terça-feira, novembro 28, 2006

O rato pariu uma montanha

Em manchete, o ”Expresso” desta semana escrevia que o Governo dava poder à Entidade Reguladora da Comunicação para “censurar televisões”, ao permitir interromper programas em directo. A acusação é não só muito grave como remete para o tema complexo e sensível da regulação dos meios de comunicação social. Acontece que estamos perante um daqueles casos em que já não é a montanha que está a parir um rato, é o próprio rato que está a procurar parir uma montanha.

A televisão não é uma actividade económica como outra qualquer. Tem especificidades relevantes, à cabeça das quais o facto de ter um papel socializador que, nos nossos dias, compete comas duas instituições mais relevantes para a formação individual – a família e a escola. Este facto, por si só, obriga a que a sua actividade seja regulada e a sua acção limitada pela lei.Até porque,mesmo perante mecanismos de regulação, a tendência dos operadores (que, convém não esquecer, beneficiam de uma licença pública) é para optarem por uma degradação da oferta que chega a ser difícil perceber onde vai parar.

O que a nova proposta de lei da televisão, ainda em fase de discussão pública, procura fazer é, apenas, regular. E, aliás, se pode ser acusada de alguma coisa é de timidez nos seus propósitos por se tratar de um programa mínimo. Em que consiste então o programa mínimo da nova lei da televisão? Torna marginalmente mais exigente o processo de renovação das licenças de televisão (que só ocorrerá em 2021, quando a probabilidade de existirem canais generalistas como os que conhecemos é já de si diminuta), designadamente através de um processo de avaliação intercalar; e impõe limites à contra-programação (um poderoso mecanismo de degradação da oferta, normalmente assente ou na bizarria nacional que é o prolongamento ‘ad nauseam’ de telejornais ou na emissão sucessiva de episódios de novelas). Para contrariar esta tendência, a proposta de lei obriga a uma estabilização da programação anunciada com 48 horas de antecedência.

Em tudo o resto, a nova lei limita-se, no essencial, a manter a lei anterior. Nomeadamente naquilo que tem a ver com os conteúdos da programação. Ao contrário do que temsido feito crer, os limites à liberdade de programação não são alterados, mantendo-se os da lei em vigor e que decorremaliás de uma directiva europeia: a defesa da democracia - pela proibição do incitamento ao ódio e ao racismo; e os direitos dos menores – impedindo a pornografia e a violência gratuita. A questão é, por isso, simples: estamos a falar de alguma limitação à liberdade de expressão quando umcanal de televisão que, de forma continuada, emite um programa que exibe cenas de violência gratuita é punido por isso? É que só nesses casos é que existe a possibilidade de a ERC interromper programas, sendo que a lei em vigor, aprovada pelo então ministro Morais Sarmento, já o previa até de modo mais alargado.

Num ponto os operadores têm razão. A autoregulação é preferível à regulação imposta. Acontece que, em Portugal, a capacidade autónoma de as televisões colocarem limites à sua acção tem sido reduzida. Aquilo a que temos assistido nos últimos anos é a uma degradação da oferta e a uma redução da saliência do serviço público a que estão obrigados.

Não deixa, por tudo isto, de gerar perplexidade que, numa fase em que a proposta de lei está em discussão pública (algo que nas democracias consolidadas serve para as partes expressarem as suas posições sobre as propostas), os operadores de televisão privados procurem lançar uma campanha que, utilizando a nova lei como pretexto, acaba por não esconder o seu verdadeiro propósito. Quando perante uma mão-cheia de quase nada, assistimos às reacções inusitadas dos operadores televisivos, só podemos ser levados a suspeitar que, mais do que discordarem desta proposta de lei em concreto, estão contra a existência de uma entidade que os regule e de uma lei que os limite. Só assim se compreende que, perante uma proposta de lei que pouco permite à ERC fazer, se venha abanar como papão da censura.

Quem queira ver na nova lei de televisão uma vontade de censura esquece que, em democracia, a liberdade não se sustenta no livre arbítrio, mas sim na limitação do seu exercício. O que é particularmente verdade para o funcionamento das televisões.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, novembro 14, 2006

A dimensão do erro

A vitória eleitoral dos Democratas nas eleições da passada semana foi recebida como uma transformação positiva, por significar o início de uma nova era na política interna norte-americana e, essencialmente, por implicar uma mudança na postura internacional dos EUA (leia-se, por obrigar a uma alteração na política para o Iraque). Mas será mesmo assim?

Há um conjunto de sinais que apontam para um cenário mais pessimista.

Antes de mais, a agenda interna. Ao contrário do que aconteceu com a “revolução conservadora”, ou antes com os ‘new democrats’ de Bill Clinton, a actual vitória Democrata não assenta numa nova “grelha” política. Como lembrava George Lakoff, no ainda actual ‘Don’t think of an elephant!’, o Partido Democrata está preso numa leitura da realidade em que os termos de análise têm sido formatados pelo Partido Republicano. A consequência é que muitas das vitórias democratas assentaram numa agenda que mistura conservadorismo social com proteccionismo económico. Uma agenda que mistura o pior de dois mundos.

Talvez os exemplos mais flagrantes disso mesmo sejam a oposição ao comércio livre e o combate à imigração que estiveram no topo das prioridades de muitos dos candidatos democratas que conquistaram lugares a republicanos.

O nacionalismo económico é uma velha causa da esquerda norte-americana. Nesta eleição o tema reganhou relevância eleitoral. Com Clinton, em larga medida por força da acção do seu Secretário de Estado do Trabalho, Robert Reich, o Partido Democrata defendia que a resposta à abertura das economias e à exposição dos EUA à liberalização do comércio passava, e bem, por um investimento no capital humano. Hoje, para muitos dos representantes democratas, o que há que fazer é defender os empregos norte-americanos, combatendo os acordos comerciais com a China e com o México, com a argumento de que estão a ser deslocalizados muitos postos de trabalho. Curiosamente, não é questionada a razão por que há postos de trabalho que são “deslocados” para economias que se tornaram mais competitivas pela aposta na qualificação dos seus activos.

Muitos candidatos democratas combinaram o discurso do nacionalismo económico com promessas de intensificar o combate à imigração. Em última análise, não é só a deslocalização de empresas para o México que está a roubar postos de trabalho aos norte-americanos, o problema são também os mexicanos que vêm ocupar postos de trabalho que “pertencem” aos norte-americanos. Onde é que já ouvimos este argumento?

Claro que há elementos muito positivos na vitória dos Democratas. Antes de mais, a derrota do neoconservadorismo que começará a libertar os EUA da agenda messiânica; depois, os sinais de que os temas ambientais adquiriram relevância política; e, finalmente, os resultados dos vários referendos sobre costumes (do aborto ao casamento de homossexuais) que revelaram que, nestes aspectos, a sociedade norte-americana tem evoluído positivamente. A eleição de Nancy Pelosi para ‘Speaker of the House’ é, porventura, a corporização do lado positivo desta vitória.

E isto leva-nos ao Iraque, tema que marcou indelevelmente as eleições. Como tem sido assinalado, pese embora a retórica, a vitória democrata não alterará a situação no território. Até porque só há uma de três hipóteses: ou continua tudo como até agora, num equilíbrio instável, com mortes diárias de soldados norte-americanos e massacres de iraquianos; ou há uma retirada parcial do contingente militar, o que só servirá para expor ainda mais os militares que ficam no terreno; ou, finalmente, uma retirada total, que, depois do erro colossal que foi a destruição do aparelho de Estado iraquiano, significaria deixar o país próximo do “estado de natureza” hobbesiano.

Perante estes três cenários, os mesmos que foram ferozes defensores da intervenção norte-americana têm-se regozijado com mais esta prova de que não havia alternativa à política seguida pela administração Bush. Nada de mais errado. A situação a que chegámos só serve para provar a dimensão do erro cometido e a encruzilhada para a qual a administração norte-americana empurrou o mundo. É por isso que, pese embora os aspectos preocupantes da vitória dos Democratas, o facto de esta pôr fim ao messianismo político neoconservador e (espera-se) fazer regressar o realismo à política internacional norte-americana é, por si só, uma importante mudança. Ainda que com pouco significado para o Iraque.

publicado no Diário Económico.