sustentabilidade da segurança social. São medidas que decorrem de uma análise realista, mas são também medidas altamente impopulares, cuja adopção requer capacidade institucional e política.

O diagnóstico é partilhado: há um contrato social subjacente à garantia de pensões. Contudo, as condições em que aquele se baseia alteraram-se de tal modo que a sua sustentabilidade no médio prazo se tornou difícil (por força, por exemplo, das transformações nos modelos de família e da crescente feminização do mercado de trabalho, com a consequente baixa da natalidade, assim como do aumento da esperança de vida). Se a isto somarmos dinâmicas (até ver) conjunturais, temos um cenário ainda mais negro – o arrefecimento da economia, o crescimento da taxa de desemprego e o número muito significativo de pensionistas com carreiras contributivas curtas e fracas.

Desse ponto de vista, os custos da não mudança são muito superiores às mudanças propostas, ainda que estas coloquem em causa o contrato social em vigor. É que ou a segurança social é reformada agora ou é a própria existência de uma segurança social pública que corre o risco de se reformar.

Mas uma coisa é o diagnóstico e as medidas apresentadas para lhe responder, outra, diferente, é a capacidade institucional e política para as levar a cabo. Aqui reside, provavelmente, a grande diferença do actual contexto político e que leva a que se possa falar de uma ida de José Sócrates à ”China”.

Primeiro, porque vivemos um ambiente em que a disponibilidade colectiva para aceitar sacrifícios é assinalável. Naturalmente, que a disseminação de leituras ”realistas” não chega. Sem capacidade política de pouco serviria a unanimidade em torno da necessidade de fazer alguma coisa. Ora este Governo tem a seu favor o contexto, mas tem também condições políticas únicas para levar a cabo medidas que sendo necessárias, são, pela sua impopularidade, de difícil implementação.

Não tenhamos dúvidas, é mais fácil a um governo do PS, ainda para mais com um Ministro da segurança social insuspeito de tendências privatizadoras ou de inclinações neo-liberais, reformar a segurança social do que a um governo do PSD. Esqueçamos, por um momento, divergências nas soluções propostas e rapidamente nos apercebemos que este mesmo pacote teria sido recebido com uma enorme desconfiança se apresentado por um executivo de centro-direita. Este facto é, no actual contexto económico e social, um trunfo muito valioso para o país, usado agora na segurança social mas que deve ser alargado a outras áreas.

Por paradoxal que possa parecer, não é apenas a existência de uma maioria absoluta ou a partilha da ideia de que ”o país está mal” que tem permitido a este Governo uma atitude reformista. É também o lugar político de onde parte que o capacita para adoptar esta estratégia. Convém é não esquecer que ”as idas à China” trazem consigo sérios problemas. Entre eles as condições em que se regressa ao ponto de partida.

publicado no Diário Económico.