terça-feira, novembro 27, 2007

O choque dos desempregados licenciados

Numa altura em que se cumprem dois anos do plano tecnológico, os dados do INE sobre o desemprego dos licenciados foram recebidos com perplexidade. Afinal, seria expectável que a aposta na transformação do padrão de especialização da economia portuguesa, assente no potencial das novas tecnologias e na nova economia, gerasse maior procura de emprego entre os mais qualificados. A crer nos dados do INE – o que aliás se revela cada vez menos avisado, mas isso é motivo para outro artigo – tal não está a acontecer, na medida em que o desemprego dos licenciados se mantém elevado, atingindo 65 mil portugueses, na sua maioria jovens. Esta leitura tem, contudo, diversos problemas: uns que têm a ver com a tentação da classe política para avaliar a sua própria acção com base em indicadores de curto prazo e outros que remetem para a relação entre qualificações do ensino superior e acesso ao mercado de trabalho.

Os governos tendem a sobrevalorizar a sua capacidade de promoção de mudança no curto prazo, do mesmo modo que subvalorizam os efeitos da mesma no longo prazo. Esta asserção é particularmente válida quando estão em causa as consequências das transformações no modelo económico para a criação de emprego.
Portugal precisa evoluir de uma economia de mão-de-obra intensiva, de baixos salários e baixas qualificações, para um modelo assente em trabalho mais qualificado e na exportação de um novo tipo de bens. Esta ideia é hoje partilhada por todos. Contudo, quem achar que esta transformação se faz sem custos sociais e com ganhos no emprego no imediato está equivocado. O problema é que o tempo político de avaliação das políticas não se compadece com o tempo que demoram de facto as mudanças estruturais. O Governo, ao ler a flutuação mensal dos dados do desemprego, quando esta lhe é favorável, como sintoma do sucesso de um processo – como o “choque tecnológico” – que só pode produzir efeitos no médio prazo, está, por isso, a envolver-se num jogo de avaliação em que acabará por ser vítima do seu próprio discurso. Os números que agora surgiram sobre o desemprego dos licenciados são disso exemplo. Mas, são também números que merecem uma leitura mais fina.

Ao contrário do que por vezes se quer fazer crer, ter um diploma do ensino superior continua a ser um instrumento privilegiado para aceder a um posto de trabalho e uma garantia de que este terá, comparativamente, maior estabilidade, melhor remuneração e maiores possibilidades de progressão na carreira. Além do mais, uma licenciatura continua a ser uma boa forma de resistir ao desemprego – por exemplo, a população com habilitação superior é menos atingida pelo desemprego de longa duração do que a população em geral, o que faz com que o desemprego dos licenciados não ultrapasse, em média, os seis meses. Um desempregado licenciado tem muito menor probabilidade de se manter no desemprego do que um não licenciado.

Contudo, os dados sobre o desemprego dos licenciados também nos revelam aspectos menos positivos. Antes de mais, um problema de gestão de expectativas: para quem investiu longos anos numa formação superior, não ter um retorno imediato desse investimento é, naturalmente, vivido com dificuldades. Depois, diferenças relativas entre as áreas de formação e, nestas, entre instituições de ensino superior. As duas áreas de estudo em que há mais desempregados com habilitação superior são “formação de professores/formadores e ciências da educação” e as “ciências sociais e do comportamento”. Ou seja, o problema não deve ser visto apenas considerando o nível de qualificações, mas, também, a área das mesmas. Ao que acresce que, mesmo nestas áreas em que aparenta ser mais difícil encontrar um posto de trabalho, há instituições de ensino superior com quase 100% de empregabilidade.

Este cenário, ao mesmo tempo que não permite aferir do sucesso ou fracasso da opção por mudar o padrão de especialização da economia portuguesa através de um “choque tecnológico”, serve para recordar que se há uma tentação que deve ser contrariada é a de achar que, havendo licenciados no desemprego, Portugal deve refrear o esforço de qualificação da sua população, nomeadamente dos jovens. Não é assim. Bem pelo contrário. Portugal continua a precisar de mais licenciados. Aliás, de muito mais licenciados, desde que provenientes de instituições com ensino de qualidade.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, novembro 13, 2007

Sintomas de Estrangulamento

A transformação das Estradas de Portugal de Empresa Pública em Sociedade Anónima de capitais públicos foi recebida com um coro de desconfiança. O facto de pouco ou nada se saber sobre o contrato de concessão com vista à exploração, manutenção e construção da rede viária veio adensar as suspeições. À cabeça surgiu a acusação de que se tratava de uma manigância com o objectivo implícito de levar a cabo um exercício de desorçamentação. O impacto desta alteração no défice é, para já, nulo, o que não diminui o significado político da criação das Estradas de Portugal S.A.. Até porque estamos perante mais um sintoma dos vários estrangulamentos que enfrenta a economia política portuguesa.

Não está em causa um exercício de desorçamentação. A criação da S.A. conta para o défice – está cabimentada na rubrica “fundos e serviços autónomos” – e encontra-se no perímetro de consolidação segundo as regras do Eurostat, designadamente porque a sua percentagem de receitas mercantis é inferior a 50% do total (isto é, receitas próprias não resultantes de subvenções públicas). Para além do mais, a Estradas de Portugal S.A. estará sujeita a todas as regras de contratação pública, não se abrindo, portanto, uma janela para a “agilização” das adjudicações de empreitadas.

Não sendo um caso de manigância orçamental, esta transformação indicia, ainda assim, três tipos de estrangulamento do modelo de desenvolvimento português: um de natureza económica; um político; e, finalmente, um financeiro.

Desde logo a dimensão económica do exercício. Enquanto o discurso político do Governo (deste e dos anteriores) sublinha a necessidade de alteração do nosso padrão de especialização – no caso, através de um “choque tecnológico” – e investe na atracção do investimento directo estrangeiro – por exemplo através do papel que é consignado à API –, a realidade acaba por revelar que estes factores, pelo menos no curto e no médio prazo, são frágeis na promoção do emprego. Mesmo perante o aumento das exportações de um novo tipo e com algum sucesso na atracção do investimento estrangeiro combinado com um tímido crescimento económico, os níveis de desemprego continuam muito elevados, nomeadamente se comparados com a tradição portuguesa de desemprego baixo e taxas de emprego elevadas. Hoje como no passado, este estrangulamento leva a que os Governos se vejam sistematicamente condenados a virar-se para as grandes obras públicas, também como almofada social.

Depois, um estrangulamento político. Se sobrepusermos uma curva da evolução do desemprego e uma curva com os resultados eleitorais legislativos, apercebemo-nos que quando o desemprego cresce quem está no poder tende a perder as eleições. Ora, o que os últimos anos demonstram é que sem grandes obras públicas o emprego em Portugal cresce pouco. O que, aliás, ajuda a compreender por que razão as oposições têm resistido tanto as decisões em torno do novo aeroporto ou do TGV. Há, contudo, uma outra dimensão de estrangulamento da esfera política: dada a importância das obras públicas, a autonomia da decisão política tende a ficar capturada pelos actores económicos envolvidos neste sector. Uma dependência que se acentua quando pensamos na ligação entre construção civil e financiamento da actividade partidária.

Finalmente, o estrangulamento financeiro. Sem recursos, endividada e com incapacidade de recorrer ao crédito, as Estradas de Portugal revelam-se incapazes de concretizar o plano rodoviário, dando o seu contributo à superação do bloqueio económico, acentuando por isso o estrangulamento político. A solução S.A. é, aparentemente, uma forma virtuosa de resolver o problema. Ao dar estabilidade na concessão – fala-se de um contrato até 2099 – torna o negócio interessante para os privados, o que é acentuado pela eventual consignação de uma denominada “contribuição rodoviária” à nova entidade.

Contudo, o que parece ser uma solução virtuosa pode acabar por ser a consolidação dos vários bloqueios existentes, mas a um novo nível. Basta, por exemplo, imaginar um cenário em que a concessão é assegurada através de um consórcio onde se juntam as grandes construtoras e os actuais concessionários das autoestradas. A confirmar-se este cenário, o que parecia significar mais mercado e maior disponibilidade financeira poderia assim, acabar, em simultâneo, por tornar ainda mais dependente o sistema político dos interesses privados e, não menos grave, criar uma oligarquia capaz de controlar um mercado com fluxos financeiros muitos significativos.

Porventura será difícil encontrar outro exemplo tão sintomático dos sérios bloqueios estratégicos que enfrenta o país. Antes se tratasse de um caso de desorçamentação.

publicado no Diário Económico.