terça-feira, setembro 18, 2007

O que diz Maddie

Como todos os casos judiciais muito mediatizados, o do desaparecimento de Maddie McCann tem sido um excelente observatório da investigação judicial em Portugal. Não há nada como ter os holofotes em cima para que os problemas se tornem visíveis. E um dos principais problemas da Judiciária é a estratégia de comunicação. Como se tornou hábito afirmar, a nossa judiciária é das mais competentes no mundo, mas, no entanto, falta-lhe uma estratégia comunicacional moderna. A demissão este fim-de-semana do porta-voz da PJ para este caso – que ficámos a saber terá sido escolhido por “falar inglês, ter boa presença e boa colocação de voz” – seria mais um sinal das dificuldades da PJ a este nível. Nada de mais falso.

O que o “caso McCann” revela, como muitos outros antes dele, é precisamente o contrário: a PJ é muito hábil a comunicar. Fá-lo contudo do pior modo, através de fontes em ‘off’, violando com ligeireza o segredo de justiça e disseminando pseudo-evidências, sempre nos mesmos órgãos de comunicação social, com o objectivo de criar um contexto que torne aceitável o que parecia, à primeira vista, inverosímil.

Voltando ao caso do desaparecimento de Maddie, a intoxicação pornográfica dos meios de comunicação social com “factos” que tornariam os McCann suspeitos é apenas mais um exemplo de como há sempre alguém na PJ que usa e abusa da comunicação por portas travessas para superar as eventuais fragilidades da investigação. E o problema é mesmo esse, enquanto intoxica os ‘media’ com notícias, quem investiga parece esquecer-se que a prova a ser produzida em tribunal não se torna mais robusta pelo simples facto de se ter revelado popular nos pelourinhos dos tempos modernos em que estão transformados alguns ‘media’.

A demissão este fim-de-semana do porta-voz da PJ para o “caso McCann” é apenas mais um exemplo do que é, de facto, a estratégia dominante de comunicação da Judiciária. Tendo sido, e bem, nomeado um porta-voz, rapidamente este viu o seu papel curto-circuitado pela informação que chegava por outros meios aos jornalistas. O que fazia sentido – ter alguém que prestasse esclarecimentos à imprensa em ‘on’ – deixou rapidamente de o fazer quando os contactos formais com a imprensa passaram a ser momentos para questionar a PJ formalmente sobre a informação que tinha sido passada informalmente. Confuso, não é? Mas só assim se compreende que Olegário Sousa se tenha queixado de não ter acesso ao processo, tendo mesmo admitido que as informações que ia obtendo dos coordenadores da investigação surgiam, “regra geral, na sequência de perguntas colocadas pelos jornalistas”. Quem é que “informava” então os jornalistas?

Esta gestão da comunicação de que a PJ usa e abusa, não só é contraditória com tudo o que tem sido afirmado com toda a justeza pelo Presidente do Sindicato da PJ, como tem consequências que não são semelhantes a qualquer outra informação dada em ‘off’ aos órgãos de comunicação social. É que não é a mesma coisa promover intriga partidária através de fontes não reveladas e promover a destruição pública de quem quer que seja com base em suspeições criminais pouco sólidas ou infundadas. O que está em causa é a vida das pessoas, o direito ao bom nome e todos os valores que lhe estão associados e que são bem superiores à libertinagem para informar que aparenta ter-se tornado um direito sacrossanto.

Não sei nem posso saber se os McCann são ou não culpados. O que sei é que o estatuto de arguido, teoricamente pensado para aumentar as suas possibilidades de defesa, teve apenas uma consequência: apenas o casal inglês tem de respeitar o segredo de justiça, ao mesmo tempo que as violações diárias e sistemáticas do mesmo lançaram sobre eles uma suspeição de que, independentemente do que possa vir a ser apurado, dificilmente se livrarão. Até agora, para além de Maddie McCann, a única coisa que esta investigação produziu foi mais três vítimas: Robert Murat, Gerry e Kate McCann.

O “caso Maddie” diz-nos, mais uma vez, uma coisa espantosa. Que o sistema de investigação judicial português tem-se especializado num tipo de comunicação: a destruição na praça pública do bom nome das pessoas, numa fase em que a presunção da inocência tinha de ser absolutamente garantida. Um padrão de especialização que só soma vítimas às vítimas e que contribui invariavelmente pouco para o cabal apuramento da verdade.

publicado no Diário Económico

terça-feira, setembro 04, 2007

Tão liberais que nós somos

Há um espectro a pairar sobre a sociedade portuguesa: o do liberalismo. Em todo o lado se ouvem loas às virtudes do mercado e às vantagens da concorrência livre. O problema é que cada vez que se avança para o teste empírico, o que parecia sólido logo se desfaz em ar. É difícil encontrar, entre nós, alguém que seja consequente com os princípios liberais que defende em abstracto. E não é preciso irmos aos temas morais para se perceber a facilidade com que os liberais suspendem as suas convicções e regressam ao regaço do conservadorismo. Também nos temas económicos, em Portugal, a maior parte das vezes, os liberais só o são até ao momento em que o mercado lhes bate à porta, fazendo com que deixe de ser do seu próprio interesse continuar a defender a livre concorrência. Se há área em que esta asserção é particularmente verdadeira, ela é a dos media e da televisão em particular. Com o lançamento na passada semana do concurso para a televisão digital terrestre (TDT), o liberalismo português será, uma vez mais, posto à prova.

A TDT é uma das plataformas possíveis para a televisão digital, sendo as alternativas, por exemplo, o cabo e o satélite. E, em Portugal, podemos ter outra percepção subjectiva, mas a verdade é que mais de metade das famílias continua a aceder à TV apenas através do velhinho serviço hertziano analógico – existem apenas cerca de um milhão e meio de assinantes do cabo. É por isso que a TDT visa, primeiro, ao substituir a televisão que ainda é recepcionada através das antenas, cumprir o objectivo de democratizar o acesso de mais de metade da população portuguesa à televisão digital, de modo gratuito, ao mesmo tempo, abrindo a possibilidade de todos os lares receberem mais do que os actuais quatro canais generalistas - o que é uma hipótese exequível e não necessariamente em regime de ‘pay-tv’. E é aqui que, normalmente, começam os problemas em Portugal. Assim que se fala de abertura do mercado e de democratização do acesso a um bem, logo regressa o “condicionalismo industrial”, ainda que pela porta do cavalo.

No caso das televisões, como em outros negócios sujeitos à concessão e regulação públicas, os ‘players’ já instalados no mercado defendem invariavelmente uma de duas soluções: ou o fechamento puro e simples do mercado ou, em alternativa, uma abertura do mercado condicionada a quem já ocupa posição neste. E a verdade é que ninguém escapa a este discurso, dos grupos privados até à omnipresente PT. Nisto resta saber onde é que ficam as virtudes da concorrência e as vantagens para o consumidor de um mercado mais exposto.

É isso também que deve estar em causa no concurso que agora se inicia: para além de garantir o encerramento da televisão hertziana e a sua substituição pela digital, aumentar a oferta, aproveitando para não replicar o ‘status quo’, tal como este nos chega a casa, por exemplo, via TV Cabo. Como, a este propósito, afirmou a ANACOM, a TDT promove “a concorrência no sector (...) através da emergência de uma plataforma alternativa de acesso” e estimula “a indústria portuguesa de conteúdos, aplicações e equipamentos”. Acontece que o mais provável é que as pressões e os obstáculos para que estes estímulos sejam concretizados vão, certamente, fazer-se sentir de modo intenso.

Como é triste hábito em Portugal, os princípios liberais serão postos no bolso e a tentação do condicionalismo regressará. No entretanto, os ‘players’ instalados, em lugar de apostarem na inovação e nos factores que os tornam mais competitivos (como se encontram ainda atrasadas as condições para generalizar o princípio do ‘download’ e da interactividade à imagem do IPod nas televisões portuguesas, curiosamente com a excepção da RTP!), preocupar-se-ão em garantir, fora do mercado, a sua posição. É de facto preciso mais liberalismo em Portugal, mas na prática e não no discurso abstracto. O concurso da TDT, pela sua relevância, também substantiva, é uma excelente oportunidade para deixar o mercado, de facto, falar e fazê-lo, de forma regulada, em benefício dos consumidores. Resta saber se há alguém interessado em que isso aconteça.

publicado em Diário Económico.