terça-feira, março 20, 2007

Onde pára o reformismo?

Dois anos depois, a capacidade reformista é a medida de todas as avaliações do governo. Os críticos à esquerda julgam o executivo pelas reformas que diminuem direitos e colocam em causa o Estado social; à direita vivem divididos entre o reconhecimento de que o executivo governa como o PSD/CDS não conseguiu e a afirmação de que as reformas não passam de medidas propagandísticas. Entretanto, a crer numa ideia que ganhou corpo nas últimas semanas, o governo terá começado a mudar a sua estratégia. Primeiro, com a reforma das urgências e depois com as mudanças na Administração Pública, terá desacelerado o ímpeto reformista e cedido ao realismo (i.e. aos interesses locais e à sua base eleitoral tradicional).

Para além do conjuntural, estas leituras servem, no essencial, para lançar questões sobre o real poder dos executivos hoje em dia e sobre a extensão e a avaliação das reformas que procuram levar a cabo.

Vale a pena a este propósito recuperar um artigo de Geoff Mulgan, publicado na Prospect há dois anos – “Lessons of Power” (Maio de 2005). Mulgan foi coordenador da estratégia política do governo Blair e tem ocupado diversos cargos em importantes ‘think-tanks’ britânicos. E o que nos diz Mulgan, relatando a sua experiência?

Antes de mais que apesar da aparência de perda de poder dos executivos, quer por força de constrangimentos externos (a globalização e a integração europeia), quer por força da alienação de poder para actores internos (os media e o mercado), grande parte dos instrumentos tradicionais de governação continuam presentes. O espaço de manobra dos governos pode ser mais estreito, mas os dispositivos tradicionais estão de boa saúde. A receita fiscal tem aumentado consistentemente em grande parte dos países da OCDE e, aliás, em grande parte das economias mais desenvolvidas, os governos têm um papel não só muito activo, como uma presença extensa. Como escreve Mulgan, a ideia de que os governos se tornaram impotentes é uma ilusão que, contudo, tem providenciado um poderoso alibi.

Em Portugal, mesmo com a reconhecida fragilidade administrativa e financeira, se considerarmos que há uma maioria absoluta sólida, combinada com o suporte do Presidente e com poucos pontos de veto formais, o Governo pode ser considerado tudo menos impotente e tem capacidade de definir autonomamente a sua agenda. Em última análise, se não faz mais é porque não quer e se faz de mais é porque quer.

Uma outra questão, que surgiu no debate público em Portugal nas últimas semanas, é a da avaliação das reformas. É este um governo reformista? Diminuiu o ímpeto nos últimos tempos?

Como refere ainda Mulgan, “os governos sobrevalorizam a sua capacidade para promover a mudança no curto prazo e subvalorizam-na no longo prazo”. Este é um tema em que o governo pode ser vítima do seu próprio discurso: ao mesmo tempo que colocou a fasquia reformista alta, deixa-se frequentemente envolver num jogo de avaliação da sua actividade de que arrisca sair perdedor. Não tenhamos ilusões: não há nenhum indicador imediato capaz de aferir um processo reformista. As mudanças cosméticas são mensuráveis no curto prazo, as reformas profundas – aquilo que Peter Hall qualificou como transformações de 3ª ordem e que têm a ver com novas políticas, mas também com novas formas de as implementar e novos enquadramentos institucionais – só são avaliáveis com o passar do tempo. Acontece que este tipo de reformas pura e simplesmente não é compaginável com uma agenda mediática de anúncios de variações de uma ou duas casas decimais nos indicadores.

A capacidade reformista dos governos é tanto maior quanto maior for a sua capacidade de pensar e agir estrategicamente com objectivos de médio prazo. Desígnios que naturalmente colidem com a pressão mediática, com o tacticismo político e os jogos de influência dos interesses instalados (por ex., nos aparelhos partidários). Mas se este governo quer ficar para a história como um executivo reformista, não pode nem queixar-se da sua impotência para fazer o que deseja, nem muito menos achar que a sua actividade é passível de produzir resultados no imediato.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, março 06, 2007

O eterno mito do retorno

E ao vigésimo quarto mês, Paulo Portas regressou. Fê-lo com a capacidade de fixar a atenção dos ‘media’ que o caracteriza, mas, ultrapassado o entusiasmo momentâneo, nada de substantivo disse. Nem sobre a alteração das circunstâncias que o levaram a demitir-se, nem sobre o modo de ultrapassar a encruzilhada em que se encontra o espaço do centro-direita. Não menos grave, regressa com uma nuvem de falta de carácter a pairar sobre a sua relação com Ribeiro e Castro. Com este regresso, Portas, até ver, apenas consolidou a ideia de que é um político que se rege por um vai-e-vem ideológico: umas vezes liberal, outras populista, para logo se tornar conservador e intermitentemente um estadista contaminado pelo realismo. Ao serviço das conveniências.

Convém recuar um pouco no tempo. Nas legislativas de há dois anos, o PP enfrentava um dilema: ou voltava à matriz populista, fazendo regressar o “Paulinho das feiras”, ou vestia a pele de partido da moderação e da estabilidade governativa. Optou pela segunda via. O resultado é conhecido: recuou eleitoralmente, perdeu influência nos seus nichos eleitorais (os pensionistas, a lavoura e os ex-combatentes) e não progrediu o suficiente entre as classes urbanas. Aliás, se o fez, terá sido menos à custa das virtudes de Paulo Portas, “o estadista”, e mais porque o concorrente no seu espaço político era Santana Lopes.

Há dois anos, Portas sabia que o problema para o CDS/PP não era tanto o resultado das eleições. O problema era o que viria a seguir. O partido estava em perda acelerada no eleitorado que na última década lhe tinha permitido a sobrevivência e não havia solidificado a relação com os novos eleitores – que assim que a estabilidade regressasse ao PSD, tenderiam a voltar ao seu espaço eleitoral. A consequência de mais uma experiência de transformismo ideológico havia sido a perda de velhos eleitores e a não fidelização de novos. A marca CDS/PP pesava e pesa muito, limitando a capacidade de atrair novos eleitorados e alargar o seu espaço político. Com eleições autárquicas à porta e com Cavaco no horizonte, Paulo Portas sabia que o futuro era complicado. Demitiu-se, mas não totalmente. Deixou um partido manifestamente ingovernável, contribuindo com a sua “banda” para dois anos em que se assistitu a um triste espectáculo de degradação da imagem do CDS.

Agora, volta, sem explicar o que é que mudou nas circunstâncias que levaram à sua demissão. Paradoxalmente, do pouco que se percebe, regressa com uma promessa que sugere uma continuidade na estratégia que ele próprio reconheceu ter saído derrotada nas últimas legislativas. Uma estratégia que, a um tempo, atribui ao CDS um papel que Portas pessoalmente deseja mas que o código genético e história do partido não permite assumir (o grande agregador do espaço de centro-direita) e, a outro, assenta numa miragem política (dar voz à direita liberal). É que em Portugal, por muito que definhe eleitoralmente, salvo alguma inesperada ruptura, o PSD continuará a ser o grande partido do centro-direita e por contingências históricas e da estrutura social, não há uma tradição liberal à direita. A opção liberal à direita pode ser muito estimulante para o combate cultural, gerando por exemplo grande entusiasmo na blogoesfera, mas revelar-se-á eleitoralmente trágica. O que, convenhamos, entra em clara contradição com o propósito agora anunciado por Paulo Portas.

No fim, para além das respostas substantivas que continuam por dar, fica a ideia de que Portas regressa quando é mais conveniente para si e para os seus próximos, o que só serve para sublinhar que foi ele o autor moral da campanha interna permanente contra Ribeiro e Castro. Como já havia feito a Manuel Monteiro, Portas, mais uma vez, não olha a meios para atingir os seus fins. Acontece que, como se viu nos últimos dias, antes de conseguir ser “a oposição”, Portas tem de explicar porque razão voltou e o motivo porque não quer deixar Ribeiro e Castro exercer o mandato de que é legítimo detentor.

publicado no Diário Económico.