terça-feira, agosto 19, 2008

O dilema do Pontal

Deveria Manuela Ferreira Leite ir ou não à festa que o PSD Algarve organiza todos os anos? Esta decisão ocupou a agenda do PSD durante Agosto. Aparentemente irrelevante, ela remete, contudo, para questões centrais da actividade política, designadamente para a tensão permanente entre partidos de eleitores e de militantes. Podem os partidos de poder deixar de ser também partidos de massas? Pode uma liderança na oposição afirmar-se sem mobilizar permanentemente a sua base interna? Poderá o perfil do líder determinar de modo absoluto o tipo de liderança? Ao contrário do que o discurso dominante tende a afirmar, da resposta a estas questões continua a depender o sucesso das lideranças.

Apesar do declínio generalizado da mobilização partidária, os momentos de massas continuam a ser fundamentais e a sua persistência não resulta apenas de fazerem parte de rotinas instaladas. São também ocasiões importantes para a socialização e para a promoção da coesão internas e servem para dar um sinal de força para fora. E, claro, dão palco ao discurso político. Necessidades prementes quando os partidos estão na oposição.

Ora, o PSD lidera a oposição em condições particularmente adversas. Por um lado porque o PS governa com maioria absoluta e, por outro, porque, depois de um período de instabilidade interna, Ferreira Leite acabou por ser eleita apenas com o voto de um terço dos militantes. Perante este cenário, a fórmula tradicional para a afirmação de uma liderança avisaria a que fossem estabelecidas pontes com os sectores derrotados. Ou seja, que se conquistasse o partido de militantes para depois conquistar os eleitores. A estratégia de Ferreira Leite parece assentar numa negação desta fórmula. Uma estratégia de risco que, pelo seu carácter peregrino, ou se revelará uma jogada de mestre ou redundará num monumental ‘flop’.

A história do PSD mostra, contudo, que o partido foi mais forte nos momentos em que foi capaz de fazer coexistir as suas várias tendências internas: as elites liberais, os tecnocratas e as bases mais populares. Os comícios são ocasiões propícias a este tipo de afirmação simbólica. Ferreira Leite, como prova a recusa em participar na festa do Pontal, optou claramente por secundarizar o papel dos momentos populares para a afirmação da sua liderança.

Esta estratégia não deixará de ter consequências no médio prazo. Desde logo, quando necessitar de criar momentos de massas, que continuam a ser essenciais em campanha eleitoral, dificilmente poderá contar com o apoio das bases que agora se viram rejeitadas. Mas os sinais imediatos são também preocupantes.

A gestão de silêncios em que Ferreira Leite se tem especializado tem permitido que o Governo e as restantes oposições ocupem o espaço político, ao mesmo tempo que deixa os militantes do PSD órfãos de discurso. Se faz todo o sentido que um partido na oposição opte por não marcar quotidianamente a acção do Governo, custa perceber como é que em relação a temas centrais o silêncio é a regra. Talvez o exemplo mais flagrante disto seja a ausência de posição do PSD em relação ao Código do Trabalho.

São aliás já visíveis dois efeitos desta estratégia. Em primeiro lugar, uma vez disseminada a percepção de que Ferreira Leite não diz nada, mesmo quando fala, continua a ser acusada de nada dizer. Em segundo lugar, uma gestão de expectativas com a qual se torna difícil conviver. O voto de silêncio de Ferreira Leite no último mês faz com que as expectativas em relação ao que vai dizer quando voltar a falar sejam imensas. Expectativas que, tendo em conta as condições estruturalmente precárias em que é exercida a oposição em Portugal, dificilmente poderão ser correspondidas. Aliás, num exemplo claro de ‘friendly fire’, criou-se a ideia que o silêncio de Ferreira Leite é uma táctica para carregar baterias para a discussão do Orçamento de Estado. Como se um partido na oposição tivesse condições para discutir, de igual para igual, o OE com o Governo.

Percebe-se bem o dilema que enfrenta a afirmação da nova liderança do PSD. Ao mesmo tempo que precisa de contrariar a imagem que se colou ao partido nos últimos anos, retomando uma trajectória de credibilidade e falando para os eleitores, necessita também de assegurar a solidez interna, reforçando a legitimidade perante os militantes. Para Ferreira Leite, aparentemente, estes objectivos são contraditórios, pelo que optou por privilegiar os eleitores em detrimento dos militantes. Resta saber se não estará a levar longe de mais a sua opção, numa atitude que, não por acaso, é simétrica à do seu antecessor.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, agosto 12, 2008

O directo da morte

Temos assistido a uma assinalável unanimidade em torno da intervenção eficaz dos GOE no assalto à dependência do BES. As razões não são para menos: quando vários corpos policiais têm dado sinais de fragilidade e quando os sentimentos de insegurança progridem, o profissionalismo dos GOE funcionou em contra-tendência. Mas uma coisa é o reconhecimento justo da actuação dos GOE, outra, bem diferente, é o regozijo colectivo a que temos assistido relativamente ao que se passou na quinta-feira em Campolide.

Morreu um sequestrador e outro ficou ferido com gravidade, sendo que, no que era o mais importante, os reféns, que foram expostos a enorme violência, saíram ilesos. Este foi, a partir de certa altura, o desfecho inevitável do assalto, mas é um desfecho que está longe de ser o desejável. Naturalmente que os principais responsáveis pelo modo como o assalto acabou foram os dois sequestradores. O que não impede que o desejável fosse que os negociadores tivessem conseguido a sua rendição, sendo estes presentes a um juiz. A satisfação a que temos assistido perante o tiro certeiro dos ‘snipers’, uma espécie de justiça na hora, é mais um sinal de como o Estado de direito é uma conquista tão frágil entre nós.

Também o modo como colectivamente aceitamos a morte como desenlace de um assalto a um banco coloca em causa um importante património civilizacional. Uma das fronteiras entre barbárie e civilização é precisamente aquela que concede uma superioridade absoluta ao valor da vida humana, em qualquer circunstância. Se cedemos neste princípio, podemos estar irremediavelmente a trocar uma sociedade decente, baseada no humanismo e na liberdade, por uma ilusão de segurança assente no livre-arbítrio e numa espiral de violência. A aceitação tácita da bondade do desfecho do assalto ao BES só pode ser vista como um sinal de retrocesso nos padrões morais da nossa vida colectiva.

Mas se a intervenção policial levanta questões morais importantes sobre o papel da justiça nas sociedades democráticas e sobre o modo como, nestas, o Estado exerce o monopólio da violência legítima, a forma como os meios de comunicação lidaram com o sequestro coloca outras questões, igualmente fundamentais.

Ao longo de várias horas as televisões fizeram directos desde Campolide. A opção editorial foi absolutamente legítima, o mesmo já não pode ser dito da forma como se mostrou o sequestro. As imagens da porta do banco, com os sequestradores de arma apontada aos reféns, seguidas do tiroteio, foram um prato adequado ao “voyeurismo” televisivo; mas foram também uma exposição gratuita de violência, assente num hiper-realismo que tende a confundir a realidade com um video-game em que vida e morte são categorias igualmente banais. Aliás, basta imaginarmos um cenário alternativo em que a intervenção dos GOE não corria bem e no qual, em lugar da “neutralização” dos sequestradores, tínhamos assistido a um banho de sangue com morte dos reféns, para nos apercebermos de quão perigosos foram aqueles directos. E o que dizer das horas de tensão a que foram sujeitos os familiares e amigos dos reféns, expostos àquelas imagens dramáticas? Será legítimo, em nome de dois ou três pontos percentuais na guerra das audiometrias, oferecer um espectáculo de violência como aquele?

Dir-se-á que aquela violência foi uma consequência do directo que, pela sua natureza, não pudemos antecipar. Não é verdade. Aquele não era um directo imprevisível, como aconteceu, por exemplo, no outro e único caso de morte em directo de que me recordo na televisão portuguesa, o de Miki Feher. Aliás, quando o jogador do Benfica morreu em pleno campo, não só não era previsível que tal viesse a acontecer, como o realizador da partida de futebol, num gesto que na altura foi justamente elogiado, mandou afastar as câmaras da cara do jogador. Tudo ao contrário do que agora se passou. Não apenas na quinta-feira era muito provável que houvesse violência, como todas as televisões não se inibiram de dar os planos mais próximos possíveis dos acontecimentos.

Num mundo desejável, os mecanismos de auto-regulação teriam funcionado e, em lugar do valor absoluto das guerras de audiências, as televisões ter-se-iam entendido para não mostrar em directo aquelas imagens terríveis e os seus possíveis desfechos. Mas, como este exemplo mais uma vez demonstra, a auto-regulação da comunicação social é hoje pouco mais do que um embuste mobilizado para a argumentação de cada vez que alguém ousa regulamentar a sua acção. Já os directos da morte são apenas uma versão extrema dos caminhos percorridos pelos media.

publicado no Diário Económico.

Dupla Activação

Os incidentes da Quinta da Fonte vieram revelar que uma parte dos habitantes de um bairro social (largamente minoritária) não só violava a lei, como não cumpria obrigações básicas, desde logo pagar as rendas à autarquia. Os dados que o DE hoje apresenta confirmam isso mesmo: muitos dos que vivem em bairros sociais incumprem nas suas obrigações. O que devem os poderes públicos fazer perante isto?
A resposta não é fácil e remete para dilemas políticos e morais centrais sobre como lidar com a pobreza.
Nas últimas semanas tem sido sugerido por alguns comentadores, retomando uma linhagem ideológica com arreigadas tradições, que o facto dos pobres se “portarem mal” é resultado da cultura de dependência associada ao Estado Social. Consequentemente, o modo mais eficaz para começarem a portar-se bem seria diminuir a responsabilidade pública e, pressupõe-se, abandonar os pobres à sua sorte. Esta opção tem um singelo problema: já foi tentada durante vários milénios e assentou invariavelmente numa relação com a pobreza que combinou controlo policial com ghettização dos excluídos. O resultado histórico foi a criação de sociedades muito divididas, com escassa mobilidade social e com um tratamento moralmente inaceitável dos que estavam condenados a ficar de fora.
A alternativa é a que as sociedade ocidentais desde pelo menos meados do século XX têm prosseguido. Procurar promover condições para a integração social de todos, quebrando a reprodução geracional da pobreza. Claro que é uma opção que falha muitas vezes, mas que tem um notável historial de casos individuais de sucesso para apresentar. Mas é também uma opção exigente para as políticas e que não pode nunca viver à sombra dos seus louros.
versão editada publicada no Diário Económico.

terça-feira, agosto 05, 2008

O presente de César

Há uns tempos, num texto que cito de memória, o Presidente da República fixava a doutrina sobre o modo como iria gerir as suas intervenções. Para Cavaco Silva, a palavra deveria ser usada com parcimónia. Quanto menos falasse e quanto maior fosse o sentido de oportunidade das suas intervenções, mais o Presidente seria de facto ouvido. Das várias perplexidades que resultam da comunicação ao país da semana passada, à cabeça surge o incumprimento da doutrina definida pelo próprio Presidente. Cavaco Silva não só, perante a expectativa criada, não foi ouvido na quarta-feira, como relativamente ao Estatuto Político-Administrativo dos Açores, aparentemente já antes não o fora.

Logo no início da sua intervenção, Cavaco Silva afirmou ter alertado “vários dirigentes políticos” para os problemas em torno do Estatuto. Ora a necessidade de uma declaração, com pompa e circunstância, ao país, bem como a aprovação por unanimidade do Estatuto quer na Assembleia Regional dos Açores, quer na Assembleia da República, revelam que os “dirigentes políticos” fizeram ouvidos moucos às palavras do Presidente.

Mas também agora a palavra do Presidente não foi escutada. Não porque o assunto não justificasse uma intervenção presidencial – as questões institucionais não são secundárias e a qualidade da democracia depende em larga medida destas –, mas, sim, porque o modo escolhido para o fazer falhou. Os portugueses que seguiram a declaração do Presidente deverão ter-se dividido em dois grupos: os que não perceberam o que estava em causa e aqueles que, percebendo (isto é, os açorianos), discordaram das palavras de Cavaco Silva.

Tem sido justamente assinalado que o pré-anúncio da comunicação e o tabu entretanto criado não só deram azo a um sem número de especulações, como criaram uma expectativa que só poderia ser defraudada, afastando os portugueses da palavra do Presidente. Contudo, o aspecto mais surpreendente da comunicação não terá sido esse. O que estava em causa eram questões políticas e institucionais bastante relevantes, mas o Presidente da República, em lugar de as tratar como tal, enredou-se num discurso jurídico impenetrável para quem estava a ouvir. O que deveria ter sido tratado politicamente, foi encerrado numa conversa para juristas iniciados. A sensação que fica é que quem estava a falar não era o Presidente que deve falar para todos, mas algum assessor jurídico que ficou com a incumbência de acompanhar o Estatuto dos Açores.

Claro que os partidos políticos estão longe de saírem isentos de culpas de todo este processo. Não nos podemos deixar de questionar como é que foi possível que 230 deputados tenham aprovado por unanimidade um diploma que tem oito – sublinhe-se oito – normas inconstitucionais. Só há três respostas possíveis para esta questão: negligência pura; discordância face à Constituição – o que é estranho, pois conjuntamente podem cuidar de a alterar –; ou, no que se afigura mais provável, cedência às exigências provenientes das regiões autónomas, independentemente da sua bondade intrínseca. O que nos leva às consequências imediatas da comunicação do Presidente.

Tradicionalmente o PS/Açores tinha uma desvantagem comparativa face ao PSD regional: era visto como um partido com reservas face ao aprofundar da autonomia. Com a sua comunicação, Cavaco Silva conseguiu consolidar a inversão de posições relativas – colocou o PSD/Açores na posição muito desconfortável de não poder, ao mesmo tempo, criticar abertamente o Presidente e distanciar-se da defesa do Estatuto tal como aprovado pelo Parlamento Regional. Com um crescimento do PIB bem superior à média nacional, com um conjunto de investimentos públicos, mas, também, privados muito significativos e com ‘superávit’ orçamental, Carlos César preparava-se para ter mais uma vitória nas próximas eleições regionais. Cavaco Silva, ao encostar o PSD/Açores a um dilema insuperável, ofereceu a Carlos César um presente com que o próprio não sonharia: um triunfo muito folgado.

Resta, contudo, saber se o Presente de César não será, como no livro de Astérix, ilusório e se a Assembleia da República não terá, de facto, como tantas vezes aconteceu no passado com a Madeira, cedido excessivamente às pressões autonómicas dos Açores e se, nisto, o PS nacional não terá aceite trocar mais uma vitória eleitoral nos Açores por alguns princípios que deveriam ser inalienáveis para um funcionamento saudável da nossa democracia, entre eles o equilíbrio de poderes.

publicado no Diário Económico.