terça-feira, janeiro 22, 2008

Para o partido, tudo

As declarações de Luís Filipe Menezes a propor a redistribuição de lugares de ‘opinion makers’ tiveram uma virtude: foram transparentes. Aliás, Menezes fala sempre com uma meridiana clareza, o que serve para o tornar algo entre o “tipo ideal” e a caricatura dos males da política partidária. O líder do PSD, contudo, está longe de deter um exclusivo. É apenas uma versão extremada, à qual estamos menos habituados.

Pode haver uma explicação singela para que Menezes tenha vindo, em público, meter uma “cunha” a favor dos seus. Ele vem de “fora” e não pertence às elites político-mediáticas de Lisboa. Faltam-lhe, por isso, os canais usualmente utilizados para tratar destas coisas. Não podendo sugerir informalmente Cadilhe para a Caixa e Ribau Esteves para a Quadratura do Círculo, fá-lo em público.

O modo como Menezes intercedeu a favor dos seus é revelador de enormes fragilidades, mas não chega para explicar tudo. Afinal, Menezes confessa, desde sempre, uma inusitada preocupação com a ocupação de lugares. No fundo, o que as suas intervenções sugerem é um modo muito particular de conceber a vida política. Um modo que, infelizmente, se tem consolidado em todos os partidos do chamado “arco da governabilidade” e no qual a organização partidária do “espaço público” desempenha um papel instrumental.

Esta preocupação não é claro uma ideia nova. Por exemplo em Itália, no estertor da I República, a tutela dos três canais de TV públicos encontrava-se equitativamente repartida: a Rai1 ficava para a DC de Andreotti, a Rai2 para o PSI de Craxi e a Rai3 para o PCI do “povo”. A história depois é conhecida: turbulência, falência do sistema e o magnata dos media privados, o inenarrável Berlusconi, a quem o “antigo regime” tinha sempre dado uma mão amiga, viria a acumular o controlo das TV públicas com o das privadas. E convém não esquecer, a Itália é normalmente um bom observatório, pois tende a antecipar o que nos acaba por acontecer. Já agora em Itália a história repetiu-se, “primeiro como tragédia, depois como farsa”.

Dirá o leitor mais céptico, “sempre foi assim”, já que uma das funções primordiais dos partidos é a ocupação do aparelho de Estado, assegurando assim o desempenho de funções institucionais. É de facto verdade. Os partidos servem para organizar a presença política nas esferas institucionais públicas. Há contudo um problema. Para que os regimes democráticos se mantenham legítimos aos olhos dos cidadãos, essa função tem de ser compensada pela representação e agregação nos partidos de interesses sociais. Ora, o problema é que enquanto os partidos continuam a desempenhar – ainda assim com alguma eficácia – as suas funções institucionais, a sua legitimidade encontra-se crescentemente fragilizada. Não só representam cada vez menos, como em lugar de se articularem com os interesses sociais organizados, procuram cada vez mais competir com eles (basta pensar no acentuar da dicotomia entre partidos e sindicatos).

O que é que isto tem a ver com Menezes? Tudo. As declarações de Menezes revelam como hoje quem queira reforçar o poder interno num partido não precisa de falar para fora, nem de articular-se com a sociedade. Basta procurar distribuir pelos seus lugares, quer no espaço público (ex. os comentadores), quer institucionais (ex. a CGD). O problema é que enquanto se consolida o poder interno, fragiliza-se ainda mais a capacidade de representação social dos partidos. Menezes talvez esteja a levar longe de mais a estratégia, mas, ainda assim, este episódio serve para reavivar a memória relativamente ao que aconteceu em Itália.

Nota: O que se passou após a morte de um bebé na Anadia é mais um exemplo dos níveis de insalubridade que atingem a política portuguesa. Uma coisa é a divergência sobre as orientações políticas, outra, a tentativa de associar esta tragédia à reforma da rede de urgências. A prosseguir-se por este caminho – espartilhados por uma coligação entre política e comunicação social tablóides – num futuro muito próximo, ninguém minimamente decente estará disposto a ser ministro da Saúde. É que quando a canalhice ameaça tornar-se o alicerce fundamental da sintaxe política, só os canalhas entrarão no jogo.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, janeiro 08, 2008

Um ciclo longo?

A diferença de lugares serve para explicar o essencial da distância que vai da mensagem mais optimista do primeiro-ministro no Natal para a mais realista do Presidente da República no Ano Novo. Até porque, no fim, o que sobra é um subtexto que tem sido partilhado por Presidência e Governo: a prioridade à consolidação orçamental e a necessidade de estabilidade política para a alcançar. As vantagens para o país desta convergência genuinamente estratégica são por demais evidentes, mas não devem servir para diluir diferenças entre projectos políticos.

A disciplina orçamental e a estabilidade política são condições necessárias para que, desde já, possamos contrariar a trajectória de pauperização sucessiva que sobre nós paira. Hoje, depois de décadas em que à exigência de sacrifícios correspondia, no curto prazo, uma melhoria significativa das condições sociais, o objectivo mais realista começa a ser evitar uma degradação progressiva dos padrões de vida. Com uma conjuntura externa adversa e com os bloqueios estruturais internos, quem prometer um futuro risonho no curto prazo limitar-se-á a ser vítima das suas próprias promessas.

Mas não basta consolidação e estabilidade. Há dois obstáculos à espreita: o conservadorismo e o populismo. Enquanto o primeiro, quer vindo da esquerda, quer da direita, vislumbra num passado mitificado a solução para o futuro, o segundo, em exercícios frequentemente contraditórios, acena com panaceias para todos os males.

No fundo, com ligeiros deslizes de parte a parte, Presidência e Governo encontram-se na consolidação, na estabilidade e na recusa do conservadorismo e do populismo. Contudo, do mesmo modo que é fundamental que haja este chão comum, é igualmente negativo que nada reste para além dele. Como se estivéssemos a viver um ciclo longo e indistinto de prioridade absoluta à consolidação orçamental, iniciado com Barroso e Ferreira Leite e que, após o curto interregno com Santana e Bagão, tivesse sido retomado por Sócrates e Teixeira dos Santos. Ciclo este que decorreria sob a tutela da Presidência da República e do qual aparenta estar fora o PSD de Menezes e de Santana. O facto do Governo encontrar respaldo na Presidência pode, aliás, servir para tornar a ideia atractiva. Contudo, não só esta não corresponde à verdade, como acabará por ter custos elevados no médio prazo.

Desde logo porque, independentemente das considerações que possamos fazer sobre o sentido ou a eficácia das reformas, há uma diferença substancial entre a segunda e a primeira parte do ciclo. Na primeira fase não só os resultados efectivos em termos de consolidação foram mais escassos, como também a capacidade de ter acção política para além do défice foi reduzida. Já na segunda, o objectivo equilíbrio das contas públicas foi acompanhado de mudanças na segurança social, saúde, administração pública ou educação. Aliás, no que tem sido um elemento virtuoso, o défice serviu como pretexto para capacitar o Governo para iniciar reformas que, de outro modo, dificilmente seria capaz de levar a cabo.

Ainda assim, o executivo, mesmo quando se distingue ideologicamente dos seus antecessores e mais ainda das linhas programáticas actuais do centro-direita, tende a sobrevalorizar a dimensão eficácia e capacidade técnica em detrimento da divergência política. O que tem um problema: ao consolidar-se o esbatimento das diferenças entre projectos, está a diluir-se a identificação dos indivíduos com as marcas políticas, aumentando quer a volatilidade do voto, quer, no que é mais grave, o distanciamento face à política, logo a abstenção. É por isso que não deixa de ser paradoxal que seja o actual Presidente a recordar ao Governo que é necessário reinvestir na concertação social e trazer o combate à pobreza e às desigualdades para a primeira linha da actividade governativa. No fundo, a lembrar ao Governo que é preciso valorizar as marcas que no passado distinguiram os Governos socialistas.

publicado no Diário Económico.