terça-feira, novembro 25, 2008

Mais um circo mediático

A ideia de uma comissão de inquérito para apurar o que se tem passado no BPN é no mínimo inusitada e só mesmo ultrapassada pela possibilidade de uma audição individual de Dias Loureiro no Parlamento. Aliás, a criação de mais esta comissão é bem o sintoma da crescente mediatização da justiça e do lugar frágil que os deputados e a Assembleia da República se atribuem a si próprios.

Desde logo porque, ainda que escudando-se na avaliação do papel do supervisor, percebe-se que há dois verdadeiros motivos por detrás da comissão de inquérito: discorrer sobre o processo que levou à nacionalização do BPN e investigar os eventuais actos ilícitos em torno da gestão do BPN.

Ora, quando a discussão se centrar sobre o primeiro tema, a comissão de inquérito entreter-se-á a replicar uma discussão tida há um par de semanas pelos deputados quando aprovaram a nacionalização do BPN e que já levou a uma prolongada e inócua ida do governador do Banco de Portugal ao Parlamento; já quando discutir os actos de gestão praticados no BPN, teremos uma evidente sobreposição entre a investigação judicial e a actividade parlamentar. O problema é que os deputados colocar-se-ão numa posição desigual e frágil quando comparada com a do Ministério Público.

Pensemos na prisão preventiva de Oliveira Costa. Como é norma em Portugal, o segredo de justiça faz com que pouco possamos saber sobre os motivos desta prisão preventiva, quanto mais sobre o que está em investigação, que factos e que responsabilidades foram apurados. Neste contexto, perante o desconhecimento público, e sem nenhuma prerrogativa que lhes conceda poderes especiais de investigação, o que resta aos deputados é colocar questões com base na informação jornalística assente em investigação própria dos media (invariavelmente escassa) ou em fugas de informação (invariavelmente contraproducentes para o apurar da verdade). Tudo bem revelador do papel que os deputados tranquilamente se atribuem: o de “perguntadores” a quem faltam elementos para questionar consequentemente.

Claro que é exagerado afirmar que os deputados não têm nenhum poder especial e que se limitarão a sobrepor uma comissão de inquérito a uma investigação judicial. Na verdade, a comissão de inquérito terá um poder: o de chamar a uma sala cheia de jornalistas alguns protagonistas. Teremos por isso um circo mediático que abre a porta a todos os populismos. Aliás, uma coisa é garantida: esta comissão de inquérito dará mais uma oportunidade para ouvir Paulo Portas indignar-se contra a supervisão em particular e Francisco Louçã contra os bancos em geral. Muito proveitoso, portanto, para o apurar da verdade, que, ainda com dificuldade, imagina-se seja o objectivo último.

Tudo isto serve para recordar que as comissões de inquérito formadas a quente, debaixo de uma pressão mediática à qual os partidos não só não conseguem resistir, como para a qual se empurram mutuamente, são pouco úteis, não têm nenhuma continuidade e muito menos qualquer tipo de consequência credível. Basta pensar no que se tem passado nas últimas comissões de inquérito, que depois de alguns fogachos mediáticos resultaram em conclusões inócuas, às quais ninguém ligou (alguém se recorda da recente comissão de inquérito ao caso BCP?). Tudo indica que esta não será excepção.

Nada disto quer dizer que em teoria as comissões de inquérito parlamentar não façam, em si, sentido. Fazem-no, mas não constituídas debaixo da pressão pública, sobrepondo-se a investigações judiciais e sem possibilidade de investigar ou conhecer o conteúdo da investigação em curso. Imaginemos que, por exemplo, depois de todo o alarido criado em torno da “Operação Furacão”, esta redunda em nada. Ora nesse caso faz todo o sentido criar uma comissão para investigar os motivos do fracasso da investigação judicial e apurar eventuais responsabilidades. Até porque, é sabido, as investigações às investigações não acontecem em Portugal, sendo que são fundamentais para o bom funcionamento do estado de direito.

Até ver, está apenas a ser criado mais um caso judicial em que a mediatização, ao mesmo tempo que cria o contexto adequado aos assassinatos de carácter e a julgamentos baseados nesse princípio proto-fascista que é o “sentimento generalizado da opinião pública”, poucos contributos dará para apurar a verdade. Mas também o que é que isso importa, quando há uma boa história para contar ou há um palco com holofotes para os diversos actores representarem os papéis predefinidos?

publicado no Diário Económico.

terça-feira, novembro 18, 2008

Mudar de mais

Desde o início, a política de educação confunde-se com a identidade do executivo de Sócrates. Com uma maioria absoluta que não enfrenta pontos de veto formais, o Governo tem construído uma agenda reformista baseada na ideia de que entre interesse geral e reivindicações corporativas há uma clivagem insuperável. Para além do mais, contra o que é tradição, o calendário governamental das políticas tem-se revelado pouco solidário com o calendário partidário das eleições.

Esta atitude tem tido consequências: alterou a identidade do PS (daí a contestação permanente, sempre perto da ruptura, da sua ala mais esquerda); disseminou um discurso anti-sindical entre os governantes (que não pode deixar de diminuir a eficácia das políticas); fragilizou o encastramento social do partido (grande parte das políticas afronta os interesses da sua base eleitoral); e colocou sérias dificuldades de afirmação ao centro-direita, que vê o Governo esvaziar com eficácia a sua agenda, ao mesmo tempo que permitiu a afirmação eleitoral à esquerda.

Paradoxalmente, nenhum destes factores impediu que o Governo se mantivesse à frente das sondagens. Isto acontece por diversos motivos: a predisposição da sociedade para criar condições de governabilidade, ainda fruto de um longo período de governos minoritários ou instáveis; uma disponibilidade para aceitar sacrifícios que tem sido assinalável; e, no que é um caso típico do argumento “Nixon goes to China”, porque a capacidade política do PS para promover reformas impopulares é superior à dos partidos de centro-direita.

Este contexto tem deslocado o centro gravitacional da política do debate entre Governo e partidos para uma tensão permanente entre o Governo, como representante do interesse comum, e os movimentos de contestação de base profissional, como representantes dos interesses particulares. Não por acaso, quem tem liderado a oposição não têm sido os partidos, mas movimentos corporativos (dos militares aos camionistas, passando pelos professores). Este facto, aliás, cria uma ilusão de robustez do governo que pode não ter correspondência prática.

O que se tem passado na educação é fruto deste contexto e, ao mesmo tempo, pode funcionar como a “gota d’água” que muda as circunstâncias. A contestação dos professores pode estar para o Governo Sócrates como a contestação da ponte 25 de Abril esteve para o Governo Cavaco. Dois movimentos inorgânicos, que ultrapassam sindicatos e partidos e com interlocutores imprevisíveis. O pior dos cenários para a negociação.

O que foi feito nestes anos na política educativa não encontra paralelo em nenhum outro período da nossa democracia. Deixemos agora de lado a natureza das mudanças (com a qual tendo a concordar), mas pensemos apenas na sua dimensão (ex. fecho de escolas; novas regras de gestão; diferenciação da carreira de professores com a introdução do professor titular; aulas de substituição e prolongamento dos horários escolares; avaliação dos professores; estatuto dos alunos). Tudo num contexto de congelamento de salários e de carreiras. O que espanta não é, por isso, que a contestação seja tanta; o que surpreende é que tenha sido possível fazer tanta coisa. O que sugere que foram feitas coisas de mais, excessivamente impostas de cima para baixo e com inabilidade na sua aplicação. O que aliás tem como consequência fragilizar a consolidação de parte das mudanças.

E agora que as pontes entre Governo e professores parecem estar definitivamente postas em causa, pode Maria de Lurdes Rodrigues continuar à frente da educação?

Dois factores favorecem a sua continuidade. Por um lado, não há nada pior do que a inflexão radical da identidade dos governos. A imagem de Sócrates está intimamente ligada ao voluntarismo da ministra da Educação. Remodelar agora seria o reconhecimento de que o executivo não confiava na linha que traçou desde o início. Por outro lado, após a saída de Correia de Campos, Sócrates não pode voltar a remodelar a pedido de Manuel Alegre. Se o fizer, dá a ideia que se encontra refém do deputado contestário.

Mas contra a continuidade da ministra joga um factor difícil de ponderar: se houver um boicote de meia dúzia de conselhos executivos à avaliação, Lurdes Rodrigues pode eventualmente agir disciplinarmente. Se o boicote se generalizar, a ministra fica numa situação muito complicada. Como deixaram de existir interlocutores disponíveis do lado dos professores, o futuro imediato passou a ser imprevisível.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, novembro 04, 2008

Uma história portuguesa

Passados trinta anos, voltaram as nacionalizações em Portugal, desta feita por necessidade e, espera-se, com a possibilidade de reprivatização no horizonte. Se há um par de meses o tema em discussão era a privatização da Caixa Geral de Depósitos, hoje passou a ser o modo como a CGD deve dar a mão aos bancos privados. Não há aqui nenhum motivo de satisfação, nem sequer para os que defendem a importância de um banco público sólido e capaz de desempenhar uma função de estabilização do sistema financeiro. A nacionalização do BPN é um sinal de falhanço, antes de mais, dos responsáveis pela administração do banco, mas, também, das entidades reguladoras.

O BPN é uma história bem portuguesa. Os problemas que o banco enfrentava eram, em bom rigor, um segredo de polichinelo. Falava-se deles à boca pequena, sem que nada acontecesse. Na verdade, as dificuldades do banco pouco têm a ver com a crise do sector financeiro, o BPN limitou-se a apanhar boleia da crise. Naturalmente que o contexto de dificuldades financeiras dificultou o plano de Cadilhe para recuperar o banco, precipitando a situação.

Não deixa de ser surpreendente que, apesar de conhecidos os problemas do BPN, as entidades reguladoras, à cabeça o Banco de Portugal, nada tivessem feito. Agora foram tornados públicos os fortes indícios de negócios próximos entre o banco e alguns dos seus accionistas, a existência de “activos clandestinos” (o tal “balcão virtual” que funcionava no Banco Insular em Cabo Verde) e ainda o recurso a sociedades ‘off-shores’, controladas pelo próprio grupo, para aumentar o capital social; mas, na verdade, nada disto deveria surpreender alguém mais atento. E o mínimo que se pode dizer é que o Banco de Portugal andou desatento. Até porque fica a impressão que só após as denúncias junto da Procuradoria-Geral da República é que o processo acelerou. Contudo, daí a transformar-se o polícia (o Banco de Portugal) no culpado vai uma grande distância.

Até porque a história do BPN convém ser recordada. Foi criado como banco de negócios sob alçada política do cavaquismo e, à imagem do BCP, com uma estrutura accionista fragmentada e cruzada com créditos dos accionistas junto do próprio banco. Este quadro criou condições para que o ex-presidente Oliveira e Costa assumisse uma gestão muito personalizada, com traços de nepotismo. Como lembrava o Público há uns meses, o BPN sempre teve uma “base política clara” e, em redor do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais dos governos de Cavaco Silva, Oliveira e Costa, gravitaram na gestão invariavelmente figuras de relevo do cavaquismo. No fundo, para utilizar uma expressão que Cavaco Silva popularizou, o BPN era o banco da “boa moeda”.

Mas para que o BPN não se torne uma verdadeira história portuguesa é fundamental que esta “boa moeda” que teve responsabilidades nos actos irregulares não saia incólume e seja responsabilizada. A impunidade seria insustentável, ainda mais num contexto em que o Estado – ou seja, todos nós – surge a acomodar financeiramente a situação de falência técnica em que o BPN se encontra. Esta é a contrapartida mínima que colectivamente podemos exigir.

Do ponto de vista do Estado, o recurso à nacionalização, sendo naturalmente uma má solução, é também a única disponível e bem preferível às injecções de capital sem assumpção de posição accionista. Até porque, ficámos agora a saber, a opção pela nacionalização foi tomada apenas depois de esgotadas todas as outras. Desde logo porque o Estado recusou subscrever o aumento de capital, em troca de acções preferenciais sem voto, como era desejado pelo BPN e, depois, porque as tentativas para encontrar junto dos outros bancos privados uma solução saíram goradas.

O caso do BPN vem, uma vez mais, revelar o papel decisivo do Estado em garantir a segurança e a confiança nas relações económicas. Mas, esperemos que, do mesmo modo que os novos tempos vieram tornar claras as debilidades estruturais do sistema financeiro capitalista à escala global, obrigando a encontrar novos modelos de regulação, também a solução do BPN não se fique apenas pela nacionalização. É preciso responsabilizar quem cometeu irregularidades, com custos evidentes para os accionistas, e também criar condições efectivas para que histórias como a do BPN não se desenrolem à sombra da passividade e da conivência colectiva.

publicado no Diário Económico.