sexta-feira, junho 30, 2006

O socialismo e a gaveta

Like love and the credit card, political catch-phrases have an initial attraction that leads to later complications.
Michael Waller

A tendência não é nova: cada vez que o PS governa, logo surge a acusação de que o faz com “políticas de direita”. Ao longo de décadas, o PCP foi-se especializando neste discurso, tendo-se, entretanto, o BE juntado ao coro. Com o passar do tempo, as políticas deixaram de ser apenas de “direita” e passaram a ser vistas como “neo-liberais”. Até aqui, convenhamos, o modo como é visto o Governo de José Sócrates não se distingue das anteriores experiências de executivos PS. Há, contudo, uma novidade. De há um ano para cá, já não é só o bloco social à esquerda do Governo que acusa o PS de governar à direita. É também a direita que afirma que o PS lhe está a roubar o espaço político, aproveitando para fazer o que nem Durão Barroso, nem Santana Lopes quiseram ou puderam fazer.

Entre aqueles que à direita se opõem ao Governo, a tendência é vista com evidente preocupação. Não havendo divergências na substância das políticas, a oposição, quer parlamentar, quer mediática, vê-se entrincheirada num combate politiqueiro ao Governo, assente numa abordagem casuística na qual tudo o que lhe resta é dizer “esfola” quando o Governo já disse “mata”.

Nisto, PS e Governo revelam alguns sinais de entusiasmo. Compreende-se: com a oposição parlamentar em processo auto-fágico e com a ocupação de um espaço político que não é seu, o potencial hegemónico do PS parece crescer todas as semanas. Ao que há que somar o exemplo vindo de fora, com as três maiorias absolutas sucessivas do Labour de Tony Blair – alcançadas através da ocupação do espaço político do principal competidor, no caso os “Tories”.

Como todas as narrativas políticas que parecem inicialmente entusiasmantes, também este tipo de estratégia traz consigo um conjunto importante de complicações políticas e eleitorais.

Antes de mais, a experiência do passado. Quando o PS governou num contexto de dificuldades financeiras e económicas, tendo metido o “socialismo na gaveta”, fê-lo com consequências eleitorais conhecidas: 20,7%, o seu pior resultado em legislativas. O realismo saiu caro, até porque, ontem como hoje, há sempre alguém disposto a cavalgar populisticamente a austeridade, recolhendo os seus frutos eleitorais.

Mas ainda que tudo o resto fosse igual, o “exemplo Blair” não é importável de modo linear. Se mais não fosse, opõem-se-lhe a fraca ancoragem social do voto em Portugal. No Reino Unido bem pode o Labour caminhar para o centro do centro do centro que, na hora da verdade, o seu eleitorado tradicional estará do seu lado. Com um sistema eleitoral em que o “vencedor leva tudo” e com um partido construído de baixo para cima, é natural que a volatilidade do voto seja reduzida. Em Portugal as coisas passam-se de modo diferente. Não apenas os partidos de poder foram construídos pela vontade de elites, tendo bases sociais voláteis e frágeis, como o próprio sistema eleitoral incentiva a pulverização do voto. No caso do PS, o cenário complica-se por força da combinação de estabilização do voto nos partidos à sua esquerda e maior capacidade de concentração de voto no PSD à direita. Para mais, convém ter presente o que se passou nas presidenciais, onde a indicação de voto num candidato foi muito pouco mobilizadora.

Contudo, o que tem sido muitas das vezes descrito como ocupação do espaço do centro e do centro-direita pelo actual Governo trata-se, na maior parte dos casos, de um eufemismo para descrever aquela que é a marca genética do executivo de José Sócrates, o enfrentar dos “interesses corporativos”. A confrontação com os actores sectoriais tem sido uma forma eficaz para que aos olhos do “interesse comum” as mudanças sejam percepcionadas como legítimas. Mas não deixa de ser verdade que numa democracia ainda longe da institucionalização, esta estratégia produz danos colaterais. Portugal precisa de mais e não de menos factores de intermediação entre a sociedade e a esfera política e a valorização da negociação é uma das poucas formas conhecidas de tornar orgânica a representação da sociedade. Com uma crescente pulverização dos interesses organizados, a ancoragem política dos blocos sociais fica ainda mais frágil e a estabilidade do sistema partidário será, no médio prazo, afectada. Também aqui, o eleitorado tenderá a fugir e, no que é grave, quando o fizer, fá-lo-á sem rumo.

Assim, o que aparenta ser uma estratégia eleitoralmente sustentável, pode afinal revelar-se uma opção de enorme risco. O Governo enfrenta um importante dilema: saber se deve continuar a fazer o que o realismo obriga a que seja feito, fragilizando a relação com a sua base social ou, pelo contrário, governar consolidando a sua ancoragem partidária e eleitoral. Enganar-se-á quem pensa que há uma solução win-win, assente num futuro de sucessivas vitórias eleitorais. O país ficará um pouco mais sustentável, mas quem vier depois terá como principal missão “juntar os cacos”. Está em jogo um trade-off entre realismo e sustentabilidade futura do PS, um trade-off que é também entre governabilidade e institucionalização da democracia. A opção tomada, sendo acertada, é de enorme risco. Um risco talvez apenas superado pela tentação para fingir que ele não existe.

Publicado no número de Junho da Revista Atlântico.

terça-feira, junho 27, 2006

O regresso de Santana

Há dias, a direcção do grupo parlamentar do PSD disponibilizou-se para “integrar Santana Lopes o mais possível nos trabalhos do grupo parlamentar” (sic), como se estivesse a falar de um desvalido que precisa de frequentar um programa de inserção social. No Sábado, o Expresso noticiava que Santana teria direito a um gabinete de luxo no seu regresso à Assembleia da República – como se houvesse gabinetes de luxo em São Bento e como se, em alguma parte do mundo, fosse um luxo um antigo primeiro-ministro ter um gabinete individual. Claro que as notícias que se seguiram ao anúncio de que o ex-líder do PSD retomaria o seu lugar no Parlamento, ainda que com intensidade diferente do que acontecia no passado, têm apenas um objectivo: descredibilizar ainda mais Santana Lopes. A novidade é que este processo parece agora ser, no essencial, movido pelo seu próprio partido.

Desde que perdeu as eleições legislativas, o PSD tem procurado fazer de Santana Lopes o responsável, quase único, pela hecatombe eleitoral. Para a actual direcção do PSD, o executivo tinha um problema de credibilidade, que tornou a derrota eleitoral uma inevitabilidade. Pelo que a solução parece simples: recuperando a credibilidade perdida, as vitórias eleitorais voltarão.

Ninguém negará que o Governo Santana Lopes tinha vários problemas. Acontece que do ponto de vista da competitividade eleitoral, o primeiro de todos não era o carácter populista do seu líder ou a instabilidade que revelou, mas, sim, a sua fraca legitimidade política. Retrospectivamente, ninguém pode duvidar que era o próprio Santana Lopes o principal interessado em ter ido a votos e que não ter sido eleito directamente o tornou muito frágil.

Ao responsabilizar Santana Lopes e ao atribuir ao seu défice de credibilidade o descalabro nas últimas eleições legislativas, o PSD está apenas a evitar reflectir sobre os reais problemas que enfrenta em termos eleitorais. Que o continue a fazer, mais de um ano após as eleições, é sinal de profunda desorientação estratégica. É que o PSD tem procurado fazer a ruptura com Santana Lopes, mas não tem procurado fazer a ruptura com a sua última passagem pelo Governo. Acontece que os principais problemas que continua a enfrentar assentam aqui e não nos curtos meses em que Santana foi primeiro-ministro.

O Governo Durão/Portas representou um corte com as anteriores experiências governativas do PSD, nomeadamente sob a liderança de Cavaco Silva. Foi um executivo mais ancorado à direita, prejudicando o realismo reformista tradicionalmente atribuído ao PSD. Isso foi visível na política internacional com a primeira (e espera-se última) grande cisão entre os partidos do arco da governabilidade em Portugal, quando o Governo optou por uma posição seguidista da administração Bush; nas áreas sociais, quando se assistiu a um misto de conservadorismo social com uma dinâmica desreguladora de carácter neo-liberal e, acima de tudo, quando o Governo revelou uma fixação financista, que acantonou a governação em torno do défice das contas públicas – o que teve, aliás, como consequência a não resolução do desequilíbrio orçamental, ao mesmo tempo que inibiu a capacidade reformista do Governo noutras áreas.

Os resultados deste programa político são conhecidos: desadequação face à sociedade portuguesa, insensibilidade social, incapacidade de cumprir as metas definidas e, claro, duas derrotas eleitorais expressivas.

É este curriculum político que faz com que, hoje, o PSD esteja encurralado numa posição em que tudo o que lhe resta é dizer “esfola”, quando o executivo já disse “mata”. Santana Lopes é um epifenómeno neste percurso. Mas enquanto o PSD faz de Santana Lopes a raiz de todos os males, evita enfrentar as causas por detrás dos valores consistentemente baixos que tem apresentado nas sucessivas sondagens eleitorais. Apontar baterias a Santana Lopes é, aliás, revelador de que o PSD não tem percebido as razões do apoio eleitoral que o PS, apesar das medidas muito impopulares, continua a ter.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, junho 13, 2006

da selecção a Timor

Com Timor e com a selecção nacional a pátria parece ressurgir. Numa época de intenso pessimismo, geram-se ondas de entusiasmo, sem ponderação crítica.

Percebe-se que assim seja em relação ao futebol. Gosta-se de futebol, ponto final. Não vale a pena tentar encontrar justificações racionais. Mas a selecção é um pouco diferente. Nela o que está em causa não é a ”clubite” aguda. O entusiasmo em torno da equipa das quinas estende-se para além dos que acompanham com religiosidade semanal os três grandes.

Este facto aumenta a responsabilidade da selecção. É por isso que uma coisa é um treinador de um clube entreter-se em declarações irresponsáveis. Não vincula ninguém. A selecção, pelo contrário, representa Portugal. Mas gerou-se uma onda de optimismo acrítico que quase proíbe o escrutínio do seus responsáveis: quem critica a selecção não é bom patriota. Acontece que o que a selecção faz e o que os seus responsáveis dizem deveria ser exemplar. Deveria mas não é.

Desse ponto de vista, o seleccionador nacional tem sido um exemplo paradigmático. Não estão em causa as suas opções desportivas. O futebol é um campo de saber democratizado, sobre o qual todos temos opiniões definitivas. O que está em causa é a sua reacção a críticas legítimas. Responder aos críticos insinuando que têm comportamentos xenófobos e não passam de intelectuais, são acusações muito graves, que remetem para uma genealogia ideológica populista e autoritária. Quem representa Portugal deveria saber estar à altura dessa responsabilidade. Na selecção, os resultados desportivos não podem ser a medida exclusiva de tudo.

Com Timor, Portugal reage também de modo emotivo. Haverá poucos assuntos geradores de tão grande unanimismo e em que o idealismo seja uma força tão dominante. Numa época de cinismos alargados, este facto é importante. Mas a política internacional gerida com base no idealismo revela-se normalmente perigosa. A intervenção dos EUA no Iraque está aí para mostrar como o voluntarismo, marginalizando todo o realismo, pode ter consequências desastrosas.

Portugal enviou, a pedido do Governo Timorense, um contigente da GNR. O consenso político-partidário em torno do tema foi total e a pressão mediática torna Timor um assunto de emoção nacional. Mas Timor é também uma questão bem mais complexa do que se quer fazer crer. E, para descomplexificar, nada melhor que arranjar um inimigo externo. Onde antes estava a Indonésia, ameaça agora estar a Austrália.

Entre bravatas diplomáticas do Estado português, ausência de comando no terreno, interesses perversos no petróleo e acusações de atitudes neocolonialistas, tudo tem servido para vestir à Austrália a pele de mau da fita. Pelo caminho, esquece-se que a Austrália – uma democracia liberal rodeada de países autoritários ou de democracias frágeis - tem como prioridade nacional garantir a estabilidade geopolítica na região e que nada é mais ameaçador deste objectivo do que um Estado falhado – que, após a saída prematura da ONU e com o golpe de Estado em vários tempos que parece estar em curso, é aquilo em que Timor se ameaça transformar.

Foi a Austrália que aceitou renegociar a exploração dos recursos naturais do Mar de Timor sem que a isso fosse, de facto, obrigada. Passando de uma quota de 82% dos lucros do ”Greater Sunrise” para 50%, o que por si só garante recursos financeiros muito importantes para Timor. Foi a Austrália que enviou um contingente militar muito significativo, dez vezes superior ao português, que faz de facto a diferença na estabilização do território. Mas, em Portugal, exactamente do outro lado do mundo, nada melhor do que encher o peito e achar que os nossos 120 GNR é que fazem a diferença. Será que será assim se, por infelicidade, as coisas correrem mal? Será que a questão do comando continuará a ser, nessa altura, um assunto ”técnico”?

O patriotismo acrítico não é bom conselheiro. No futebol, a consequência é relativamente inofensiva: a desilusão face aos maus resultados. Na política internacional, já não é bem assim: as bravatas podem tornar-se perigosas.

publicado no Diário Económico.