terça-feira, outubro 30, 2007

Um novo ciclo

Desde que, há três semanas, Pedro Santana Lopes, saído de uma entrevista televisiva, voltou à ribalta, tornou-se comum dizer que o PSD tem uma direcção bicéfala. De um lado, um líder parlamentar pleno de magnetismo mediático; do outro, um presidente do partido, em Gaia, distante de Lisboa e afastado da agenda dos media. A crer no que se tem dito e escrito, Menezes, ao entregar a direcção da bancada parlamentar, ofuscou as suas possibilidades de afirmação, ao mesmo tempo que alienou uma quota parte do poder que havia conquistado a favor de Santana Lopes. Acontece que esse não é o problema essencial do “acordo institucional” entre Menezes e Santana Lopes.

Na verdade, Menezes poderia retirar vantagens desta coligação: protegia-se do debate parlamentar e construía uma pose de estadista, enquanto Santana Lopes se desgastava no jogo de ataques e respostas ao Governo. Com as miras todas apontadas ao líder parlamentar (basta pensar no que tem acontecido nos últimos dias, com notícias sobre Santana, as dívidas de campanha e relacionadas com a Câmara de Lisboa), Menezes teria espaço para respirar e para aparecer, em 2009, como uma alternativa a José Sócrates. Acontece que estas três semanas não têm revelado uma liderança bicéfala, mas sim um processo de contaminação de Luís Filipe Menezes por aquilo que são as principais características políticas de Santana Lopes.

Os sinais, aliás, começaram no próprio Congresso. Desde logo, com os indícios de que o que então começava era um novo partido, que esquecia o património recente. Enquanto Menezes fazia um discurso de união, era apresentada uma lista que se circunscrevia aos seus apoiantes na disputa interna. Depois, ainda veio a substituição, de modo inusitado e por razões de conveniência da nova direcção, dos presidentes das comissões parlamentares a meio da legislatura; já no Congresso, a vontade de dar voz aos problemas dos portugueses cruzava-se com a ideia peregrina não de rever a Constituição, mas de fazer uma nova.

O que as últimas semanas do PSD nos têm revelado é instabilidade combinada com descoincidência entre o discurso e a prática. A consequência tem sido só uma e recorda-nos os tempos de Santana Lopes líder: a marcação da agenda através de incidentes, em lugar da afirmação através da diferenciação política.

Esta tendência é tanto mais preocupante quanto Menezes chegou à liderança com um duplo estigma: o de ser populista e de ter ganho assentando numa plataforma aparelhística, liderada por um núcleo restrito de próximos. Ora a sua prioridade deveria ser contrariar estas duas ideias, mas, ao coligar-se com Santana Lopes, o que tem feito é exactamente o contrário: associa-se desnecessariamente ao pior momento da história do PSD; reforça a inconstância e sublinha a sua natureza emocional e fragiliza a sua capacidade de ganhar peso institucional. Tudo aspectos que tendem a ser prejudiciais em eleições de primeira ordem, nas quais as escolhas se fazem mais com base na ‘gravitas’ institucional e na percepção de que há uma alternativa clara e coerente e menos porque a oposição é particularmente enérgica e capaz de irritar o primeiro-ministro.

Mas não se julgue que este reposicionamento do PSD não acarreta problemas para o Governo. Pelo contrário, tal como no passado com a liderança de Santana Lopes, o PS será empurrado para o espaço político da estabilidade institucional, procurando também mobilizar muitos eleitores de centro-direita que nunca foram seus. Uma estratégia que funciona para um ‘challenger’ mas que é de mais difícil concretização quando se está no Governo acompanhado por sinais de descontentamento que começam a tornar-se estruturais e abrem a porta para o crescimento eleitoral à esquerda dos socialistas.

Parece por isso, cada vez mais, que estamos a viver um novo ciclo na política portuguesa. Um ciclo em que a volatilidade do sistema partidário é crescente, com os principais partidos a serem, cada um à sua maneira, algo de diferente do que sempre foram e com uma crise social que se tem tornado estrutural, não poupando a confiança dos portugueses nas instituições. Neste contexto, o que o país precisava era de bom senso da parte dos actores políticos e encastramento social dos partidos. O que é oferecido é exactamente o contrário: instabilidade na oposição e desenraizamento do lado do poder.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, outubro 02, 2007

Um partido desconhecido

Ninguém previu o resultado das eleições internas do PSD. Nem as próprias candidaturas esperavam este desfecho. Os indícios eram claros: enquanto Marques Mendes controlava o processo eleitoral, Menezes, numa postura típica de ‘challenger’, criava incidentes em torno do pagamento de quotas. Mas, e arrisco escrevê-lo, para surpresa de todos (incluindo os candidatos), Menezes ganhou. Aliás, o desfecho surpreendente das directas serve para demonstrar que, com a vitória do autarca de Gaia, quem ganhou foi um partido desconhecido, que existe fora dos círculos mediáticos, longe do poder central e que viu em Menezes um porta-voz adequado para expressar o seu ressentimento face aos que estão “em cima”. É natural que perante o desconhecido as previsões tendam a falhar. E a partir de agora, como vai ser?

Vale a pena recuar um pouco no tempo, para que se perceba como o PSD que aí vem é diferente de todos os outros que já passaram.

É verdade que desde a sua formação, o PSD foi sempre um partido abrangente, caracterizado pelo ecletismo, abarcando desde alguma da oposição ao antigo regime até sectores sociais claramente de direita. Aliás, foi o facto de não reproduzir linearmente clivagens cristalizadas na sociedade que permitiu ao PSD abarcar diversos sectores, muitos deles de natureza contraditória. Daí que no PPD e no PSD tenham coexistido liberais, conservadores, social-democratas e populares. Não por acaso, evitando a definição ideológica que naturalmente limitava a sua plasticidade programática e adequação aos ciclos políticos, o PSD escolheu sempre afirmar-se como o mais português dos partidos portugueses, ou seja, um partido desideologizado, capaz de fazer a síntese entre vários quadrantes políticos. O que aparentava ser uma debilidade, transformou-se numa mais-valia. Contudo, tal só aconteceu enquanto houve poder para distribuir e um líder que estava acima dos “vários partidos”. Com estas duas condições presentes, foi sendo possível manter a unidade do Partido e ser competitivo eleitoralmente. Assim que se viu afastado do poder, o que passou a prevalecer foi a desagregação e a coexistência de vários grupos, que se toleravam de forma pouco pacífica.

E o que é que esta história tem a ver com a vitória de Menezes? Diria que tudo. Enquanto no passado coexistiam verticalmente vários partidos, com o poder nacional a unir os vários pilares (os conservadores, os sociais-democratas, os liberais), o que a vitória de Menezes indicia é que há um “partido de cima”, de que fazem parte as elites das várias tendências e um “partido de baixo”, que une as bases, cada vez mais distantes das elites que, mal ou bem, as enquadravam ideologicamente. Enquanto o primeiro “existe” nos ‘media’ e é reconhecível nacionalmente, o segundo “existe” nos círculos do poder local e nas estruturas do aparelho. Chegados a 2007, depois do abandono de Durão e do desastre político de Marques Mendes, o “partido de baixo” vingou-se do menosprezo a que os de “cima” o votaram.

As vitórias internas baseiam-se em poder, ou pelo menos numa promessa deste. E a vitória de Menezes é claramente uma vitória da soma dos micro-poderes locais, dos poderes autárquicos que vão desde as juntas de freguesia até às grandes autarquias. O problema é que uma coisa é federar micro-poderes descontentes, outra, bem mais improvável, é fazê-los convergir para uma afirmação estratégica comum. Não é, por exemplo, a mesma coisa mobilizar os autarcas do partido para derrubar a liderança interna e uni-los em torno de objectivos partilhados. Até porque o partido autárquico obedece a uma racionalidade nas escolhas que não é compaginável com o interesse de um partido nacional – a prioridade do partido autárquico é garantir o poder local e não assegurar vitórias nacionais. É por isso que a discussão do próximo Orçamento de Estado vai ser o primeiro grande teste a Menezes. A equação é simples: enquanto o “partido de baixo” fará as suas reivindicações parcelares, Menezes tem de revelar capacidade para as contrariar, mantendo o PSD dentro da razoabilidade orçamental e na fidelidade à consolidação das contas públicas.

Até 2009, Menezes vai ter um desafio: contrariar a vontade do partido desconhecido e insinuar-se junto dos de “cima”. Um equilíbrio difícil de sustentar durante dois anos.

publicado no Diário Económico.