terça-feira, outubro 31, 2006

Semana Horribilis

Primeiro foram as “vozes da rua”, depois a imprensa escrita, finalmente uma sondagem de opinião: muito mais tarde do que é comum, foi decretado o fim do “estado de graça”. Com a apresentação do Orçamento de Estado ter-se-á dado a viragem. Mas será exactamente assim?

Ao contrário do que havia acontecido com os dois primeiros-ministros anteriores, José Sócrates tem beneficiado, desde a tomada de posse, de uma improvável popularidade. Mesmo com medidas de austeridade, os seus índices de avaliação são positivos.

Duas razões explicam isto: uma primeira de contexto, os portugueses interiorizaram que a situação do País requeria políticas austeras e estabilidade institucional (Sócrates e, mais tarde, Cavaco Silva foram percepcionados como a personificação dessas ambições); e uma segunda que se liga com a marca que o primeiro-ministro imprimiu: enquanto Durão Barroso nunca conseguiu libertar-se de uma política exclusivamente centrada no défice e Santana Lopes enredou-se numa espiral de instabilidade, José Sócrates conciliou uma terapia de emergência nas contas públicas com capacidade reformista, à cabeça na segurança social e na educação.

Na verdade, a austeridade, menos do que uma limitação à acção governativa, funcionou como mecanismo capacitador das reformas. As dificuldades que o País enfrenta têm servido para criar as condições para o Governo alterar políticas. A estratégia foi eficaz, mas trouxe com ela importantes problemas para o discurso do Governo. Problemas que se acabariam por revelar no médio prazo. É provavelmente o que está agora a acontecer.

Desde o início que o discurso do Governo se revelou circunscrito a umas quantas expressões e ideias. Um dos aspectos centrais desse discurso foi o combate aos privilégios e a luta contra os interesses corporativos. Para além dos riscos que decorrem de se saber se os privilegiados são-no de facto e se a representação de interesses de modo orgânico deve ser remetida, sem mais, para a categoria de corporativo (que aliás, em Portugal tem uma conotação histórica que lhe confere um peso particularmente negativo), este discurso funciona enquanto cada um dos eleitores não se sentir como um dos “privilegiados”. Enquanto se diminui regalias aos professores, quem não é professor tende a concordar com as medidas. E o mesmo é válido para os médicos, para quem beneficia do subsídio de desemprego e por aí fora. O problema é quando chega o momento em que todos os portugueses se sentem alvo do discurso contra os privilégios injustificados.

Desse ponto de vista, o anúncio do aumento da electricidade por culpa dos consumidores pode ter sido a gota de água: não houve ninguém que não se sentisse provocado pelas declarações inexplicáveis do secretário de Estado da Indústria. De repente, todos os portugueses se tornavam “privilegiados”. Se a isto somarmos a introdução de portagens em algumas SCUT, o anúncio de taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias e a apresentação de um Orçamento de Estado de contenção, temos de facto uma “semana horribilis” para o Governo. Mas serão estes os acontecimentos responsáveis por aquilo que tem sido descrito como o fim do “estado de graça”?

Muito provavelmente, o aspecto essencial da “semana horribilis” não é ter, por uma sucessão de ‘gaffes’, posto fim ao estado de graça, é ter revelado o ponto de saturação do discurso que o Governo assumiu desde a tomada de posse. O que a semana de apresentação do O.E. expôs foi a necessidade de combinar um programa centrado na política de emergência social, adequado para responder à situação em que o executivo encontrou o País, com um discurso que lance as bases de uma nova estratégia mobilizadora.

Já é possível identificar alguns sinais de que o discurso do Governo começa a mudar. O ‘fair-play’ que entretanto o primeiro-ministro tem revelado perante as contestações ao Governo é disso exemplo e provavelmente mais avisado do que a estratégia adversativa até aqui dominante. Mas para que a “semana horribilis” não se torne a regra, mais do que evitar as liberdades discursivas dos membros do executivo, é preciso que o discurso sobre os privilégios vá sendo compensado por um sentido para as reformas – para além da lógica ideologicamente neutra em que demasiadas vezes tendem a assentar. É que ser comparativamente melhor a gerir políticas de austeridade e esperar que a retoma económica resolva tudo, não é, por si só, garantia para sucessos eleitorais.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, outubro 17, 2006

O clima anti-sindical

Na semana passada, a contestação saiu à rua. Alguns viram nisso um primeiro sinal de que o Governo começava a delapidar a sua popularidade. Mas a manifestação de quinta-feira serviu para revelar duas coisas: que a capacidade de mobilização da CGTP continua forte; e que o actual Governo continua a ter um sério problema na sua relação com o movimento sindical.

Como é sabido, o Governo elegeu o combate aos privilégios corporativos como uma das suas imagens de marca. O fato vestiu bem e mostrou-se popular. Desde o início, entre as várias componentes desta estratégia, surgiu um discurso crítico dos sindicatos, acusados de terem uma postura conservadora.

A confrontação com os sindicatos, que são acusados de defender interesses instalados, tem sido eficaz para que aos olhos do “interesse comum” as medidas do Governo sejam vistas como legítimas. A lógica é simples: enquanto se atacam privilégios relativos de alguns, está-se a defender o interesse de todos. Até porque por cada sindicalizado que se manifesta nas ruas de Lisboa, há três cidadãos que vêem a sua vida infernizada pelo trânsito bloqueado. O resultado é um acentuar da clivagem entre grupos sociais, designadamente entre aqueles que, pela sua situação laboral, se podem manifestar e os restantes, que se encontram numa situação de tal modo precária que já nem têm essa hipótese.

Há razões para que o Governo tenha adoptado esta táctica: os sindicatos andavam a precisar de uma terapia de choque. O problema é que depois do choque é preciso que haja uma estratégia para o movimento sindical. Algo que compete ao partido que sustenta o Governo ter. E, aí, o PS nada têm para oferecer.

O distanciamento do PS em relação ao movimento sindical não é novo. Faz aliás, parte, do código genético do partido – fundado pela vontade de uma elite e sem real enraizamento social, apesar da enorme mobilização eleitoral que gerou logo nas primeiras eleições. Se olharmos para os seus congéneres no mundo ocidental, não encontramos partido de matriz social-democrata ou trabalhista onde a ligação ao movimento sindical seja tão fraca e inorgânica. Contudo, não há nenhuma razão para aceitar este código genético como uma fatalidade.

É que a retórica anti-sindical a que o Governo frequentemente recorre tem vários problemas.

Um primeiro é de competitividade eleitoral: muitas das medidas tomadas pelo executivo de José Sócrates afectam essencialmente o eleitorado tradicional do PS, que se revê do ponto de vista material e simbólico nas reivindicações sindicais. O risco de esse eleitorado se deslocar para os partidos à esquerda do PS é real, sendo que, ultrapassado o problema Santana Lopes, muitos dos que votaram episodicamente socialista podem regressar ao seu espaço natural, o centro-direita. Esse é, contudo, um problema menor, se pensarmos que o que o País precisa que seja feito não é compatível com o objectivo de ganhar eleições.

Mas o ataque ao movimento sindical traz consigo outros problemas, que vão para além de aritméticas eleitorais conjunturais. À cabeça um de qualidade da democracia.

Os sindicatos desempenham um papel muito relevante na intermediação entre o conjunto da sociedade e a esfera política (designadamente nos partidos de esquerda), pelo que a valorização da sua acção e, consequentemente, a aposta na negociação é uma das formas conhecidas de tornar orgânica a representação de interesses sociais – daí a importância dos acordos celebrados no subsídio de desemprego e na segurança social. A alternativa à representação sindical é a pulverização dos interesses e o aumento da fragmentação social. Exactamente o oposto do que Portugal necessita.

Como recordava o insuspeito Paul Krugman, dando voz a uma preocupação emergente no Partido Democrata norte-americano, “entre as políticas públicas que há que mudar encontra-se o clima anti-sindical”. O mesmo é válido para Portugal. É naturalmente legítimo que o actual executivo tenha um discurso contra a agenda dos sindicatos portugueses; o que é preocupante é que o Partido que o suporta se demita de mudar a agenda sindical. José Sócrates tem defendido, e bem, que o próximo Congresso do PS não deve servir para discutir ideologia. Mas uma coisa é não discutir ideologia, outra é abdicar de discutir política. O Governo ganharia, até em eficiência da sua acção, se no próximo congresso o PS discutisse uma estratégia política para o mundo sindical.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, outubro 03, 2006

"Monstro ou banana?"

O ainda Procurador-Geral da República aproveitou para partilhar mais uma vez com os leitores dum semanário algumas impressões sobre o seu mandato. Depois de no “Expresso” ter “explicado” o episódio do “envelope 9”, o que não foi capaz de fazer no Parlamento e muito menos ao anterior Presidente da República, no “Sol” deste fim-de-semana, ajuda-nos a perceber melhor estes seis anos.

A leitura das entrevistas do dr. Souto Moura tem sempre uma virtude: serve para confirmar que não tem muito jeito para lidar com os media. Aliás, é o próprio a reconhecê-lo, ao afirmar que teve “duas ou três intervenções de quem não está nada à vontade com a comunicação social. A propósito de Herman José (quando respondeu ‘pode ser’ aos jornalistas que lhe perguntavam se o humorista era suspeito no caso Casa Pia), aquilo foi simplesmente um ‘deixem-me em paz’”. É isso mesmo que o dr. Souto de Moura revela precisar, de paz. A tal paz que certamente lhe permitiria ter feito declarações, como diz ser necessário, “de uma forma mais pausada”. O que provavelmente significaria que, quando questionado se Sicrano é suspeito de ser pedófilo, diria “pode” enquanto saía do vão-de-escada e “ser” já à entrada do carro. Faz toda a diferença.

O modo como nos fomos habituando a ouvir o dr. Souto de Moura falar é exemplo paradigmático de que não estava à altura nem do cargo, nem do contexto em que o exerceu. Se se sentiu “pressionadíssimo” pela comunicação social e se foi o facto de ter jornalistas todo o dia à porta que o levou a fazer declarações equívocas, quando não contraditórias – que dá-se o caso de tocarem aspectos centrais da vida de cidadãos –, então, pura e simplesmente não tinha condições para ser procurador-geral. Não se trata duma questão lateral ou de uma nota de rodapé no exercício de funções de chefia no Ministério Público. É que do procurador-geral espera-se peso institucional, contenção e solidez nas declarações que profere. E espera-se também que tenha como preocupação interiorizar o princípio da presunção da inocência de todos os cidadãos e que não trate esta questão com ligeireza.

Desse ponto de vista, é particularmente grave que o ainda PGR, para mostrar a sua surpresa perante as intervenções feitas pelo anterior Bastonário da Ordem dos Advogados, dr. José Miguel Júdice – que se limitava a sublinhar princípios elementares do Estado de direito –, diga que “não (se) lembra de nenhuma a falar das vítimas; era sempre os atropelos, as violações de direitos do arguido e coisas desse género” (sic). Ficamos, portanto, a saber que para o dr. Souto de Moura os direitos do arguido são questões menores. Acontece que se para o Ministério Público esta não é uma prioridade, ninguém se pode sentir seguro perante uma acusação em Portugal, especialmente se esta for completamente infundada e assente em calúnias.

A este propósito valeria a pena que o dr. Souto de Moura reflectisse nas palavras do dr. Proença de Carvalho, em carta publicada no mesmo “Sol”, na qual desmente a manchete da edição anterior e chama a atenção para as “campanhas contra personalidades públicas, feitas sem rigor nem respeito pelo direito ao bom nome que assiste a todos os cidadãos”. É, aliás, esta tendência que levou a que em Portugal se tenha chegado a uma situação sinistra em que qualquer pessoa com o mínimo de notoriedade, quando acusada do que quer que seja, passe a ser presumível culpada. A consequência é simples: os inocentes correm hoje sérios riscos, enquanto os verdadeiros prevaricadores mais facilmente se podem escudar na fragilidade e extemporaneidade das investigações.

Desde os jornalistas que o acossavam à porta de casa, passando pelo modo como em Coimbra, em 1969, os acontecimentos lhe passaram “um bocado ao lado”, até ao modo insidioso como insiste em lançar suspeições sobre aqueles que foram caluniados levianamente, toda a entrevista de Souto Moura ao “Sol” fornece elementos para um ‘quiz show’ em que o que há que decidir é – para usar os exactos termos em que o próprio coloca a questão – se estamos perante um “monstro ou um banana”. Qualquer que seja a resposta, há que convir que as consequências para o funcionamento do Estado de direito foram igualmente trágicas.

publicado no Diário Económico