quinta-feira, janeiro 26, 2006

o regresso do PRD

A postura do novo Presidente face ao Governo é decisiva para se perceber os próximos anos políticos. Mas o que poderá mudar está longe de acabar nesta dimensão. Depois do último domingo, as transformações extender-se-ão ao interior dos dois principais partidos portugueses. A dimensão da derrota e da vitória trará múltiplos problemas ao PS e PSD.

Cavaco Silva enfrentará um dilema: ou contribui para uma relação tensa com o Governo ou, pelo contrário, veste o fato de Presidente da República tal como foi desenhado por Soares e vestido também por Sampaio. Qualquer das opções é problemática: a primeira promove a instabilidade, confirmando os alertas da campanha; a segunda defrauda as expectativas da larga maioria dos que nele votaram. Dá-se, contudo, o caso de Cavaco Silva não ser um homem de grandes rupturas. Pelo que, contrariando todas as expectativas, o mais provável é que opte por fazer pouco, pelo menos no primeiro mandato.
Se assim for, pouco mudará onde se esperava que muito mudasse. O que poderá mudar, e muito, é a vida dos partidos.

Antes de mais, no PSD. Na campanha, Cavaco Silva sublinhou reiteradamente o carácter supra-partidário da sua candidatura.
Houve aqui uma mistura de tacticismo puro com crença genuína. Cavaco Silva ganhou, apoiado no aparelho do PSD. Mas a sua opção por esconder essa mesma máquina é um sinal do que virá. O novo Presidente desconfia dos partidos e da política. Nisso interpreta bem o sentimento popular. O problema é que Cavaco Silva também não gosta do partido que ajudou a criar e terá a tentação de tutelar o seu espaço político. Ora, como experiências simétricas o demonstraram, nenhuma direcção partidária gosta de ser tutelada desde Belém e, principalmente, é difícil que, na oposição, se sobreviva a essa tutela. A vitória de Cavaco Silva pode representar, a esse propósito, uma mistura do pior do eanismo (a desconfiança face aos partidos) com o pior do soarismo (a tutela do seu espaço político).

A soma do resultado de Cavaco Silva com o de Manuel Alegre sublinha também o mal-estar face aos partidos. A tendência tem lastro histórico e é reincidente. Contudo, nunca teve uma expressão eleitoral tão forte. Ainda que por razões diferentes, 70% dos portugueses votaram em candidatos que abusaram da crítica aos partidos. Este dado confirma o divórcio entre sociedade e políticos. Muitas das vezes, esse divórcio ocorre pelas piores razões, mas isso não deve impedir que os partidos leiam os sinais. Se em nada mudarem, no médio prazo, quer PSD, quer PS serão inevitavelmente vítimas deste caldo cultural. É por isso que nenhum dos dois grandes partidos ganhou as últimas presidenciais.

Aqui chegamos ao PS. Dando sequência a longos meses em que geriu a questão presidencial, literalmente, com os pés, o PS incorre nos erros do passado. Fingir que nada se passou, é a pior das opções. Os resultados eleitorais de domingo não são normais, nem exclusivamente consequência da impopularidade das medidas do Governo ou de eventuais erros de condução da campanha. Pelo contrário, têm causas mais profundas e menos contigentes. Ou o PS as procura interpretar, ou está condenado a ser surpreendido por uma volatilidade crescente do voto. E, convém não esquecer, um programa de Governo reformista precisa de condições institucionais para ser levado a cabo, mas, também, de sustentação social que o torne exequível.

Desse ponto de vista, o efeito carruagem, produzido pela deslocação de votos do centro-esquerda nas últimas legislativas para o centro-direita agora, não é um problema de somenos. Como é sabido, fazer regressar eleitores é das tarefas politicamente mais difíceis. Da última vez que aconteceu levou uma década e consumiu dois secretários-gerais do PS.

Com o PSD sob tutela desde Belém, com o regresso em força do discurso anti-partidos, assente numa suposta neutralidade ideológica e com uma transferência importante de eleitorado do centro-esquerda para o centro-direita, podemos estar a viver o regresso do PRD. Hoje, como então, nada de bom daí resultará. Há vinte anos, o resultado da experiência PRD foi um defraudar de expectativas e a não resolução de nenhum dos problemas que estiveram na génese da sua força. É provavelmente essa a história a que assistiremos nos próximos anos.

publicado no Diário Económico.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Entre o alarmismo e o fetichismo

As declarações do ministro das Finanças, no último Prós e Contras, afirmando que “daqui a dez anos não há dinheiro para pagar as reformas”, trouxeram de novo para a agenda mediática a sustentabilidade da segurança social. De tempos a tempos, isto acontece mas quase invariavelmente com maus resultados. De cada vez que é notícia a tão propalada falência da segurança social, logo se produzem dois efeitos. Primeiro, uma disputa ideológica estéril, que enviesa a discussão e centra-a em aspectos fetichistas, levando a que se erre na identificação dos problemas que de facto existem. Depois, um alarmismo social que está longe de ser bom conselheiro.

Convenhamos que é natural que assim seja. A área social é um local privilegiado para a formação de poder, na medida em que nela se cruzam necessidades vitais (o trabalho e a segurança) com os discursos eminentemente ideológicos. Quando a indiferenciação política é crescente em outras áreas centrais das políticas públicas e quando a autonomia da política doméstica vai também diminuindo, designadamente por força da integração europeia, é natural que as áreas sociais sejam usadas como espaços para o contraste político. Pese embora todos os constrangimentos e pressões externas, a política social continua a ser essencialmente da esfera de competência dos Estados nacionais.

É este contexto que leva a discussões frequentemente extremadas, resvalando para discursos fetichistas que, ao mesmo tempo que possibilitam a consolidação de posições político-ideológicas, falham na identificação dos problemas e na definição de estratégias para os superar. Dois exemplos típicos disto são, à esquerda, a responsabilização de uma suposta globalização neo-liberal por todos os males e, à direita, a opção pela privatização como panaceia milagrosa. Ora é sabido, por um lado, que os problemas que enfrentam os regimes de segurança social radicam essencialmente em factores endógenos, designadamente na forma como culturas político-institucionais se entrecruzam com dinâmicas dos mercados de trabalho e evoluções demográficas; e, por outro, que a opção privatizadora não apenas tem custos de transição insustentáveis, como só é concretizável num quadro de autoritarismo político, em que os pontos de veto democráticos são inexistentes e onde a contestação social e política é reprimida (não por acaso, foi no Chile de Pinochet que mais longe se foi nesta opção).

Mas, para além dos enviesamentos ideológicos, está o alarmismo social. De cada vez que se fala dos riscos futuros da segurança social, é dada uma machadada na própria sustentabilidade do sistema. Quando é um agente com responsabilidades políticas a fazê-lo, o que acontece é que, ainda que indirectamente, há um desincentivo ao esforço contributivo. Porque razão devem os cidadãos e as empresas contribuir para um sistema que, a crer nos próprios responsáveis políticos, não é sustentável? Que vantagens terão no futuro aqueles que agora descontam?

Isto é tanto mais problemático quando um dos problemas mais sérios que o sistema português enfrenta é a evasão contributiva, que assume valores incomparavelmente superiores aos dos nossos parceiros europeus e que tem funcionado como amortecedor para a nossa economia. Ora este problema resolve-se também com um discurso de confiança no sistema, acompanhado, naturalmente, por uma aposta nos mecanismos de regularização e de combate à fraude contributiva e prestacional.

O que não quer dizer que se deva escamotear a verdade e fingir que não há sérios problemas de sustentabilidade financeira. O que importa é que, ao fazê-lo, se sublinhem sempre as formas de tornar viável a segurança social. Antes de mais, introduzindo um discurso de confiança e, depois, sublinhando que os problemas não se resolvem através de grandes rupturas, mas, sim, com gradualismo e realismo, recalibrando o sistema.

Para salvar a segurança social, serve de pouco lutar contra moinhos de vento ideológicos ou acenar com panaceias milagrosas. A melhor forma de o fazer é prosseguir com pequenos passos: designadamente, aumentando a eficácia administrativa, combatendo a fraude; alterando a fórmula de cálculo das pensões, evitando manipulações do sistema; limitando os valores das pensões mais elevadas, introduzindo equidade; promovendo o envelhecimento activo, estimulando a contributividade; e, claro, com abertura e criatividade na busca de novas soluções para o financiamento, de que é exemplo a afectação de 50% cento do aumento do IVA ao sistema.
publicado no Diário Económico

domingo, janeiro 08, 2006

O Engarrafamento

Depois de dez penosos anos de fraca governabilidade, em 2005 os portugueses tiveram a percepção clara de que o País precisava de estabilidade política. Sete anos de governos minoritários do Partido Socialista, seguidos por uma coligação indesejada entre PSD e PP e ainda pela experiência Santana Lopes, expuseram a dimensão do problema.

Neste contexto, os eleitores aproveitaram as legislativas para fugir, finalmente, ao pântano. Uma sólida maioria parlamentar, de um só partido, não sendo a solução mágica para os problemas que o País enfrenta, foi entendida como um importante instrumento para procurar superá-los. Independentemente de afinidades ideológicas ou de avaliações substantivas sobre os programas eleitorais, em Fevereiro de 2005 o país assistiu aliviado à vitória do PS. Um alívio que se terá estendido a muitos que nem sequer se sentem próximos dos socialistas. A lição de 2005 é, por isso, que a estabilidade política é um bem em si e que com ela podemos ser capazes de, em alguma medida, contrariar a crise. Com instabilidade, limitar-nos-emos a acrescentar um problema a todos os outros que já enfrentamos.

Acontece que a estabilidade não depende apenas do apoio político que um qualquer Governo encontre no Parlamento. Por isso mesmo, as próximas eleições presidenciais são muito relevantes. É que, ao contrário do que erradamente o PS quis, durante muito tempo, fazer crer, não se tratava de um assunto secundário e que não estava no topo da agenda. As presidenciais são instrumentais para que o objectivo da estabilidade continue a ser prioritário. Ora a estabilidade não se proclama, antes precisa de condições objectivas para que ocorra.

Entre estas, destaca-se obviamente o bom relacionamento e equilíbrio entre Presidente da República e Governo. Este objectivo, como o passado nos ensina, não depende da comunhão ideológica ou política entre Governo e Presidência, mas, sim, da plena incorporação, por ambas as partes, dos papéis que lhes estão constitucionalmente destinados. E é precisamente a este nível que a opção pela estabilidade que os portugueses tomaram em 2005 pode ser contrariada já em 2006.

Como é sabido, mas parece andar esquecido, entre nós, a função presidencial, tratando-se de um “poder neutro”, ainda que com importantes poderes institucionais – como vimos com a recente dissolução do Parlamento –, está, à luz da nossa Constituição, bem longe da lógica presidencialista do tipo gaullista. Em Portugal, as eleições presidenciais não servem para escolher uma política e qualquer promessa nesse sentido traz em si a semente da instabilidade e da conflitualidade entre executivo e Presidente. É que não só não compete ao Presidente conduzir a política geral do país, como nem sequer pode orientar ou superintender a acção governativa. Ao executivo cabe governar, ao Presidente cabe moderar, arbitrar e fiscalizar.

Deste ponto de vista, o resultado das presidenciais é decisivo para que “a lição de 2005” possa ganhar lastro e ser continuada. A crer no que nos dizem as sondagens, Cavaco Silva pode vir a ganhar as eleições. O problema é que, mesmo entre os silêncios, Cavaco Silva revela uma forte e sistemática pulsão executiva. É aí que reside o principal risco da sua vitória. O problema não está, como se pretende fazer crer, no facto de lhe faltar cultura humanista; de não ter tradição antifascista; de ser tímido nas relações internacionais; e de a sua actividade como primeiro-ministro ser, naturalmente, motivo de legítima contestação. Nada disso é, em si, um problema para o exercício do cargo. O risco da eleição de Cavaco Silva para Presidente radica no seu perfil marcadamente executivo, próximo da figura de um primeiro-ministro. Ora Portugal acabou de eleger, com as suas qualidades e defeitos, uma maioria parlamentar, de onde saiu um primeiro-ministro. Passarmos a ter dois primeiros-ministros, no lugar de um, não resolve nenhum dos problemas que o País enfrenta. Bem pelo contrário. Acrescenta desnecessariamente um que não existia. Um verdadeiro engarrafamento de primeiros-ministros.
publicado no Diário Económico em 29/12/05