terça-feira, abril 29, 2008

A flexigurança à portuguesa

A discussão sobre a revisão do código do trabalho teve, desde já, uma grande diferença por relação à que ocorreu aquando do governo Durão/Portas: uma conflitualidade política muito inferior. São boas notícias e não é difícil perceber as razões para que assim seja.

Há cinco anos, as alterações do direito do trabalho foram apresentadas como a solução para todos os problemas de competitividade da economia portuguesa. Enquanto o Governo se envolvia numa cruzada que visava enfraquecer o papel dos sindicatos na contratação colectiva, estes viam nas alterações à legislação laboral o mais sério ataque aos direitos dos trabalhadores. Ambas as partes, politizaram a discussão, entrincheirando-se em posições que impossibilitaram a negociação.

A proposta agora apresentada pelo Governo tem, deste ponto de vista, um conjunto de vantagens. Antes de mais, o executivo não aproveitou a revisão da legislação laboral para encetar uma cruzada ideológica, de forte carga simbólica. Pelo contrário, a proposta é uma base para discussão, que procura criar condições efectivas para um consenso. Depois em momento algum o Governo indiciou que esta era a mãe de todas as reformas. As alterações na legislação laboral são parte da solução dos problemas que enfrentamos, mas apenas uma ínfima parte.

O tema “precariedade” é um bom exemplo da terceira via em que assenta a proposta do Governo.

Uma das singularidades do mercado de trabalho português é a existência de elevados níveis de vínculos precários. Entre nós, cerca de 20% do emprego é precário, um valor 6 pontos percentuais superior à média europeia. De acordo com o inquérito ao emprego do INE, em 2007, havia cerca de 3 milhões de contratos sem termo para cerca de 700 mil com termo. A estes há que somar outra das especificidades nacionais, o número muito significativo de independentes, cerca de 1,2 milhões (uma grande parte são agricultores idosos). Entre estes independentes esconde-se o que não é uma situação de precariedade, mas, sim, de ilegalidade – os falsos recibos verdes.

O emprego precário tem sido o escape das empresas (e convém não esquecer, do Estado) para criar emprego num contexto de fragilidade do tecido económico português. Perante um cenário de rigidez formal da lei, as empresas operam nas margens da ilegalidade, aproveitando a baixa eficácia da regulação laboral.

Perante este cenário, o discurso político tende a alternar entre dois extremos: de um lado, aqueles que afirmam que a solução para a precariedade é a flexibilização do mercado de trabalho, designadamente desprotegendo aqueles que têm vínculos certos e sem termo. Do outro, os que afirmam que é preciso combater a precariedade, rigidificando a lei e fiscalizando as ilegalidades (ou seja, nomeadamente proibindo os abusos nos recibos verdes).

Nenhuma destas soluções é viável. A primeira porque esquece, por um lado, que o direito do trabalho assenta numa assimetria de posição entre empregadores e empregado, em que a lei é o garante de alguma equidade, e por outro, que a liberalização do mercado de trabalho em Portugal fragilizaria ainda mais o tecido social português. A segunda porque esquece que um incremento da rigidez seria necessariamente acompanhado de maior flexibilidade de facto e, tendo em conta a extrema debilidade do nosso tecido económico, transformaria o grosso dos precários em desempregados.

A solução que o Governo apresentou é uma terceira via criativa para um dilema fundamental da regulação do mercado de trabalho português. Com o fim da taxa social única, as empresas passam a descontar menos para os contratos sem termo e mais para os contratos a termo. Simultaneamente, dão-se passos fundamentais para que os independentes passem a ter algum tipo de protecção social comparticipada pelo empregador (através do pagamento de 5 pontos percentuais da taxa contributiva).

Desse ponto de vista, trata-se da versão portuguesa do princípio da flexigurança. Troca-se maior flexibilidade (em última análise, através do reconhecimento de soluções de grande precariedade) por alguma segurança em sede de protecção social.

Há, contudo, pontos críticos que estão ainda por esclarecer. Desde logo o fim da taxa social única. A proposta do Governo é omissa quanto ao impacto para a receita da segurança social destas alterações. Depois, apesar das medidas que visam o reforço da presunção da existência de um contrato para os independentes, sobre estes continua a pairar a cobertura pelo direito civil.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, abril 22, 2008

A síntese improvável

Apesar da “experiência Menezes” ter consolidado a herança de falta de credibilidade combinada com irracionalidade na acção política que já vinha da “experiência Santana”, continua a valer a pena olhar para o PSD com base em critérios de racionalidade, tentando perceber o que pode acontecer a partir de agora e de que modo este partido pode renovar o seu apelo eleitoral. Para perceber como foi possível chegar aqui e quais são as possibilidades no futuro, é boa ideia olhar para o passado.

Desde a sua formação, o PSD foi sempre um partido abrangente, caracterizado pela diversidade, baseado numa combinação idiossincrática que ia de elementos vindos da oposição ao Estado Novo até sectores sociais claramente de direita, como seja a burguesia rural proprietária, que constituiu a âncora social do salazarismo. Tal como o PS, foi também um partido consolidado a partir do Estado, mas, ao contrário do PS, o PSD não é produto da vontade de uma elite homogénea, mas sim da federação de elites locais, muito diversas ao longo do território nacional. Esse facto foi fundamental para que, desde o início, o partido conseguisse conciliar plasticidade com indefinição ideológica. O contexto da transição para a democracia ajudou a que assim fosse: por um lado, porque a direita se encontrava à defesa, sendo impossível afirmações ideológicas claras nesse campo, e depois porque a única forma de fazer coexistir os vários PSDs era a ausência de um compromisso ideológico forte. Durante muito tempo, esta especificidade foi a vantagem competitiva do PSD, fazendo-o “o partido mais português de Portugal”. Não representando ninguém em particular, era possível criar a ilusão de que se representava todos.

Acontece que o que foi uma vantagem para o PSD veio a tornar-se na raiz dos problemas de fundo de hoje – a indefinição estratégica e a dificuldade de se posicionar ideologicamente. No passado, o PSD soube fazer coexistir no mesmo barco liberais e populistas, social-democratas e conservadores, autarcas e elites empresariais, mas tal foi possível enquanto teve líderes carismáticos ou poder para distribuir e cimentar relacionamentos improváveis.

E assim chegamos às dificuldades de hoje. Independentemente de todas as ilusões, líderes carismáticos só surgem em períodos de grande mobilização política (de que são exemplo as transições para a democracia) – é esse o caso de Sá Carneiro – ou através do exercício duradouro do poder – como aconteceu com Cavaco Silva. O problema é que nenhuma dessas condições tem estado presente. A nossa democracia está longe de viver um período carismático e, claro, o poder tem sido uma miragem distante para o PSD. Sem fontes de carisma e sem poder para distribuir, é difícil a qualquer liderança do PSD fazer coexistir com um mínimo de estabilidade os interesses contraditórios das várias facções.

Neste contexto, o que tem acontecido é que, em lugar de promoverem a síntese entre os vários partidos, as sucessivas direcções vão representando a alternância entre grupos. Só no pós-cavaquismo, tivemos “estatistas” (Nogueira), liberais-populistas (Marcelo), uma variante liberal mais conservadora (Durão), populistas (Santana), uma facção mais social-democrata do norte, entretanto transformada em conservadora (Mendes), que viria a escancarar as portas do poder para o regresso do populismo (Menezes). A instabilidade das lideranças no PSD tem sido a face mais visível das contradições quase insanáveis que existem dentro do partido. Como se não bastasse, as diferenças políticas têm-se esvanecido, tendo sido progressivamente substituídas por preconceitos de classe social (aos quais há que somar ódios pessoais, cuja origem chega a ser difícil de traçar com exactidão), acentuados por um fosso crescente entre o partido autárquico e o que resta de um partido nacional.

E o que é que o passado nos diz sobre o futuro? Há neste momento duas possibilidades: ou o PSD consegue optar por uma liderança que represente uma dupla ruptura – com o passado recente, das experiências governativas de Durão e Santana, e com a lógica auto-destrutiva de alternância entre tendências internas – ou o partido prosseguirá a actual trajectória de definhamento eleitoral combinada com antagonismo militante interno (que pode acabar em cisão). O problema é que, sem poder no horizonte, é difícil a algum candidato transformar eventuais boas intenções políticas numa estratégia consequente, que repita a síntese improvável que esteve por detrás do sucesso eleitoral do passado.

publicado no Diário Económico.

quarta-feira, abril 09, 2008

A memória na política

“Há muita falta de memória na política e nos políticos”, ouve-se pela voz de Jorge Coelho na promo da Quadratura do Círculo. A frase condensa um dos piores traços da nossa vida política: a ausência de referências sobre a forma como perante episódios semelhantes os agentes se comportaram. A face mais visível desta ausência de memória é as promessas não cumpridas, mas há outras, não menos graves e que contribuem para a degradação da imagem da actividade política.

Entre elas está a ausência de coerência entre as posições de um mesmo político. Naturalmente que o principal responsável desta incoerência é sempre o político que não revela respeito pelo seu próprio passado, ainda que encontre invariavelmente um aliado conivente na comunicação social, também ela fraca de memória.

Este comportamento tem tido um impacto notável na percepção já negativa que os cidadãos têm sobre a política. As lamentáveis declarações de Jaime Gama a propósito do presidente do Governo Regional da Madeira são mais um exemplo de falta de memória.

Esqueçamos, por um momento (mas apenas por um breve momento, porque, como vimos este fim-de-semana, o líder madeirense está sempre disposto a reavivar-nos a memória), a opinião que se possa ter sobre a acção de Alberto João Jardim. Não importa se achamos que um modelo de desenvolvimento assente nas obras públicas, nas baixas qualificações e no endividamento público é algo que possa ser elogiado ou até deixemos de lado uma verdade elementar: o cimento de uma democracia-liberal não é o voto popular, mas um sem número de outras dimensões, à cabeça um mínimo de civilidade. Esqueçamos tudo isso. O lado mais grave das declarações de Jaime Gama é que chamam a atenção para a falta de memória na política. Somos todos livres de dizer o que bem nos aprouver sobre João Jardim, o que é difícil de compreender é que alguém que, entre todos os actores políticos portugueses, fez das declarações mais violentas sobre o presidente do Governo Regional, venha agora dizer exactamente o seu contrário, sem mais explicações. É como se para passar de Bokassa a “sol na terra” um ligeiro salto no tempo fosse o bastante para a desmemoriação colectiva.

Esta mudança serve, aliás, para consolidar a percepção disseminada de que a disputa político-partidária é uma farsa. Uma farsa na qual as partes se desentendem, por vezes com uma violência inusitada (o Bokassa, sempre o Bokassa), para, à primeira conveniência ou necessidade, caírem no regaço do seu adversário de há minutos. No fundo, cria-se a ideia de que a divergência serve só para criar uma ilusão de que estão de facto em disputa alternativas. Cada vez que alguém com as responsabilidade de Jaime Gama revela desrespeito pelo seu próprio passado, está a dar uma grande ajuda à consolidação desde modo de olhar para a política.

E, claro, é sabido que Alberto João Jardim não deixa nunca escapar uma oportunidade de reforçar a sua própria imagem, que se reflecte como um espectro sobre o regime que criou na Madeira.

O congresso do PSD-Madeira deste fim-de-semana, de que só tivemos relatos da abertura e do encerramento porque foi interdito à comunicação social, já que o partido não confia na cobertura de alguns dos “empregados” da classe (SIC), serviu para reavivar a memória.

Desde logo, sobre a concepção de liberdade de informação de Jardim. A este propósito, recorde-se que o deputado Jaime Ramos é proprietário de 5 rádios enquanto o seu filho é administrador de uma empresa do pai, que tem o sugestivo nome de Controlmedia. A que há que somar esse exemplo supremo de pluralismo que é o Jornal da Madeira. Deve ser esta a concepção de “empregados da classe” de João Jardim.

Mas o pior estava para chegar no encerramento: enquanto Luís Filipe Menezes oferecia numa bandeja tudo o que o PSD/Madeira sempre pretendeu – (“autonomia sem limites”, seja lá o que isso for) e que o PSD de Cavaco Silva felizmente sempre negou – Jardim, no estilo nacional-cançonetista arruaceiro que o caracteriza, aproveitou para afirmar que “o PSD não é igual ao PS, gente que não lava os pés”. Uma frase que é todo um programa político e que esperemos ao menos tenha sido suficiente para lavar a memória de Jaime Gama.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, abril 01, 2008

Que fazer com a consolidação?

Depois de oito anos em que a consolidação das contas públicas foi o alfa e o ómega da vida política portuguesa, a semana passada, enquanto se baixava o IVA, foram decretadas as condições para finalmente discutir a vida para além do défice. As declarações do primeiro-ministro anunciando o fim da crise orçamental são disso sinal claro. É certo que todos os cuidados devem ser poucos, tendo em conta, desde logo, o arrefecimento económico internacional, que torna as previsões para o crescimento económico português optimistas.

Ainda assim, do ponto de vista orçamental, o que este governo alcançou é, simultaneamente, notável e instrumental.

Notável porque a redução do défice para 2,6% do PIB já em 2007, quatro décimas abaixo do previsto no programa de estabilidade e crescimento para o ano de 2008 e, note-se bem, 3.5 pontos abaixo dos aterradores 6,1% com que encerrámos o ano de 2005, é, por si só, muito positiva e o valor mais baixo em democracia. Que este objectivo tenha sido alcançado sem recurso a receitas extraordinárias ou às manigâncias orçamentais do passado, mas baseado numa combinação – que foi exigente para os portugueses, é verdade – entre maior esforço e eficácia fiscal e contenção da despesa cria condições para encararmos o futuro com mais optimismo. Afinal, convém não esquecer que cerca de 75% da redução do défice se ficou a dever à redução da despesa pública, o que aliás serve para contrariar o mito de que tudo se deve a um aumento da receita. Se nos restringirmos à redução da despesa com pessoal da administração pública em % do PIB, Portugal evoluiu de 14,5% em 2005 para 12,8% em 2007, uma trajectória que não encontra paralelo na zona Euro desde que há registos.

Instrumental porque, para além do mais, no que é a marca distintiva do governo de José Sócrates por comparação com o de Durão/Portas, o actual executivo soube combinar esforço de consolidação orçamental com capacidade de reformar outras áreas das políticas públicas, introduzindo ao mesmo tempo “almofadas sociais” (por ex. os aumentos no salário mínimo), e utilizou ainda esta necessidade para levar a cabo reformas que de outro modo seriam provavelmente impraticáveis. A este propósito, alguém duvida que teria sido bem mais difícil equiparar a idade de reforma para os funcionários públicos à do regime geral da segurança social, introduzir o factor de sustentabilidade nas pensões, encerrar falsas urgências ou escolas com poucos alunos sem a existência de um constrangimento financeiro? Ou seja, por paradoxal que possa parecer, o desequilíbrio orçamental até pode ter sido virtuoso na facilitação de reformas que significam mais equidade.

Mas isto não deve servir para nos afastar do essencial: a indisciplina orçamental tem sido o mais poderoso inibidor do pensamento estratégico para Portugal, designadamente porque levou a que a política se tivesse viciado numa discussão sobre quem é melhor a gerir as contas públicas. Repare-se bem, gerir: o que, no essencial, pressupõe opções técnicas quase totalmente desprovidas de dimensão estratégica. E é na estratégia que os partidos se devem diferenciar.

Tal não significa desvalorizar a importância da consolidação orçamental. Pelo contrário, esta é uma condição necessária para se poder (re)introduzir a diferenciação ideológica e a distinção entre partidos e espaços políticos. Num país ideal, todos os partidos encontrar-se-iam na importância de contas públicas equilibradas, para logo a seguir se diferenciarem no que fazer com o equilíbrio orçamental. É por isso que, resolvida a questão orçamental, o debate agora deveria passar a ser mais sobre as visões diferentes para o país e as grandes opções estratégicas. Depois do país politico ter ficado viciado na discussão sobre o défice, resta saber quanto tempo demorará a libertar-se dos termos desse debate. Agora, não só existem as condições para que tal seja feito, como há mesmo a obrigação. Se nada mais, para que os portugueses percebam exactamente o que é que estão a escolher quando votarem nas próximas legislativas. E as diferenças, mesmo que até agora relativamente secundarizadas, continuam a ser muitas.

publicado no Diário Económico.