terça-feira, outubro 03, 2006

"Monstro ou banana?"

O ainda Procurador-Geral da República aproveitou para partilhar mais uma vez com os leitores dum semanário algumas impressões sobre o seu mandato. Depois de no “Expresso” ter “explicado” o episódio do “envelope 9”, o que não foi capaz de fazer no Parlamento e muito menos ao anterior Presidente da República, no “Sol” deste fim-de-semana, ajuda-nos a perceber melhor estes seis anos.

A leitura das entrevistas do dr. Souto Moura tem sempre uma virtude: serve para confirmar que não tem muito jeito para lidar com os media. Aliás, é o próprio a reconhecê-lo, ao afirmar que teve “duas ou três intervenções de quem não está nada à vontade com a comunicação social. A propósito de Herman José (quando respondeu ‘pode ser’ aos jornalistas que lhe perguntavam se o humorista era suspeito no caso Casa Pia), aquilo foi simplesmente um ‘deixem-me em paz’”. É isso mesmo que o dr. Souto de Moura revela precisar, de paz. A tal paz que certamente lhe permitiria ter feito declarações, como diz ser necessário, “de uma forma mais pausada”. O que provavelmente significaria que, quando questionado se Sicrano é suspeito de ser pedófilo, diria “pode” enquanto saía do vão-de-escada e “ser” já à entrada do carro. Faz toda a diferença.

O modo como nos fomos habituando a ouvir o dr. Souto de Moura falar é exemplo paradigmático de que não estava à altura nem do cargo, nem do contexto em que o exerceu. Se se sentiu “pressionadíssimo” pela comunicação social e se foi o facto de ter jornalistas todo o dia à porta que o levou a fazer declarações equívocas, quando não contraditórias – que dá-se o caso de tocarem aspectos centrais da vida de cidadãos –, então, pura e simplesmente não tinha condições para ser procurador-geral. Não se trata duma questão lateral ou de uma nota de rodapé no exercício de funções de chefia no Ministério Público. É que do procurador-geral espera-se peso institucional, contenção e solidez nas declarações que profere. E espera-se também que tenha como preocupação interiorizar o princípio da presunção da inocência de todos os cidadãos e que não trate esta questão com ligeireza.

Desse ponto de vista, é particularmente grave que o ainda PGR, para mostrar a sua surpresa perante as intervenções feitas pelo anterior Bastonário da Ordem dos Advogados, dr. José Miguel Júdice – que se limitava a sublinhar princípios elementares do Estado de direito –, diga que “não (se) lembra de nenhuma a falar das vítimas; era sempre os atropelos, as violações de direitos do arguido e coisas desse género” (sic). Ficamos, portanto, a saber que para o dr. Souto de Moura os direitos do arguido são questões menores. Acontece que se para o Ministério Público esta não é uma prioridade, ninguém se pode sentir seguro perante uma acusação em Portugal, especialmente se esta for completamente infundada e assente em calúnias.

A este propósito valeria a pena que o dr. Souto de Moura reflectisse nas palavras do dr. Proença de Carvalho, em carta publicada no mesmo “Sol”, na qual desmente a manchete da edição anterior e chama a atenção para as “campanhas contra personalidades públicas, feitas sem rigor nem respeito pelo direito ao bom nome que assiste a todos os cidadãos”. É, aliás, esta tendência que levou a que em Portugal se tenha chegado a uma situação sinistra em que qualquer pessoa com o mínimo de notoriedade, quando acusada do que quer que seja, passe a ser presumível culpada. A consequência é simples: os inocentes correm hoje sérios riscos, enquanto os verdadeiros prevaricadores mais facilmente se podem escudar na fragilidade e extemporaneidade das investigações.

Desde os jornalistas que o acossavam à porta de casa, passando pelo modo como em Coimbra, em 1969, os acontecimentos lhe passaram “um bocado ao lado”, até ao modo insidioso como insiste em lançar suspeições sobre aqueles que foram caluniados levianamente, toda a entrevista de Souto Moura ao “Sol” fornece elementos para um ‘quiz show’ em que o que há que decidir é – para usar os exactos termos em que o próprio coloca a questão – se estamos perante um “monstro ou um banana”. Qualquer que seja a resposta, há que convir que as consequências para o funcionamento do Estado de direito foram igualmente trágicas.

publicado no Diário Económico