terça-feira, setembro 30, 2008

Lisboagate ou Democraciagate?

“Património disperso da Câmara”, assim se chama o conjunto de habitações camarárias que vive num limbo há mais de trinta anos. De acordo com o que se tem percebido, ao contrário do que acontece com a habitação social, não há qualquer critério para atribuição do que se estima serem 4000 fogos. A consequência desta ausência de critérios começa a ser demasiado conhecida: distribuição arbitrária de casas da Câmara beneficiando famílias carenciadas, funcionários e dirigentes da autarquia, vereadores, jornalistas, artistas. Indiscriminadamente e sempre com “rendas técnicas” que têm um valor bem abaixo do mercado.
Este quadro, escondido há décadas nos corredores dos Paços do Concelho, tem gerado grande perplexidade. Não é motivo para menos. Mas, convenhamos, também não nos devemos deixar surpreender com isso. Afinal, e por péssimos motivos, a atribuição discricionária de benesses por parte dos poderes públicos faz parte, para usar a expressão reveladora do vereador Pedro Feist, da “realidade histórica” do País. Paradoxalmente, essa discricionariedade é o frágil cimento em que assenta a nossa democracia. Ao mesmo tempo que dá poder a quem distribui (no caso, o vereador), torna esse poder legítimo aos olhos de quem recebe, assegurando também a existência de clientelas eleitorais. Se as coisas não se passassem assim, o mais provável era que os eleitores se sentissem frustrados perante a incapacidade “política” dos eleitos.
Ainda que as notícias sobre o que se passa na Câmara de Lisboa provoquem uma justa indignação, a verdade é que os sucessivos poderes autárquicos limitam-se a satisfazer as expectativas dos eleitores. Os “cidadãos” esperam que o poder político resolva os seus problemas particulares e intercedem directamente para que isso aconteça. A cunha e o favor são autênticos facilitadores do bom funcionamento do sistema. O problema é que a cunha e o favor têm inscritos em si o declínio do próprio sistema.
Há, desde logo, duas consequências deste modo de funcionamento.
A primeira tem a ver com o modo como a inexistência de regras gerais e abstractas na atribuição de um bem que é público gera e reproduz desigualdades. Para além dos casos extremos em que os beneficiados estão longe de estar em situação de necessidade (e as notícias de casas para vereadores e dirigentes de empresas municipais são, no mínimo, aberrantes), mesmo quando o que está em causa é a atribuição de casas a desfavorecidos, a discricionariedade é inimiga da equidade. A distribuição arbitrária de casas limita-se a beneficiar as famílias carenciadas que conseguem estabelecer uma relação de proximidade com o poder e não necessariamente aquelas que mais precisam.
A segunda prende-se com a descredibilização do exercício do poder democrático. Uma relação entre eleitos e eleitores baseada na troca e na satisfação do interesse particular contradiz a lógica democrática, que deve ser fundada na representação e na defesa do interesse geral e aproxima-se dramaticamente do patrocinato.
A este propósito vale a pena regressar a um livro publicado, em plena operação “mãos limpas”, pelo politólogo norte-americano Robert Putnam, “Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy”. A partir da análise dos governos regionais italianos desde a década de 70, Putnam concluía que a boa performance institucional e a qualidade da democracia dependia menos da modernização económica e mais da existência de um “capital social” que, em última análise, torna a democracia viável. Era essa a diferença entre o norte de Itália, com tradições cívicas mais encastradas, e o sul em que o ‘capital social’ era mais fraco, quando não inexistente.
O mais provável é que a passividade com que a distribuição discricionária de casas em Lisboa foi sendo aceite ao longo de décadas, por todas as cores políticas, seja fruto do fraquíssimo “capital social” em que assenta a democracia portuguesa. Um problema que, aliás, tende a não ser resolúvel, como mostra a persistência em Itália de grande parte dos problemas preexistentes. Mas, perante a passividade a que temos assistido do poder político em relação ao Lisboagate, torna-se objectivamente muito difícil fazer um discurso pedagógico em defesa da democracia ou dos partidos portugueses. A única esperança é que actores políticos responsáveis usem casos como este para colocarem termo ao quadro de falta de transparência e impunidade em que, frequentemente, se têm movido. Caso contrário, o mais certo é o Lisboagate transformar-se num Democraciagate.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, setembro 23, 2008

A repartição é de esquerda e a capitalização de direita?

Este fim-de-semana, José Sócrates defendeu veementemente a reforma da segurança social. Tem boas razões para o fazer, como provam os elogios da Comissão Europeia e da OCDE. Mas, aproveitando o avisado cepticismo em relação aos mercados financeiros, foi mais longe e acusou aqueles que defendem uma componente de capitalização na segurança social de defenderem uma lógica privatizadora.
Esta afirmação assenta num equívoco: o modelo português de repartição, gerido publicamente, está longe de ser um património da esquerda. Tem as suas raízes em modelos conservadores e autoritários, pouco abertos à mudança social.
Na verdade, a clivagem esquerda/direita em torno da segurança social não tem de ser um espelho da opção entre repartição e capitalização. Desde logo, porque capitalização não significa necessariamente privatização – pode ser gerida publicamente – e porque plafonamento não é necessariamente sinónimo de quebra de coesão social - como prova o plafonamento vertical.
Enquanto a discussão sobre segurança social for colocada nestes termos, torna-se politicamente difícil que Portugal, quando houver condições para o fazer (o que não acontece agora), evolua para um sistema que combine repartição com capitalização. À imagem das boas soluções desenvolvidas pela esquerda moderna noutras paragens.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, setembro 16, 2008

Desigualdades e facilitismo

De tempos a tempos, o país levanta-se num movimento de comoção nacional em torno dos níveis intoleráveis de desigualdades. Depois, a comoção nacional logo se suspende e, até que o INE ou o Eurostat divulguem novos números, o assunto aparentemente sai da agenda. Escrevo aparentemente porque enquanto a pobreza é varrida para debaixo do tapete, as políticas que a combatem parecem beneficiar do exclusivo dos ataques políticos e do escrutínio público.

No que toca a políticas públicas eficazes no combate à pobreza não há pólvora por inventar: a pobreza combate-se com mecanismos de redistribuição de rendimento mais equitativos (quer em sede fiscal, quer através da contratação colectiva), com políticas de rendimento mínimo e com investimento nas qualificações. Ora, paradoxalmente, se estas políticas não produzem resultados, já se sabe, assistiremos a uma justa onda de indignação com as desigualdades. Contudo, se os indicadores começam a mudar, escusado será dizer, não devemos esperar nenhum tipo de satisfação colectiva. Pelo contrário, é garantido que o cepticismo regressará e a explicação para os resultados será invariavelmente uma: facilitismo.

É assim desde que em Portugal, com atraso de décadas em relação aos nossos parceiros europeus, foi lançado o rendimento mínimo e o mesmo se passa agora com o combate ao abandono escolar.

Esta semana, foram conhecidos os dados sobre os níveis de retenção (vulgo chumbos ou reprovações) no básico e no secundário. Ficámos a saber que baixaram e que tal aconteceu quer nos anos com exames nacionais, quer naqueles em que não existem. Aliás, uma descida que não é nova e que confirma uma tendência longa. Em 1996/97 a taxa de retenção no básico era de 15,5% quando hoje é de 8,3% e no secundário de 36,6 quando hoje é de 22,4%. A razão para que tal tenha acontecido só pode, afinal, ter sido uma: facilitismo.

O problema é que a relação entre maior qualidade do ensino, por um lado, e taxas de retenção, por outro, é espúria. É que se a níveis de retenção mais elevados correspondesse um sistema de ensino mais exigente, como explicar que os países em que pura e simplesmente não há chumbos, sejam também aqueles que apresentam sistematicamente melhores resultados nas provas internacionais de desempenho (por exemplo, no PISA)?

O fetichismo do chumbo é uma monomania nacional, que tende a esquecer as estratégias desenvolvidas noutros países europeus, onde o combate ao insucesso escolar se faz, há décadas, não afastando do sistema os alunos com dificuldades, mas com um acompanhamento individualizado, atento aos primeiros sinais de dificuldade na aprendizagem e capaz de desenvolver planos de recuperação adaptados aos problemas específicos de cada aluno. A retenção, como tem sido demonstrado por um número infindável de estudos, é um mau instrumento pedagógico. Não serve para que os alunos recuperem o atraso, tende antes para a segregação dos alunos.

A insistência nas retenções tem aliás um efeito singular: atinge na sua grande maioria os filhos de famílias com fracos recursos culturais e económicos. Ou seja, contribui para o afastamento do sistema educativo daqueles que mais precisam de fazer parte dele – o que ajuda a explicar a persistência, em Portugal, de taxas de abandono escolar que não encontram paralelo na Europa. Não por acaso, no relatório da UNESCO, “Education for All”, Portugal aparece como o único país do mundo desenvolvido que apresentava taxas de retenção no ensino básico comparáveis a alguns dos países mais pobres.

Estes números, aliás, têm consequências reais para o país. Por um lado, contribuem para a reprodução geracional da desigualdade naquela que é a sociedade mais desigual da Europa; por outro, por estarem associados a défices de qualificação, colocam em risco a capacidade adaptativa do nosso tecido económico. Aliás, de acordo com estimativas da OCDE, o PIB português poderia ter crescido mais 1,2 pontos percentuais por ano, entre as décadas de 1970 a 1990, se os nossos níveis de escolaridade estivessem equiparados à média dos países da OCDE.

É evidente que construir práticas pedagógicas alternativas aos chumbos é muito exigente e requer da Escola Pública e dos professores um enorme investimento. Mas para quem acha que o combate às desigualdades passa por ter a escola como mecanismo de integração e de generalização das qualificações, esse é o único caminho. Naturalmente que é bem mais fácil, de cada vez que é dado um passo no bom sentido, vir com o discurso do facilitismo. O problema é que não é apenas fácil, é também a melhor forma de aceitar passivamente os níveis de qualificação e de abandono escolar precoce que nos deviam envergonhar colectivamente.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, setembro 09, 2008

A auto-regeneração dos media

A sentença que considerou a prisão preventiva de Paulo Pedroso um “erro grosseiro” do Juiz de Instrução Rui Teixeira é, naturalmente, um virar de página para alguém que viu a sua vida pessoal, familiar, profissional e política destruída ao longo destes cinco anos. Ainda que nenhuma decisão judicial, muito menos qualquer compensação material, possa ressarcir os danos sofridos, esta sentença, até porque confirma muitas outras anteriores relativas às acusações, é, ainda assim, reveladora de alguma capacidade auto-regeneradora da justiça. É verdade que o que se passou com Paulo Pedroso não é, de modo algum, compaginável nem com um Estado de Direito, nem com uma sociedade decente, mas esta sentença mostra que o sistema de justiça, de modo autónomo, é capaz de contrariar decisões grosseiras anteriores.

Uma coisa é o que a justiça se mostra capaz de fazer, outra é o que os media fazem com a informação de processos judiciais. A relação entre justiça e comunicação social não é simples, nem os problemas a ela associados fáceis de ultrapassar. Desde logo porque o tempo da justiça é lento e não definitivo, enquanto o dos media é imediato e categórico. A consequência é que alguém que se veja envolvido num processo judicial, mesmo que depois seja cabalmente absolvido, se vir o seu nome nas mãos mediáticas, encontra-se condenado para sempre. No dilema entre a informação sobre o que se passa na justiça e o direito à presunção da inocência e ao bom nome de qualquer cidadão, a escolha de uma sociedade decente não deveria ser difícil de tomar. Mas aparentemente é; e o que impera é o vale tudo de alguns media, para quem a escolha entre a competição populista e o respeito pelos indivíduos nunca chega sequer a ser equacionada.

Provavelmente nenhum destes problemas terá resolução numa sociedade democrática, mas talvez alguma dose de responsabilidade da parte dos media e dos jornalistas, combinada com mecanismos eficazes de auto-regulação, ajudasse.

A este propósito, há bons exemplos que chegam de fora, como os relacionados com o mais mediático dos casos judiciais ocorridos em Portugal. Robert Murat, o cidadão inglês que viu o seu nome envolvido no desaparecimento de “Maddie” e foi constituído arguido porque uma jornalista achou que ele tinha “um comportamento estranho” (sic), recebeu uma indemnização de 750 mil euros de alguns órgãos de comunicação social britânicos, que o tinham tratado como culpado e promovido um linchamento tablóide na praça pública. Indemnização esta que não resultou de nenhum processo judicial, mas antes de uma decisão dos próprios órgãos de comunicação social (eventualmente porque estavam conscientes que seriam duramente condenados em tribunal). Esta semana, na entrevista que deram ao “Expresso”, também os McCann revelam ter recebido 680 mil euros de uma indemnização dos media.

Em Portugal, a partir de informações judiciais falsas, não confirmadas ou delirantes, há invariavelmente órgãos de comunicação que não hesitam em promover julgamentos populares e linchamentos de carácter. Talvez não fosse má ideia que aproveitassem agora a oportunidade para fazerem um exame de consciência e revelarem uma capacidade de auto-regeneração pelo menos igual à que o sistema judicial demonstrou. Aliás, o mais importante não seria necessariamente o ressarcimento material, mas, sim, um reconhecimento dos erros cometidos e das suas consequências.

Um Estado de Direito depende em absoluto de um sistema de justiça fiável, idóneo, resistente às pressões populares e com mecanismos de controlo internos sólidos, mas uma sociedade decente precisa que a comunicação social também preencha todos estes requisitos. Como lembrava Montesquieu no “Espírito das Leis”, “a experiência mostra-nos que qualquer homem a quem tenha sido conferido poder abusará dele e usará a sua autoridade até onde lhe é possível”. A experiência mostra-nos também que os media podem fazer exactamente o mesmo, colocando irremediavelmente em causa a separação de poderes, logo o funcionamento das democracias. Cabe quase exclusivamente aos próprios media contrariar esta tendência.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, setembro 02, 2008

A cooperação táctica

Logo na apresentação do seu manifesto eleitoral, Cavaco Silva sublinhava que “as ambições de um Presidente da República não devem estar estritamente limitadas pelo horizonte temporal do seu mandato. Portugal precisa que a acção política não seja refém das ilusões dos benefícios de curto prazo e se desenvolva com sentido de futuro”. Ficava assim definida a cooperação estratégica entre Presidência e executivo, assente numa convergência, quer quanto aos objectivos políticos para o país, quer quanto aos meios para os alcançar.

Como bem assinalava João Cardoso Rosas num artigo no Diário Económico a semana passada, alguma coisa terá mudado para que a ideia de cooperação estratégica com o Governo – o alfa e o ómega da identidade política de Cavaco Silva Presidente – tenha (numa leitura benévola) passado a coabitar com a cooperação com o PSD. Afinal, longe vão os tempos em que o Governo em peso se deslocava entusiasmado a Belém para saudar o Presidente na quadra natalícia ou em que Cavaco Silva se multiplicava em apoios quase incondicionais ao executivo (basta recordar uma entrevista na SIC Notícias a Maria João Avillez). Ora, considerando que tudo o resto se manteve igual, a variável explicativa para este novo posicionamento do PR só pode ser a mudança de liderança do PSD.

Enquanto o PSD teve líderes em dissonância com Cavaco Silva, o Presidente assentou o essencial da sua acção na cooperação estratégica com o Governo. Uma vez resolvida a questão interna do maior partido da oposição, a sensação que fica é que o que antes era estratégico acabou por se revelar apenas táctico. Acontece que, como revelam experiências anteriores, a tentação dos Presidentes para tutelarem desde Belém os seus espaços políticos tende a redundar em fracasso: por um lado, porque, enquanto torna indistintos os lugares de Presidente e de líder da oposição, diminui a níveis intoleráveis o espaço de manobra da oposição e, por outro, porque reduz significativamente a capacidade presidencial de influenciar, de facto, o Governo.

Mas quando se tornam crescentes os sinais de que há uma convergência entre PR e liderança do PSD, que a prazo acabará por fragilizar ambas as partes, consolida-se também o perfil do exercício presidencial de Cavaco Silva.

Ao contrário dos presidentes civis anteriores, Cavaco Silva não tem optado por ser um Presidente preocupado com os direitos, liberdades e garantias. O que em Portugal continua a ser uma necessidade demasiadamente premente. A este propósito basta recordar o veto presidencial à nova lei de responsabilidade extracontratual do Estado. Um veto revelador de uma visão que secundariza as garantias dos cidadãos perante casos de arbitrariedade e incompetência dos poderes públicos. Ou, ainda a forma suave como Belém se posicionou perante a possibilidade de introduzir ‘chips’ identificadores nas matrículas dos automóveis. Já para não referir a intervenção presidencial ao nível da conversa de café sobre os crimes ocorridos nas últimas semanas.

Cavaco Silva também não tem funcionado como válvula de escape do sistema para acomodar a contestação social. Perante o mal-estar difuso que se vai sentindo no país, o enquadramento institucional da contestação podia ser, de facto, estratégico e até benéfico para aumentar as condições de governabilidade. Mas, infelizmente, o Presidente parece fazer parte do grupo dos que consideram que, nomeadamente, os sindicatos são uma excrescência política do passado e se encontram toldados por uma visão míope para o futuro do país.

No entanto, há uma área onde o Presidente tem feito ouvir de modo sistemático a sua voz: os temas de costumes. Desde o veto à lei da paridade com que inaugurou os vetos presidenciais até ao mais recente veto à lei do divórcio, Cavaco Silva colocou-se invariavelmente numa posição socialmente conservadora, desajustada face aos tempos. E aí os sinais de convergência com Ferreira Leite são, mais uma vez, evidentes.

Encostado à direita nos temas de costumes, não assumindo o papel de interlocutor da contestação social, secundarizando os temas dos direitos e garantias e pairando como sombra tutelar da nova liderança do PSD, os riscos de não alargamento da base de apoio do Presidente são manifestos (e recorde-se que foi eleito apenas com 50% dos votos). O que, se nada mais, pode criar incentivos para que as próximas presidenciais, ao contrário do que seria expectável, possam ser competitivas.

publicado no Diário Económico.