quarta-feira, dezembro 31, 2008

Um “Annus Horribilis”

O pior está para vir. Na verdade, é hoje difícil antecipar a dimensão da crise, bem como toda a sua extensão. Sabemos que é diferente das crises anteriores, ainda que sejam encontrados cada dia mais paralelismos com a terrível depressão dos anos 30. Hoje, dificilmente alguém dirá que já batemos no fundo e que nos encontramos no início da trajectória ascendente. O ano de 2009 será por isso um “annus horribilis”, económica e socialmente. Um pouco por tudo o mundo, os efeitos da crise far-se-ão sentir. Mas a crise, como todos os choques, não afecta todos do mesmo modo. Há países mais expostos à crise, bem como pessoas e grupos sociais.
Portugal é um país muito exposto: uma pequena economia, aberta e muito dependente de um número reduzido de parceiros comerciais; com uma estrutura social com défices de qualificação muito acentuados; e um Estado, mas, também, agentes privados com fraca capacidade institucional (do sector bancário ao tecido produtivo).
Mas estaremos hoje melhor preparados do que no passado recente para enfrentar as tormentas que se avizinham?
A resposta é positiva – o que não diminui a gravidade do que poderá acontecer no próximo ano.
Estamos integrados num espaço económico que nos protege, desde logo pela função estabilizadora da moeda única; as nossas contas públicas estão incomparavelmente mais equilibradas; e, nos últimos anos, as políticas públicas têm intervindo – com relativo, mas sempre insuficiente sucesso – sobre factores críticos (dos défices de qualificação dos activos, passando pela pobreza extrema do idosos, até alguma mudança no padrão de especialização da nossa economia).
Esta é também uma crise à qual não se responde apenas com as respostas habituais. O que seria errado num contexto normal passou a ser absolutamente necessário no contexto em que vivemos: à cabeça apoiar directamente o emprego privado, protegendo-o para além do que seria avisado. Não vivemos tempos normais, pelo que precisamos de respostas excepcionais. A crise já será difícil de enfrentar, mas se o fizermos com crescimento acentuado do desemprego, os próximos meses (anos?) tornar-se-ão social e politicamente insustentáveis. Temos assistido a apoios públicos, aos quais não estávamos habituados, a alguma empresas e sectores particularmente sensíveis. O mais provável é passarmos destes apoios para os apoios directos ao emprego e até, porque não, às classes médias de menores rendimentos.
Portugal terá a singularidade de num ano de crise ter três actos eleitorais. Nunca a suspensão da democracia foi boa conselheira, muito menos nos momentos difíceis. Mas as eleições serão responsabilizadoras para todos nós – os que votam e os que serão eleitos. O pior que poderíamos fazer era somar instabilidade política às dificuldades económicas e sociais. O que acarreta, desde logo, uma enorme responsabilidade para os actores políticos que, se nada mais e por causa da crise, deveriam evitar, a tudo custo, envolver-se em conflitos estéreis.
Será um ano difícil, mas, como em todos os momentos difíceis, é dos políticos e das políticas que deveremos esperar respostas responsáveis. Esperemos que os tempos difíceis sejam também reveladores das nossas capacidades colectivas.

publicado no 24 Horas

terça-feira, dezembro 30, 2008

Um presidente em busca de um papel

Logo na campanha eleitoral, Cavaco Silva identificou a cooperação estratégica entre Presidência e Governo como marca distintiva do que seria o seu mandato. Até recentemente, foi essa a trave mestra das relações entre Cavaco Silva e José Sócrates. A cooperação encontrou no esforço de consolidação orçamental o seu alfa e ómega. O papel do Presidente era claro: reforçar a capacidade institucional e política do Governo para equilibrar as contas públicas.

Os sinais de que os termos desta relação se têm alterado têm sido manifestos: desde a escolha de Alcochete para localização do novo aeroporto, passando pela eleição de Ferreira Leite, alguém muito próximo do Presidente, para líder do PSD, pondo fim a lideranças da “má moeda”, até ao mais recente episódio em torno do Estatuto dos Açores. Já neste fim-de-semana, o semanário Sol dava conta de uma eventual retaliação do Presidente através da não promulgação do orçamento de Estado.

Mas se este conjunto de episódios tem servido para colocar em causa as relações entre São Bento e Belém, no entanto, pouco nos diz sobre qual o novo papel que o Presidente irá desempenhar.

O contexto de crise alterou as regras do jogo, os termos do debate político e consequentemente o papel dos actores. A consolidação orçamental que antes era o tema dominante da agenda política e o ponto de convergência, por excelência, entre Cavaco Silva e Sócrates perdeu preponderância. Nisto, o Governo ganhou capacidade de iniciativa – detém o monopólio dos instrumentos disponíveis para responder à crise – e o Presidente ficou sem papel para representar. O que tinha anteriormente perdeu sentido e há sinais que está perante um trilema sobre qual o novo papel que vai desempenhar: ou regressa à cooperação, reforçando de novo a capacidade do Governo, agora em torno das respostas à crise; ou veste a pele de “Rainha de Inglaterra” (o que tenderia a consolidar a sua popularidade, mas seria politicamente inútil); ou assume o fim da cooperação com o Governo, desempenhando um papel que, objectivamente, ninguém está a desempenhar: o de líder da oposição.

O último barómetro do CESOP da Universidade Católica dá-nos alguns indicadores sobre o modo como os portugueses olham para o Presidente e o papel que este deveria assumir. Cavaco Silva, à imagem dos anteriores Presidentes e no que é um sintoma do síndrome “Rainha de Inglaterra”, é o actor político com níveis de avaliação mais elevados. Contudo, há na percepção do actual Presidente uma singularidade: não é visto como sendo de esquerda ou de direita, isto é, encontra-se acima das clivagens políticas. Desse ponto de vista, imagina-se, é alguém que está para além da disputa partidária – o que em Portugal, ainda que por péssimas razões, é fonte de um enorme capital político. Não por acaso, uma esmagadora maioria dos portugueses (64%), e independentemente da simpatia partidária declarada, defendem que o Presidente deveria ter um papel mais interventivo.

O mais natural é que, uma vez que Cavaco Silva assumisse uma postura mais interventiva, os seus níveis de popularidade baixassem automaticamente. Mas este desejo de maior intervencionismo não pode deixar de influenciar o Presidente e se a ele somarmos o vazio de oposição à direita, estamos perante o cenário ideal para do fim da cooperação estratégica passarmos a uma crescente oposição entre Belém e São Bento. O discurso de ano novo pode ajudar a compreender qual o papel que Cavaco Silva irá desempenhar doravante.

Não tenhamos dúvidas, um Presidente mais interventivo e um Governo em confronto com o Presidente não servirá a nenhuma das partes. Aliás, é um exemplo típico do que a “teoria dos jogos” chama de “dilema do prisioneiro”. Uma situação onde, apesar dos ganhos que resultariam da cooperação entre dois actores, a opção de cada um deles leva a que não coordenem as suas acções, com consequências negativas para ambos. Um Presidente mais interventivo seria um Presidente menos popular, mas, também, um enorme obstáculo para as condições de governabilidade. O que não deixaria de ter consequências para a capacidade de enfrentarmos as tormentas que aí vêm. A atitude mais racional é, por isso, Presidente e Governo restabelecerem os termos da cooperação estratégica, agora num novo contexto. Sob pena de, enquanto redefinem os seus novos papéis, estarem, como tem acontecido a propósito do estatuto dos Açores, a juntar uma conflitualidade estéril à crise.

publicado no Diário Económico.

segunda-feira, dezembro 29, 2008

o emprego e o emprego público

A criação de 150 mil novos postos de trabalho tem sido um espectro a pairar por cima do Governo. Não o deveria ser, pois o objectivo, embora ambicioso, por estranho que possa parecer, não está longe de ser cumprido (desde 2005 foram criados 100 mil postos de trabalho líquidos).

Mas será avisado estabelecer metas políticas deste tipo?

Parece-me que não. Na verdade, a criação de emprego no sector público não é uma opção disponível – desde logo porque coloca em risco o equilíbrio financeiro do Estado. O que leva a que este seja um compromisso de risco, que o Governo assume não estando nas suas mãos respeitá-lo.

O essencial da criação de emprego depende de factores que escapam ao controlo das políticas públicas. O que resta aos governos é contribuir para um contexto favorável à criação de emprego privado. O que ainda assim não é um programa político limitado.

O actual Governo tem, aliás, tido uma política correcta, quer do ponto de vista da alavancagem do emprego privado (ex. simplificação no processo de licenciamento nas várias actividades económicas ou alargamento do programa de estágios profissionais), quer na gestão do emprego público (a regra de entrada de um novo funcionário público por cada dois que saem). Não por acaso, o actual saldo positivo em termos de criação de emprego incorpora uma diminuição de cerca de 50 mil funcionários públicos (maioritariamente para a aposentação) e, não fora a crise que entretanto se instalou, o mais provável era que de facto a meta dos 150 mil fosse atingida. Mas na verdade, a crise mudou os termos do debate, e a questão central passou a ser como é que as políticas públicas podem proteger o emprego privado.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, dezembro 23, 2008

os partidos e a tempestade perfeita

A actual crise tem sido descrita como uma “tempestade perfeita”, a conjugação improvável de um conjunto de factores que, ao mesmo tempo que a torna arrasadora, dificulta que se vislumbrem respostas eficazes para a contrariar. Perante este contexto, os partidos que se encontram no poder deveriam ser levados pela tempestade. Paradoxalmente, isto não está a acontecer, sendo que a crise tem, um pouco por toda a parte, favorecido os Governos. Portugal não é excepção.

As últimas sondagens têm revelado grande consistência e consolidam uma tendência: enquanto o PS se situa em redor dos 40%, no limiar da maioria absoluta, o PSD tem apresentado uma flutuação negativa, que o empurra para valores próximos dos das últimas legislativas, com Santana Lopes. O elemento mais surpreendente continua a ser os cerca de 20% de eleitores que indicam que irão votar num dos dois partidos à esquerda do PS.

Tem sido frequentemente apontado um conjunto de razões para explicar esta situação: “Ferreira Leite é uma má líder, sem carisma”; “o PS ocupou o espaço político do PSD” ou “o PS governa à direita”. Será que são suficientes? Talvez não.

Os resultados do PSD têm uma componente estrutural e outra conjuntural que, em importante medida, configuram, à sua escala, uma “tempestade perfeita” – perante a qual nenhum líder, por mais carismático, poderia resistir.

Em primeiro lugar, o ruído interno que se tornou estrutural, enraizando um clima de antagonismo militante que dificulta a afirmação de qualquer liderança. Depois, a conjuntura que tornou impraticável a afirmação de um discurso alternativo. Se antes o espaço político para a diferenciação do PSD poderia assentar na defesa de menos Estado e num posicionamento mais liberal, agora essa margem deixou de existir. Por força da conjuntura, o PSD ficou sem discurso alternativo.

Mas a ausência de alternativa não deveria ser suficiente para explicar os resultados do PS, ainda mais num momento em que o Governo enfrenta grande contestação popular (vide os professores), em que a economia se encontra estagnada e em que o desemprego apresenta valores incomuns para Portugal. Na verdade, em circunstâncias normais, esta tempestade seria devastadora para o Governo, mas não o está a ser.

Isto acontece porque, antes de mais, há uma percepção generalizada da natureza importada da crise. Depois, durante uma tempestade, quando o barco pode de facto ir ao fundo, é improvável que os passageiros queiram mudar de tripulação e comandante. Uma crise normal arrasaria o Governo, uma tempestade perfeita fortalece quem está no poder. Ninguém está disponível para somar instabilidade política às dificuldades económicas e sociais.

Este contexto tem ajudado a que os portugueses, mesmo quando descontentes com o actual Governo, afirmem maioritariamente que outro partido não faria melhor. Até porque a própria instabilidade da agenda (veja-se o que já ocorreu desde a apresentação do O.E. até agora) permite que o Governo incorpore sem dificuldade as propostas da oposição, mesmo quando estas vão contra o que era a posição do executivo pouco tempo antes. Estar ao leme e mostrar capacidade de reacção é hoje uma vantagem comparativa difícil de contrariar.

Se a isto somarmos o que já eram marcas distintivas do actual Governo e que o tornavam competitivo (por exemplo, a impopularidade dos interesses das corporações e as reformas difíceis terem menores custos sociais e serem percepcionadas como legítimas se forem feitas por Governos de esquerda), percebe-se como, mesmo perante factores muito adversos, o PS continua a liderar nas intenções de voto.

Tudo o resto igual, restam por isso dois grandes obstáculos entre o Governo e a repetição da maioria absoluta: o arrefecimento da cooperação estratégica com o Presidente da República e uma cisão do PS, que juntaria Manuel Alegre às “outras esquerdas”. Provavelmente, nenhum destes factores se relaciona com a tempestade. Neste quadro, colocar em causa a cooperação estratégica, como tem acontecido por força do estatuto dos Açores, é, no mínimo, uma imprudência. Já o surgimento de um novo partido, protagonizado por Alegre, pode ter um efeito devastador para o PS se conseguir ir buscar votos à abstenção e se servir para ajudar que eleitores tradicionais do PS, habitualmente indisponíveis para votar BE e PCP, se sintam confortáveis ao não votarem socialista. Contudo, se o essencial do eleitorado descontente já não estiver neste momento a “votar” PS, Alegre pode provocar uma tempestade sim, mas no barco dos seus parceiros conjunturais, BE e PCP. Na verdade, esta é a grande incógnita do início do próximo ano político.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Irresponsabilidade histórica

Num artigo escrito há cerca de um mês, Manuel Alegre afirmava que “uma nova esquerda só poderá nascer de várias rupturas das esquerdas consigo mesmas”. Paradoxalmente, entre estas várias rupturas, há uma que se tem revelado particularmente difícil: abandonar a ideia de que todas as políticas dos governos PS são de direita. O encontro deste fim-de-semana não só foi mais um exemplo da pouca abertura das esquerdas a levarem a cabo essa ruptura, como até consolidou a ideia que a alternativa de esquerda se faz contra o PS.

Não há, convenhamos, até aqui qualquer elemento de novidade. O código genético da esquerda portuguesa é marcado pela competitividade interna e não existem sinais de que estejam a mudar os termos da relação entre socialistas e as outras esquerdas. O essencial do entendimento entre as esquerdas continua a depender de uma hipotética capitulação do maior partido de esquerda às mãos de partidos social e eleitoralmente menos representativos. Ou seja, construir uma alternativa confunde-se invariavelmente com a ideia de que o PS deveria, em última análise, adoptar um programa político alternativo, proposto pelas outras esquerdas.

Este velho tabu, que agora adquiriu novos contornos, tem tido consequências para a política, mas, também, para as políticas públicas.

Desde logo, ao inviabilizar o diálogo entre toda a esquerda, tem criado incentivos objectivos para que o PS procure enraizar-se eleitoralmente à sua direita (o que fragiliza o já de si frágil encastramento social dos partidos portugueses), ao mesmo tempo que, ao fragmentar a oferta política, abre o caminho para uma pulverização eleitoral das esquerdas (o que diminui as condições de governabilidade à esquerda).

Mas, acima de tudo, a escolha do PS como principal adversário das outras esquerdas tem limitado a consolidação de uma coligação política e social que permita enfrentar com robustez alguns dos problemas que o país enfrenta, maxime as desigualdades. Há umas semanas, Rui Tavares, num artigo no Público, justificava o peso eleitoral da esquerda em Portugal com o nosso padrão de desigualdades. Se assim é, combater as desigualdades deveria ser “uma responsabilidade histórica” e, pressupõe-se, um bom tema para o diálogo à esquerda. Será possível?

Não se combatem as desigualdades de hoje com os instrumentos do passado e muito menos com uma visão fixista do papel das políticas públicas face a “forças irresistíveis”. Centrando-me apenas em três dimensões fundamentais para enfrentar com eficácia as desigualdades: precisamos de mecanismos de regulação do mercado de trabalho sensíveis à transição para uma sociedade pós-industrial; de modernizar a protecção social de modo a compatibilizá-la com as transformações demográficas e de encontrar formas inovadoras de superar o défice de qualificação dos activos. O problema é que, por exemplo, enquanto não for abandonada a posição conservadora e retórica que trata, num típico exemplo de reflexo de Pavlov, a “flexigurança”, a sustentabilidade da segurança social ou as “novas oportunidades” para os activos como “políticas de direita”, dificilmente as esquerdas poderão conversar de modo consequente sobre o combate às desigualdades.

Ora perante a incapacidade de romper com o velho tabu, o sinal que saiu do “encontro das esquerdas” é de que o caminho a percorrer em Portugal pode ser semelhante ao percorrido na Alemanha, com a criação do Linke (uma cisão do SPD, liderada por Oskar Lafontaine, a que se juntaram outras esquerdas). Talvez valha a pena recordar as consequências do novo partido para a Alemanha: pulverização eleitoral que empurrou o país para uma situação de ingovernabilidade, que, por sua vez, levou a uma coligação de “bloco central”. Também em Portugal, se for criado um novo partido à esquerda do PS, parafraseando Alegre, estaremos perante uma autêntica irresponsabilidade histórica, que dificultará, ainda mais, a governabilidade à esquerda. Se assim acontecer, aliás, não demorará muito tempo até ouvirmos muitos dos que agora criticam indiferenciadamente as políticas do actual governo, a defender muitas delas como tendo sido de esquerda. Quanto ao combate às desigualdades, ficará bem entregue às mãos da direita, que legitimamente não fará do tema prioridade. Nada de novo, portanto.

publicado no Diário Económico.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Comentário

Para utilizar uma expressão de Manuel Alegre, há um “tabu” essencial que não foi quebrado no encontro de ontem e que impossibilita qualquer tipo de “entendimento” entre as esquerdas. Um tabu que tem lastro histórico. Ontem como no passado, a convergência à esquerda assenta invariavelmente no pressuposto que as políticas dos governos PS são de direita.
A escolha do PS como principal adversário das outras esquerdas tem, desde logo, dificultado a consolidação de uma coligação política e social que permita enfrentar com robustez alguns dos problemas que o País enfrenta.
Mas este velho tabu, que agora adquiriu novos contornos, tem outras consequências, não menos negativas.
Em primeiro lugar, cria incentivos objectivos para que o PS procure enraizar-se eleitoralmente à sua direita (o que fragiliza o já de si frágil encastramento social dos partidos portugueses) e, em segundo lugar, abre o caminho para uma pulverização eleitoral das esquerdas (o que diminui as condições de governabilidade à esquerda).
Perante o actual impasse, há sinais de que a saída possível para o “encontro das esquerdas” seja semelhante ao que se passou na Alemanha, com o Linke de Lafontaine. Talvez valha a pena recordar as consequências daquela cisão: uma situação de ingovernabilidade e uma coligação de “bloco central”. Se em Portugal for percorrido esse caminho, estou certo que ouviremos muitos dos que agora criticam indiferenciadamente as políticas do actual governo, a defender muitas delas como tendo sido de esquerda.

publicado no Diário de Notícias.

sábado, dezembro 13, 2008

Os improváveis entendimentos à esquerda

O código genético da esquerda portuguesa é marcado pela competitividade interna. Somar intenções de voto entre PCP, BE e PS significa, por isso, juntar o que não é historicamente conciliável. Estarão agora a mudar os termos desta relação? A resposta é não.

O essencial do entendimento entre as esquerdas continua a depender de uma hipotética capitulação do maior partido de esquerda às mãos de partidos social e eleitoralmente menos representativos. Ou seja, o PS deveria, em última análise, adoptar o programa político proposto pelas outras esquerdas. Uma espécie de versão revista da estratégia “entrista”.

A ideia de entendimento tem implícita uma comunidade de propósito para a partilha de um conjunto de objectivos e de processos para o alcançar. A escolha do PS como principal adversário das outras esquerdas tem, aliás, objectivamente dificultado a consolidação de uma coligação social e política ampla que permita enfrentar com robustez alguns dos problemas que precisam de esquerda, maxime o combate às desigualdades sociais.

Acontece que não se combatem as desigualdades de hoje com os instrumentos do passado. Precisamos de mecanismos de regulação do mercado de trabalho sensíveis à transição para uma sociedade pós-industrial, de modernizar a protecção social de modo a compatibilizá-la com as transformações demográficas e de encontrar novas formas de qualificar os activos. O problema é que, por exemplo, enquanto não for abandonada a posição conservadora e retórica que trata a “flexigurança”, a sustentabilidade da segurança social ou as “novas oportunidades” para os activos como “políticas de direita”, dificilmente as esquerdas poderão trocar ideias sobre entendimentos.

publicado no Semanário Económico.

terça-feira, dezembro 02, 2008

A dimensão da crise

A crise instalou-se e, se poucos foram capazes de a antecipar, ninguém hoje consegue prever com segurança nem a sua dimensão, muito menos o seu fim. Neste contexto, é natural que o pessimismo se tenha tornado regra. No meio dos cenários mais negros, vale a pena por isso introduzir uma nota de optimismo: não apenas relativamente à dimensão da crise, mas, também, quanto às saídas possíveis. A melhor forma de o fazer talvez seja olhar para a última grande recessão, no início da década de oitenta. Estarão as economias ocidentais agora numa situação pior do que então? Há pelo menos três factores que tornam esta recessão comparativamente menos profunda, ao mesmo tempo que abrem melhores possibilidades para dela sairmos.

O primeiro desses factores é demográfico e prende-se com a articulação entre mão-de-obra disponível e níveis de participação no mercado de trabalho. No início dos anos oitenta, não apenas as taxas de emprego eram mais baixas para a generalidade dos países da OCDE, como a pressão sobre o mercado de trabalho é hoje inferior, tendo em conta o envelhecimento progressivo da população. Enquanto há cerca de três décadas a geração dos ‘baby-boomers’ ainda estava a entrar no mercado de trabalho, hoje a pressão demográfica é comparativamente menor. O que serve para recordar que a crise será tanto maior quanto menor for a capacidade de conservar os níveis actuais de emprego, com políticas que os protejam. Com desemprego controlado, resistiremos à crise melhor do que se os ajustamentos forem feitos do lado do emprego. Aliás, a este propósito vale a pena olhar para o que se tem passado no Japão na última década, onde arrefecimento económico se tem combinado com deflação e com emprego alto e pouca variação do desemprego.

O segundo factor remete para os ajustamentos entretanto feitos nos mecanismos de protecção social. Nas economias mais avançadas, no início da década de oitenta, a generosidade das pensões de reforma antecipada e do subsídio de desemprego, combinados com baixos níveis de fiscalização das pensões de invalidez, estimulou ajustamentos que oneraram excessivamente a despesa pública. A racionalização e modernização dos instrumentos de protecção social entretanto feita, não apenas descarta essa possibilidade, como limita os efeitos de maturação destas políticas, que não poderiam deixar de funcionar como entrave ao investimento público.

O terceiro factor é eminentemente político: enquanto para enfrentar a anterior recessão eram defendidas duas vias diametralmente opostas – sintetizadas nas nacionalizações preconizadas durante a primeira presidência Mitterrand e na retracção do papel do Estado levada a cabo por Thatcher – o cenário é, agora, bem diferente. Há hoje um consenso alargado, pouco ideológico é verdade, assente no pragmatismo, que defende a necessidade de coordenar políticas, de regular os mercados internacionais e de promover o investimento público como mecanismo para ultrapassar a estagnação económica. É este consenso que faz com que o centro gravitacional da política se tenha deslocado para temas tradicionalmente à esquerda. A opção já não passa, como no passado, pela defesa de uma baixa de impostos sobre o rendimento para aumentar o rendimento disponível (até porque, como lembrava recentemente Robert Reich, esses recursos tendem a ser usados para pagar dívidas, mais do que para comprar bens e serviços), mas sim pelo investimento em infra-estruturas, serviços sociais e energias renováveis que, ao mesmo tempo que garantem a sustentabilidade do emprego no imediato, têm um efeito positivo no médio prazo. Citando ainda Reich, os governos têm hoje de ‘spend big time’.

Acontece que estes factores não estão presentes de igual modo no conjunto dos países do capitalismo organizado. O que serve para lembrar que a crise não poderá deixar de ter resultados assimétricos e que o modo como cada país vai sair dela depende da prioridade que for dada à conservação de níveis elevados de emprego, dos ajustamentos racionalizadores da protecção social e, claro, da capacidade institucional, baseada no consenso político em torno da promoção do investimento público ultrapassando as regras apertadas do pacto de estabilidade e crescimento. Talvez estes eixos ajudam a prever o que pode ou não acontecer em Portugal.

Nota: Devo a Anton Hemerijck a ideia de comparar as duas crises nestas dimensões.

publicado no Diário Económico.