terça-feira, maio 27, 2008

"São as desigualdades, estúpido"

Sazonalmente, a pobreza regressa à agenda mediática e, como sempre, os dados são apresentados de forma estática, sem que seja identificada qualquer dinâmica nas desigualdades em Portugal. O modo como foi divulgado o relatório sobre a situação social na Europa no final da semana passada não foi excepção.

Se olharmos para os indicadores, uma coisa resulta clara: ao contrário do que é frequentemente referido, o principal problema político português é um padrão de desigualdades que não encontra paralelo nas democracias ocidentais. O combate ao desemprego e a promoção do emprego, bem como a disciplina das contas públicas deveriam ser vistas apenas como variáveis instrumentais para Portugal se tornar um país menos desigual. Parafraseando uma frase de Bill Clinton, o problema português “são as desigualdades, estúpido”. A diferença é que aqui o estúpido não é o Governo de cada momento, mas sim a manifesta incapacidade de se promover uma coligação social que traga este tema de modo consequente para o topo da agenda política.

Desse ponto de vista, os alertas mediáticos podem ser boas ajudas se servirem para enfatizar o problema que colectivamente enfrentamos, mas serão certamente péssimos auxílios se, como tende a acontecer, se limitarem a apresentar os dados como se nada tivesse mudado e como se nada, do ponto de vista das políticas públicas, tivesse sido feito nas últimas décadas.

É que de cada vez que se apresentam os dados sobre a pobreza, desvalorizando o conjunto de políticas que Portugal tem desenvolvido, está-se a dar um importante contributo para subestimar o papel da intervenção pública na diminuição das desigualdades. E a verdade é que, como revelam as comparações internacionais, o que faz variar as desigualdades não é apenas a variação no PIB, são, também, as opções de cada país em termos de políticas públicas.

Portugal tem uma taxa de pobreza muito elevada no contexto europeu – em 2006 era de 18%, quando por exemplo na Suécia era de 12%. Acontece que, considerando as taxas de pobreza antes das transferências sociais, a nossa posição não é muito diferente da dos nossos parceiros europeus. Enquanto em Portugal, o risco é de 29%, no caso sueco é de 25%. Este dado serve para demonstrar que a percentagem do produto destinada a despesa social (25% em Portugal e 32% na Suécia) é decisiva para explicar a ‘performance’ de cada país.

Mas um olhar mais fino sobre os dados revela que Portugal tem tido maior capacidade no combate às formas mais severas de pobreza do que face ao conjunto das desigualdades. Desde 1995 até 2006, Portugal fez baixar a intensidade da pobreza total, mas isso tem acontecido muito por força da melhoria da situação dos idosos (de 26% para 17%). Onde Portugal continua a ter maior rigidez é entre os pobres em idade activa (apenas de 31% para 25%).

Esta dinâmica não é independente de, ao contrário do que acontecia antes de 1995, estarmos hoje mais próximos da prática europeia no que toca às políticas vocacionadas para responder à pobreza daqueles que estão fora do mercado de trabalho – de que são exemplos o rendimento mínimo, as prestações familiares com discriminação positiva, os aumentos diferenciais nas pensões baixas e os complementos de pensões com condição de recursos. Mas o sucesso, sempre relativo, no combate à severidade da pobreza, não só não foi independente dos ciclos políticos, como não pode servir de desculpa para continuarmos a ter níveis de desigualdade intoleráveis. Até porque, convém não esquecer, é essa a medida sintética do sucesso de uma governação à esquerda.

Acontece que, se já se tem provado difícil desenvolver políticas de combate à pobreza extrema – basta recordar os ataques pornográficos de que foi alvo o rendimento mínimo –, não é difícil de antecipar o que aconteceria se o combate às desigualdades passasse a ser a prioridade política nacional. Afinal, os instrumentos mais eficazes para combater as desigualdades de rendimentos são conhecidos: aumentar a cobertura da contratação colectiva e tornar os impostos mais progressivos. Ou seja, dar uma nova centralidade aos sindicatos e à negociação e fazer com que as políticas fiscais contrariem a dispersão salarial, redistribuindo a favor dos primeiros vintis de rendimento e disponibilizando recursos para a dinamização de serviços sociais às famílias. Querem apostar que a indignação social que existe em torno da pobreza desapareceria rapidamente?

publicado no Diário Económico.

terça-feira, maio 20, 2008

O abraço do Zenit

Na semana que passou, o Zenit de São Petersburgo venceu a final da Taça UEFA. Apesar da perda de relevância desta competição, quem deu por isso, não pode deixar de se ter interrogado sobre de onde vinha este clube, até então desconhecido e sem curriculum. A um olhar mais atento não passou despercebido o patrocínio nas camisolas: Gazprom, essa espécie de Leviatã que paira sobre o Estado russo. A explicação só poderia estar aí. O Zenit é hoje propriedade da Gazprom e o clube mais rico da Rússia, com um investimento nos últimos anos que ultrapassou os cem milhões de dólares.

O futebol, é sabido, é não só um bom tema para observar alguns aspectos essenciais da natureza humana, como também tem servido para antecipar conflitos entre países, tendo sido nalguns casos um rastilho que levou à fragmentação de nações. Mas o futebol é também um bom observatório das economias políticas. Muitas das vezes, e exceptuando os colossos europeus, o que explica a pujança de um determinado clube, num determinado período, tem a ver com o modo como uma cidade ou uma região fazem reflectir o sucesso do seu padrão de especialização em êxito do seu clube de futebol. O exemplo mais conhecido deste fenómeno é o de St. Étienne. Até meados da década de oitenta, a cidade ficou conhecida como sendo uma ‘company town’, dependente de um sector industrial (o aço), a partir do qual se desenvolveram um sem número de PME. Durante muitos anos, a cidade francesa ficou conhecida pela sua tradição industrial, pela cultura operária e, claro, pelo seu clube de futebol liderado por Platini. Depois, a região entrou em depressão económica e com esta foi-se a pujança desportiva do St. Étienne.

A vitória do Zenit está aí para revelar como por detrás de resultados desportivos improváveis se esconde inevitavelmente um sucesso económico. Acontece que as consequências para o conjunto da Europa da ascensão da indústria do aço francesa no passado são bem menores do que os que resultam do poderio quase hegemónico da Gazprom hoje.

No ano passado, a Gazprom produziu 20% do gás mundial e 25% do da União Europeia, sendo detentora de 16% das reservas mundiais. Estes valores fazem da empresa a maior do mundo no sector. Para além do mais, a empresa russa tem-se expandido, tendo adquirido importantes participações em petrolíferas, que levam a que hoje as suas reservas combinadas só sejam ultrapassadas pelas de dois Estados (a Arábia Saudita e o Irão). Tudo isto faz da Gazprom a terceira maior empresa mundial em termos de valor das suas acções.

Até aqui, pese embora a propensão da Gazprom para o controlo quase monopolístico do mercado, pelo menos em algumas regiões, a verdade é que poderíamos supor tratar-se de uma empresa a operar no mercado e a fazer-se valer da riqueza natural da Rússia. Mas infelizmente não é assim. A Gazprom é o paradigma da promiscuidade entre interesses privados e poder político na Rússia de hoje. Os recursos naturais são o cimento dessa relação.

O exemplo mais acabado disto mesmo foi a dança de cadeiras a que se assistiu recentemente na Rússia. Enquanto Vladimir Putin passou a primeiro-ministro, Dmitri Medved, antigo ‘chairman’ da Gazprom e ex-PM, ocupou o lugar de presidente. Nisto a Gazprom passou a ser presidida pelo anterior PM, Viktor Zubkov. Tudo em família portanto.

O problema é que esta família, conhecida pelo seu respeito pelo Estado de Direito e pelos mais elementares princípios do liberalismo político, se prepara para criar condições para aplicar ao conjunto da Europa a receita que tem aplicado à sua vizinha Ucrânia. Fazer aumentar a dependência energética para níveis que levarão a que, num tempo não muito distante, as tentativas da União Soviética para contaminar politicamente a Europa por força do seu poderio militar passem a parecer brincadeiras pueris, nomeadamente quando comparadas com o complexo político-energético que está hoje a ser construído. Como lembrava Paulo Pedroso no ‘blogue’ ocanhoto, “enquanto a Europa parece preocupada com o hipotético poderio chinês do futuro, baseado em brinquedos e vestuário, a Rússia vai abraçando-a com as armas do século XXI”. É por isso que talvez seja boa ideia a Europa olhar com mais atenção para a vitória do Zenit. Ela esconde muito mais do que um sucesso desportivo e é mais reveladora do que gostaríamos que fosse. Resta saber se, desta vez, as democracias europeias têm alguma resposta para o abraço energético do urso.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, maio 13, 2008

O dilema da oposição

A campanha para as directas do PSD tem revelado uma tensão entre o que é o discurso adequado para mobilizar os militantes do partido e o que deve ser feito para o tornar competitivo junto dos eleitores portugueses. Uma tensão que não é exclusiva a disputas internas no PSD, já que o PS a tenderia a enfrentar caso estivesse na oposição. O modo como se posicionam perante esta tensão, ajuda a compreender os problemas diferentes que enfrentam as campanhas de Pedro Passos Coelho e de Manuela Ferreira Leite.

Depois de ter sido apresentada como vencedora anunciada, não passa um dia sem que a comunicação social dê sinais de que Ferreira Leite não tem conseguido construir momentum e que, ao contrário do que seria inicialmente esperado, as estruturas partidárias intermédias não só não a apoiaram em massa, como têm vindo a apoiar Passos Coelho e até Santana Lopes. Este contexto tem sido agravado pela ausência de um discurso político e estratégico da sua parte. Nas entrevistas que a candidata tem dado (primeiro ao Expresso e depois na RTP), os elementos de diferenciação por relação ao actual Governo são poucos e Ferreira Leite sublinha que a sua mais valia comparativa é a credibilidade. Sintomaticamente, a candidata já várias vezes aludiu ao tema licenciatura do primeiro-ministro. O que faz adivinhar o tipo de campanha em que aposta.

Já Passos Coelho construíu a sua campanha em torno de uma ideia política que visa reposicionar ideologicamente o PSD. Ainda que baseado na vulgata da blogosfera, o objectivo de Passos Coelho é tornar o PSD um partido mais liberal, afastando-se da matriz que esteve por detrás das vitórias eleitorais social-democratas com Cavaco Silva. O facto deste candidato ter surgido como alguém mais interessado em discutir ideias do que táctica tem-se revelado uma importante vantagem para a campanha interna. Antes de mais, porque lhe tem permitido obter apoios de caciques internos sem que a sua imagem se ressinta desses mesmos apoios; depois porque a definição ideológica tem funcionado como um tónico para a mobilização dos militantes.

Aliás, este último aspecto é a raiz de muitos dos problemas que enfrentam quer PSD, quer PS quando se encontram na oposição. Os militantes tendem a rever-se na demarcação ideológica e num deslocar do posicionamento dos partidos, respectivamente, para a direita e para a esquerda. O mesmo já não é válido para o conjunto do eleitorado que não se guia tanto pelas clivagens tradicionais como factores determinantes do voto (ex. classe social e religião), mas mais por variáveis políticas de curto prazo (ex. o desempenho económico, os escândalos políticos e, claro, as percepções sobre os líderes).

Esta tendência é, contudo, no caso português intensificada por uma outra dimensão. De acordo com os dados de Anna Bosco e Leonardo Morlino, citados por Carlos Jalali, a percepção dos eleitores quanto à proximidade ideológica entre PSD e PS é comparativamente muito maior do que em Espanha e em Itália. Numa escala de 1 a 10, PSD e PS distanciam-se 2.6 pontos, PP e PSOE 4.4 e Forza Italia e DS 4.8. Ou ainda, no que é outra forma de medir a diferença entre campos políticos, em Portugal não há clivagens relevantes em torno de questões que materializam a distinção ideológica. Por exemplo, os portugueses quando questionados sobre se o sistema de saúde deveria ser controlado pela iniciativa privada, rejeitam massivamente esta hipótese, independentemente do seu posicionamento ideológico ou voto partidário.

Ora, este contexto cria um dilema claro. Para ganhar eleições internas é preciso fazer afirmações ideológicas e acentuar a distinção nas opções sobre as políticas. Pelo contrário, para se ser competitivo face ao partido que está no poder, é necessário sublinhar as diferenças em aspectos que têm mais a ver com a personalidade dos líderes e esperar que outros factores de curto prazo joguem a favor (comportamento económico e do emprego e escândalos políticos). Passos Coelho seguiu o primeiro caminho, enquanto Ferreira Leite seguiu o segundo. Resta saber se os militantes quando forem votar, vão escolher autonomamente o seu líder, sem considerações sobre o que é mais avisado eleitoralmente ou, pelo contrário, vão ser mais sensíveis ao que as sondagens (isto é, o conjunto dos portugueses) dizem que o PSD deve fazer. A vitória nas directas dependerá da resposta a esta questão.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, maio 06, 2008

A indefinição do PSD

Há duas semanas, escrevi aqui que o não posicionamento ideológico tinha sido, durante muito tempo, uma vantagem comparativa para o PSD. Isto porque plasticidade ideológica combinada com prática de poder fez do PSD “o mais português dos partidos portugueses”. Mas o que foi vantagem deixou de o ser. Sem poder nacional desde 1995 – exceptuando a traumática experiência Durão/Portas/Santana – e com o PS de Sócrates a ocupar o espaço da eficácia reformista e da cultura de poder outrora associada aos sociais democratas, o PSD deveria procurar pôr fim ao tempo da indefinição e procurar diferenciar a sua oferta eleitoral da do PS. Contudo, os sinais das primeiras semanas de campanha interna não apontam nesse sentido.

Desde logo porque a diferenciação programática e de políticas tem estado ausente da discussão entre candidatos.

Manuela Ferreira Leite, enquanto evita a todo o custo dizer o que quer que seja sobre o que quer que seja, afirma-se pela credibilidade e pelo rigor. Conceitos que se tornaram muito populares, mas que, convenhamos, não têm nada de estratégico ou ideológico. Ainda assim, visam uma dupla diferenciação: antes de mais, face aos últimos tempos de liderança do PSD e depois por comparação com José Sócrates. Como a própria afirmou em entrevista ao Expresso, “não vai encontrar uma única pessoa que diga que alguma vez a enganei. Essa é uma diferença entre mim e o eng. Sócrates.”. O problema é que Ferreira Leite, ao contrário do que quer fazer crer, não tem, a este nível, um curriculum isento de mácula. Afinal, foi ministra das Finanças de um Governo que ganhou as eleições com a promessa de um “choque fiscal”, com baixa de impostos e que, uma vez no poder, promoveu a sua subida. Enquanto Ferreira Leite não assumir qual é a sua plataforma eleitoral para o futuro, o que lhe resta é a imagem construída no passado. E essa imagem está muito associada à prioridade (justa) dada à consolidação orçamental, que, contudo, ficou muito longe dos resultados alcançados por Teixeira dos Santos. E, pior, a percepção que fica é que enquanto Sócrates terá dito “mata” para conter a despesa pública, Ferreira Leite acrescentaria “esfola”. Convenhamos que não se trata de um grande capital eleitoral.

Passos Coelho tem tentado diferenciar-se pelo combate ideológico, procurando afirmar-se através de um projecto liberal, que não se circunscreve às questões materiais e económicas (ex. privatização da CGD e da RTP), mas que se estende também aos temas pós-materiais e de costumes (veja-se a sua abertura quanto ao casamento entre homossexuais – uma posição absolutamente inédita entre a direita portuguesa e que há que saudar). Acontece que o espaço para o crescimento eleitoral de uma postura liberal é, entre nós, escasso. Não apenas o liberalismo nos costumes não é mobilizador, como a cultura intervencionista e a sombra protectora do Estado fazem parte do caldo de cultura em que se formou a direita portuguesa. Para além do mais, numa altura em que as ondas de choque de mais de duas décadas de desregulação do capitalismo global começam a fazer-se sentir quotidianamente (da crise do sub-prime ao descontrolo de preços nos bens agrícolas), a agenda política nos próximos tempos será marcada pelo combate às desigualdades acumuladas e não por um reforço do liberalismo económico.

Finalmente, Santana Lopes: o ex-primeiro-ministro pouco tem para oferecer além da sua versão de peronismo à portuguesa e um acerto de contas (em que tem razão) com todos os que no PSD o apoiaram entusiasticamente mas que agora se entretêm a criticá-lo. Contudo, a marca que ainda perdura da sua passagem pelo poder faz com que a sua candidatura não possa ser vista como mais que uma tentativa de sobrevivência do seu espaço político interno.

Em última análise, enquanto a candidata pré-anunciada como vencedora (apesar dos sinais de sentido contrário: vejam-se com atenção os apoios internos e as sondagens) pode conseguir estancar o declínio eleitoral do PSD e contrariar a degradação da imagem do partido, mas tem pouco para oferecer de diferente do PS de Sócrates; o candidato que surge como novo e com uma agenda política mais afirmativa, enfrenta claros limites à sua afirmação eleitoral. Se a isto juntarmos a pulverização de votos internos, há muitos sinais de que a indefinição continuará a ser o regime no PSD. A menos que a situação económica (e o emprego) se deteriore de tal modo que o PS e Sócrates iniciem um declínio eleitoral que, até agora, teima em não se reflectir nas sondagens.

publicado no Diário Económico.