terça-feira, março 31, 2009

Um falhanço intelectual

Não estamos perante mais uma crise cíclica, solucionável por um conjunto de ajustamentos tradicionais. Nem perante um incidente particular e irrepetível.

Como recordava John Kay, esta crise foi provocada pelo ‘sub-prime' na mesma medida que a Primeira Guerra Mundial foi causada pelo assassinato de Francisco Fernando. A crise tem razões estruturais e revelou vários falhanços: da incapacidade dos mercados para se autocorrigirem (uma premissa em que assentava a sua eficiência), até ao carácter opaco, nuns casos, inexistente noutros, dos mecanismos de regulação do sistema financeiro, passando pela inexistência de uma entidade financeira com recursos suficientes para estabilizar os preços numa economia global bem mais aberta. Uma crise desta dimensão assenta num falhanço intelectual e requer novas ideias.

É precisamente de respostas a esse falhanço que é feita a agenda da Cimeira de Londres. Tem sido dito que estamos perante a primeira reunião desde Bretton Woods, em 1944, com uma agenda substantiva de regulação supranacional. Pode parecer excessivo, já que não se trata, naturalmente, de uma agenda tão profunda, mas ainda bem que os Governos de hoje não precisaram de esperar que à depressão se seguisse uma guerra, para procurarem agir em conjunto.

Há razões para um optimismo moderado em relação às decisões da reunião do G20. E muitas delas têm a ver com a pressão popular e com o novo ambiente político. Como sublinhava Will Hutton, no "Observer" deste fim-de-semana: os executivos da AIG viram-se obrigados a devolver os seus prémios; os executivos dos bancos suíços temem viajar, com receio de serem presos; os parceiros do Barclays no ‘project knight' (um sistema de "eficácia fiscal") denunciaram o esquema e muitos outros bancos têm abandonado esquemas equivalentes. Este novo contexto é fruto da crescente intolerância pública e moral perante os sistemas de benefícios perversos que fazem parte da história desta crise e leva a que não fazer nada não seja uma opção disponível para os líderes do G20.

Para além do que são as respostas de emergência à crise - e que todos os governos têm, com ligeiras variações, tomado (o estímulo à procura através do investimento público) -, o essencial da agenda da Cimeira de Londres passa pela reforma da regulação global e das instituições financeiras.

Temas que, até há pouco, seria impensável que estivessem na agenda, são agora o centro da discussão: a alteração do papel das agências de ‘rating'; a regulação dos ‘hedge funds' e dos produtos derivados; a transparência dos ‘off-shores'; um enquadramento para os bónus no sistema financeiro; regras mais apertadas para a proporção de capital detida pelas instituições financeiras por relação ao risco que assumem; e, acima de tudo, a institucionalização de colégios globais de supervisão e regulação, como sugerido pelo relatório Larosière, que permitam também fazer uma gestão preventiva das crises.

É também muito provável que a reunião do G20 reforce o papel do FMI, quer em termos de recursos financeiros disponíveis, quer quanto aos seus poderes para monitorar as políticas económicas domésticas. Este é um assunto tão central como delicado. O FMI foi criado num contexto radicalmente diferente, em que os EUA e a Europa eram os motores da economia mundial (e os maiores credores), e agora tem manifestas dificuldades em promover a cooperação entre as diversas economias, nomeadamente com as emergentes dos BRIC. Para além do mais, vê ainda a sua actividade limitada pelo montante das suas reservas. Mas a existência de uma instituição financeira global, com recursos suficientes, é um alicerce indispensável para proteger os países pobres dos impactos das crises globais, tornar os preços menos voláteis, estimular os fluxos de capital para as economias mais afectadas e contrariar a propensão para o capitalismo de casino do sistema financeiro.

Para além do optimismo, há também boas razões para cepticismo em relação aos resultados da Cimeira: a clivagem entre os EUA, que falam a uma só voz, a UE que fala, nuns casos, a várias vozes, noutros não tem voz, e ainda outros países, cuja voz é imprevisível; o risco de proteccionismo, sob a forma de soluções que tentam remediar os problemas económicos de um país a expensas dos parceiros comerciais. Soluções pouco sustentáveis e, por assentarem num egoísmo nacionalista, moralmente iníquas. A cimeira de Londres não pode servir para deitar o bebé (o comércio livre) fora com a água do banho (a desregulação).

publicado no Diário Económico.

sábado, março 28, 2009

Condenados a entenderem-se?

A sondagem hoje publicada revela uma erosão da imagem do primeiro-ministro e do Governo, combinada com uma incapacidade do maior partido da oposição para capitalizar o descontentamento, ao mesmo tempo que os partidos dos extremos continuam com votações acima das últimas legislativas. Curiosamente, este padrão coloca-nos numa situação em quase tudo idêntica à do mês de Setembro, quando os reflexos nacionais da crise internacional se faziam ainda sentir escassamente. Desse ponto de vista, a crise internacional está a ter efeitos políticos domésticos semelhantes um pouco por toda a Europa.
Se numa primeira fase, em que havia uma percepção da extensão da crise, mas as suas manifestações económicas e sociais ainda não se faziam sentir de modo intenso, os partidos que se encontravam no poder viram o seu apoio aumentar, no último par de meses, acompanhando o aumento do desemprego e o arrefecimento do produto, tem-se assistido a uma erosão da popularidade dos diversos primeiros-ministros europeus, ao mesmo tempo que se verifica uma pulverização do voto e um crescimento dos partidos à esquerda.
Assim, Portugal caminha para um contexto de dificuldades económicas e sociais sem paralelo na história recente, ao qual aparentemente se soma uma dispersão de votos que nos coloca demasiadamente longe de um cenário desejável de maioria absoluta. Se as eleições fossem hoje (e, sublinhe-se, não são), a ingovernabilidade estaria, por isso, ao virar da esquina. Que fazer perante um cenário destes?
Olhar para o passado talvez não seja má ideia. O cenário futuro pode vir a ter demasiadas semelhanças com a primeira metade da década de oitenta: desequilíbrios financeiros, arrefecimento económico e crescimento do desemprego, combinados com dificuldades políticas. Tal como então, a soma dos votos no PS e no PSD é comparativamente baixa (nesta sondagem estão nos 65%, ligeiramente abaixo da maioria qualificada e bem abaixo dos 74% das últimas legislativas.). Perante um cenário semelhante, o que aconteceu foi a formação de uma coligação de “strange bedfellows”, o bloco central. É naturalmente uma solução indesejável, pois dilui a diferenciação política e tende a reproduzir um outro bloco central, o dos interesses.
É verdade que a intenção de voto somada no PS, BE e PCP é de cerca de 60%, o que poderia levar à formação de uma frente de esquerda. Mas, entre nós, as condições de governabilidade à esquerda são praticamente inexistentes – a menos que se assistisse a uma insólita capitulação do programa político do PS perante o caderno reivindicativo maximalista do BE e do PCP – partidos que com intenções de voto em redor dos 20%, ainda assim se colocam irresponsável e ostensivamente fora da governabilidade.
Há uma frase muito repetida que nos diz que a política é a arte do possível. Se os portugueses não virem na instabilidade política a ameaça real que de facto representa e se o padrão desta sondagem se consolidar, Portugal vai estar confrontado com uma única possibilidade, aliás bem indesejável: o entendimento entre PS e PSD em acordos parlamentares com o patrocínio do Presidente da República (que, em final de mandato, verá o poder de dissolução condicionado pelos prazos constitucionais). Mas tendo em conta que nem para a escolha de um Provedor de Justiça existem hoje canais de diálogo entre os partidos, há boas razões para estarmos colectivamente muito preocupados.
comentário à sondagem da Marktest, publicado no Semanário Económico

terça-feira, março 24, 2009

Autoritarismo de vão-de-escada

De há uns tempos para cá tem-se instalado a ideia de que a democracia portuguesa se está a degradar.

Dos processos disciplinares na DREN, passando pela apreensão de livros pela PSP, até à censura do Ministério Público a um cortejo de carnaval e o mais recente anúncio da Antena 1, onde uma locutora afirma que uma manifestação é contra quem quer chegar a horas, há de facto vários casos que não são aceitáveis numa democracia institucionalizada. Mas será que estamos perante uma tendência? Haverá algo de novo ou trata-se apenas da reprodução de resquícios de autoritarismo que persistem no país?

Uma primeira constatação é que nenhum dos casos recentes teve origem no poder político. Há, aliás, sinais de que em Portugal, dos vários poderes, o político foi não só o que mais se democratizou, como é também o mais exposto à sindicância democrática. Depois, estes exemplos de tiques autoritários não escolhem origem, há-os para todos os gostos: da administração regional às forças policiais, passando pela magistratura até uma empresa pública.

O que estes casos sugerem é que, enquanto se democratizaram as relações de poder ao nível macro, em Portugal há uma espécie de autoritarismo de vão-de-escada, baseado em micropoderes que beneficiam do lastro de autoritarismo que persiste na sociedade portuguesa. Na verdade, não é necessário incitamento activo vindo de cima (leia-se, do poder político), para que nas mais diversas esferas se assista ao exercício de autoridade com escassa cultura democrática. Há uma rede de micropoderes, que se encontra difundida na nossa sociedade e que não nasce necessariamente do centro. Além do mais, em democracia, o autoritarismo é como o tango, precisa de pelo menos dois para existir. Ou seja, o exercício autoritário do poder requer que uma das partes exerça um constrangimento activo, mas necessita também que haja uma predisposição social e individual para aceitá-lo.

O exemplo do anúncio da RDP que acabou por ser suspenso é elucidativo. Para que nos tenha sido possível ver o vídeo, foi necessário que, pelo menos, uma equipa de criativos numa agência, um director criativo, uma jornalista, um actor, responsáveis do marketing e administradores numa empresa pública tenham participado na produção do filme. Ora não deixa de ser surpreendente que a nenhum dos participantes tenha ocorrido que a mensagem era no mínimo questionável e que revelava um desrespeito pelo direito à manifestação, que faz parte do código genético de qualquer democracia.

Na semana passada, a revista "Visão" traçava um perfil da directora da DREN. A ser verdade o que publica o jornalista Miguel Carvalho, deve ser difícil encontrar um exemplo tão representativo da persistência de uma cultura autoritária, baseada em micropoderes na administração pública. Das ameaças de processos disciplinares, passando pela impaciência perante a burocracia (que ainda assim é o que nos protege muitas das vezes da discricionariedade) e a opção por uma "gestão flexível" (que tende a ser baseada no princípio do "quero, posso e mando", que confunde autoritarismo com eficácia), até aos pedidos de anonimato nas declarações ao jornalista por "receio de represálias", estão lá todos os elementos de um exercício de funções públicas pouco consentâneo com a democratização do poder.

Perante estes casos, o Governo tem invariavelmente a mesma atitude: sublinha, com justiça, que não tem responsabilidade directa nos actos e, com legitimidade, sustenta que não interfere na autonomia, nuns casos das polícias, noutros dos tribunais, e ainda noutros do serviço público de televisão e rádio. Mas será que nos podemos dar como satisfeitos com esta atitude? Numa sociedade em que persiste uma cultura autoritária, com pequenas tiranias quotidianas, é possível à esfera política assobiar para o lado, como se nada se passasse?

O autoritarismo de vão-de-escada não se intensificou com este Governo, é apenas a outra face da democracia portuguesa e um lastro da ditadura que não foi extirpado da sociedade portuguesa. Mas precisamente por isso, é necessária uma pedagogia que o contrarie activamente. Há boas razões para que os ministros, pelas funções que exercem, mantenham reservas nas críticas à atitude de um magistrado, de um grupo de polícias, ou até da administração de uma empresa pública. Essa reserva preserva a autonomia institucional, que é algo de que depende também a democracia, mas é estranho que o PS, partido que suporta o Governo, adopte a mesma atitude, escolhendo o silêncio, quando deveria optar pela pedagogia democrática. O silêncio é aliás uma forma passiva de dar respaldo social ao autoritarismo de vão-de-escada.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, março 17, 2009

paradoxos sindicais

A manifestação da passada sexta-feira deu azo às habituais acusações de manipulação política do movimento sindical. Mas haverá algo de novo nas últimas contestações? Estamos a assistir a um alargamento da base de apoio do movimento sindical ou, pelo contrário, é uma história com trinta anos?

O mundo sindical português é feito de paradoxos. Enquanto os trabalhadores portugueses atribuem muita importância aos sindicatos na defesa das condições de trabalho, mais de 2/3 não se encontram sindicalizados. Estes dados coexistem com valores muito baixos para a conflitualidade laboral: quando questionados se já fizeram uma greve, mais de 80% dos trabalhadores portugueses afirmam nunca o ter feito. Não por acaso, este padrão tem levado a que, com a excepção da administração pública, se tenha verificado uma diminuição acentuada do número de greves, combinada com uma segmentação crescente dos sectores onde ocorrem (metade das greves são na indústria transformadora). Ainda que seja avisado ter algumas precauções quanto à comparabilidade dos dados europeus, este contexto explica que, quando analisados os dias de trabalho perdidos por conflito laboral, Portugal apresente dos valores mais baixos da União Europeia.

Contudo, como ficou demonstrado mais uma vez na sexta-feira, a aparente baixa relevância dos sindicatos no mundo laboral coexiste com uma muito significativa capacidade de mobilização política do movimento sindical. Enquanto a conflitualidade laboral não é vista como a melhor forma de superar os problemas no mundo do trabalho, a contestação política de base sindical tem uma grande capacidade de mobilização de massas.

A manifestação da CGTP é um exemplo paradigmático: não dependeu de convocação de greves, nem assentou em reivindicações do tipo laboral. A resolução que convocava a manifestação apontava para um "mudar de rumo: mais emprego, salários e direitos". Um programa político que, ao mesmo tempo que implica uma mudança radical, não passa de um enunciar vago de princípios. Aliás, no que é mais um paradoxo, a CGTP tem revelado uma capacidade de mobilização superior em torno de programas políticos amplos do que quando o faz em torno de reivindicações concretas. Basta recordar que quer a nova lei de bases da segurança social, quer o novo código do trabalho, foram muito criticados pela CGTP mas não foram alvo de manifestações populares tão intensas.

Este tipo de afirmação do movimento sindical é arriscado. Ao mesmo tempo que desvaloriza o papel dos sindicatos na defesa concreta dos direitos laborais, politiza a sua acção a níveis que, aumentando a sua capacidade de mobilização, circunscrevem-na a uma base de recrutamento estanque. Independentemente do número de manifestantes que esteve presente em Lisboa, a politização da mobilização sindical restringe este movimento a uma contestação de base política, com efeitos perversos para a afirmação sindical. Aliás, Ulisses Garrido e Carlos Trindade, dois dirigentes não-comunistas da CGTP, chamavam a atenção há meses num artigo no Público para os riscos de uma afirmação sindical baseada num "activismo radical de fracos resultados" e da necessidade da "vida sindical obter sucessos, de infundir confiança aos trabalhadores através da resolução dos seus problemas concretos", (...) "acordando soluções, compromissos, entendimentos".

Dá-se o caso de que, com o aproximar de várias eleições, se intensificará a mobilização sindical através de um activismo radical. Terá esta estratégia resultados? Do ponto de vista eleitoral, certamente que sim. Tendo em conta que os bons resultados eleitorais dependem mais da capacidade de mobilizar o próprio campo do que de captar votos noutros partidos, os partidos que cavalgam esta contestação não deixarão de beneficiar da transformação de movimentações sindicais em mobilização política.

Será isto bom para a promoção de um movimento sindical autónomo em Portugal, apostado na negociação? Claramente não. Mas convém perceber que a contestação a que assistimos, sendo resultado imediato da crise económica e social, tem raízes bem mais profundas. Entre estas, a convergência entre o acantonamento de tutela política da CGTP e o desenvolvimento de um clima anti-sindical, em parte fruto de uma confrangedora ausência de estratégia sobre o papel dos sindicatos em Portugal da parte do PS. Na verdade, nada de significativo está a mudar no mundo sindical português. Estão sim a cristalizar-se tendências de trinta anos que limitam a busca de soluções negociadas para a regulação da economia política portuguesa.

publicado no Diário Económico.

sábado, março 14, 2009

Conflitualidade laboral ou política?

Seria expectável que num contexto de aproximação de eleições e de acentuar da crise económica e social, a contestação organizada tendesse a aumentar. Será que é isto que vai acontecer em Portugal durante este ano?

É sabido que não só apresentamos níveis de conflitualidade (medidos pelo número de greves) comparativamente baixos em termos europeus, como se tem verificado uma tendência de acentuada descida. Contudo, há indícios de que a baixa conflitualidade laboral coexiste com níveis elevados de contestação política de base sindical.

A manifestação de ontem é um exemplo de mobilização política do movimento sindical sem uma componente visível de conflitualidade laboral. Não houve convocação de greves, nem as reivindicações que tipicamente lhes estão associadas. É, aliás, provável que, quando forem apurados os dias de trabalho perdidos, fiquemos bem longe dos 200 mil manifestantes de que fala a CGTP.

Este tipo de afirmação da CGTP é problemática: por um lado é difícil manter a conflitualidade política a níveis elevados durante um período alargado de tempo sem qualquer tipo de reivindicação, para além de um radical “mudar de rumo”; por outro circunscreve a mobilização a uma contestação política que acantona o movimento sindical.

O próximo ano pode vir a caracterizar-se pela mobilização impressiva do movimento sindical, contudo, é duvidoso que esta vá para além da base política estanque na qual, com consequências muito negativas para o país, assenta o sindicalismo em Portugal.

publicado no DN.

terça-feira, março 10, 2009

Três anos, dois mandatos

Ainda que só tenham passado três anos do mandato de Cavaco Silva como Presidente da República, é possível dividi-lo em dois períodos distintos. Um em que a cooperação estratégica foi a nota dominante e um outro em que se assistiu a um arrefecimento das relações institucionais com o Executivo e, acima de tudo, com o Parlamento.

Numa primeira fase do mandato, o ponto de convergência entre Cavaco Silva e José Sócrates foi a disciplina orçamental. O objectivo da cooperação era claro: reforçar a capacidade política e institucional do Governo para equilibrar as contas públicas e levar a cabo reformas estruturais, improváveis de alcançar sem cooperação entre Belém e São Bento. Mesmo num contexto de maioria absoluta, teria sido bem mais difícil para o Governo aprovar o factor de sustentabilidade na segurança social, reorganizar o parque escolar, introduzir a escola a tempo inteiro ou fazer convergir os regimes de segurança social e eliminar os sub-sistemas de saúde sem o respaldo de Cavaco Silva.

No entretanto, a cooperação estratégica, ainda que não tendo sido varrida para debaixo do tapete, foi perdendo preponderância. O efeito combinado da sucessão de notícias que visam a credibilidade de José Sócrates, com a eleição de Ferreira Leite (a "boa moeda" próxima de Cavaco Silva) para a direcção do PSD e com a chegada da crise internacional alterou o contexto político, transformando lentamente o papel que o Presidente tinha definido para si próprio e colocando em causa as boas relações institucionais. Sem consolidação orçamental como tema hegemónico da política portuguesa, o Presidente formatado pelas finanças públicas tem tido dificuldade em encontrar um discurso político para além do défice, que seja sensível ao novo contexto económico e social. A falta de sintonia entre Belém e São Bento na resposta às manifestações domésticas da crise é, aliás, preocupante, tendo em conta que são hoje necessários níveis de cooperação institucional e estabilidade política bem mais intensos do que os requeridos pela consolidação orçamental. A incapacidade de reinvenção dos termos da cooperação estratégica tem sido a marca dos últimos meses e uma séria ameaça à capacidade de enfrentarmos a crise.

Resta por isso saber se, num ano com três eleições, Cavaco Silva se afastará progressivamente do Governo ou se, pelo contrário, procurará reinventar os termos da cooperação estratégica. Se a primeira opção representaria uma capitulação aos que ambicionam ver a tutela política da oposição a ser exercida desde Belém, algo a que Cavaco Silva tem sabido resistir, a segunda traria manifestos benefícios para o país e seria também instrumental para a sua reeleição.

O tema da reeleição é, aliás, um bom observatório do que se pode passar no próximo ano. Ao contrário dos presidentes anteriores, Cavaco Silva não tem conseguido alargar significativamente a sua base ideológica inicial. A sucessão de vetos políticos em temas que se prendem com a qualidade da democracia (ex. o veto à lei da responsabilidade civil extra-contratual do Estado) e a sua afirmação conservadora nos temas dos costumes (da oposição à lei do divórcio ao anúncio de discordância em relação ao casamento homossexual) têm limitado claramente a sua afirmação à esquerda.

Num momento em que a predisposição do eleitorado para votar à esquerda é manifesta e em que o centro gravitacional da política se deslocou para o reforço das políticas públicas no combate à crise económica e social, a rigidez de Cavaco Silva pode torná-lo no primeiro Presidente a não ter a reeleição garantida.

A menos que Cavaco Silva não pretenda concorrer a um segundo mandato, Presidente e José Sócrates estão por isso condenados a entenderem-se. Ninguém compreenderia que se somasse instabilidade política e institucional à recessão económica e ao desemprego, pelo que num aspecto os interesses de Presidente e primeiro-ministro convergem. Para ambos, da capacidade de cavalgarem a estabilidade política depende a reeleição. Resta saber até que ponto os portugueses vão valorizar a estabilidade e se os dois principais protagonistas portugueses serão capazes de esquecer as divergências e regressar à cooperação. O facto de os seus interesses individuais e os nossos interesses colectivos coincidirem é capaz de ser uma ajuda importante.

publicado no Diário Económico.

segunda-feira, março 09, 2009

Da cooperação ao arrefecimento

Os três anos do mandato de Cavaco Silva podem ser divididos em dois períodos: um de cooperação estratégica com o Governo e outro de arrefecimento das relações institucionais.
Inicialmente, o ponto de intersecção entre Governo e Presidência foi a consolidação orçamental. Nesse contexto, o papel do Presidente era claro: reforçar a capacidade política do Governo para equilibrar as contas públicas e levar a cabo reformas impopulares.
O efeito combinado da sucessão de notícias que visam a credibilidade de José Sócrates, a eleição de Ferreira Leite (a “boa moeda” próxima de Cavaco Silva) para a direcção do PSD e a chegada da crise internacional veio alterar o papel do P.R. e a sua relação com o Governo.
Numa altura em que a disciplina das contas públicas foi secundarizada, Belém e São Bento ainda não encontraram um novo ponto de sintonia. O que não deixa de ser paradoxal, tendo em que conta que as respostas às manifestações domésticas da crise requerem níveis de cooperação bem mais intensos do que qualquer dos desafios do passado recente.
Resta saber se, no próximo ano, Cavaco Silva se afastará mais do executivo – cedendo à tentação a que tem sabido resistir de tutelar a oposição – ou se se assistirá a uma reaproximação, da qual o País beneficiaria e da qual depende também a sua reeleição.
publicado no DN.

terça-feira, março 03, 2009

Olhar para a frente

Há uma asserção que nos diz que o resultado das eleições legislativas depende da avaliação retrospectiva que é feita. Quando se escolhe o Governo avalia-se o que se passou e só em parte se escolhe o programa político para o próximo ciclo.

Não por acaso, tirando a excepção Santana Lopes, nunca um primeiro-ministro perdeu eleições legislativas em Portugal. A posição de primeiro-ministro candidato à reeleição tende a dar, por si só, um capital que serve para formatar os termos do debate. Será este o caso das próximas eleições legislativas? Bastará a José Sócrates para garantir a reeleição pedir aos portugueses que olhem para trás, projectando o futuro? Há sinais manifestos que tal não será suficiente.

Como tem sido repetido, a crise que enfrentamos é importada. Este facto inviabiliza uma responsabilização directa do Governo pelas suas manifestações domésticas. Contudo, a dimensão da crise é de tal modo avassaladora que tende a limpar os históricos políticos domésticos. Perante uma crise desta dimensão, o que os eleitores vão querer saber não é tanto o que foi feito até aqui, mas, sim, o que os projectos políticos em competição pretendem fazer no futuro. As próximas eleições não assentarão por isso, como tenderia a acontecer num contexto normal, essencialmente numa avaliação da actual governação anterior às respostas de emergência à crise, mas, sim, no que será sugerido como nova narrativa para o tempo novo que agora começa.

O tema da governabilidade é um bom observatório dos dilemas que o PS enfrenta. Ninguém questiona que somar instabilidade política à instabilidade económica e social é a última coisa que o país precisa. Mas como é que se transforma esta necessidade num discurso político mobilizador? Tanto mais que estamos perante um quadro de distribuição de intenção de votos atípico, que ameaça reconfigurar o espectro partidário.

Ao contrário do que acontecia, não estamos perante uma bipolarização pura. Como demonstra a última sondagem do Semanário Económico, tem-se consolidado a existência de três blocos. Um bloco à direita que, desde as europeias de 2005, tem dificuldade em ultrapassar os 35%, apresentando apenas flutuações internas entre PSD e CDS; um bloco à esquerda com intenções de voto em redor dos 20%, mas revelando uma tendência de crescimento (nesta sondagem, BE e PCP juntos têm 24.6%); e o PS com uma diferença de cerca de 10% para o segundo partido mais votado e a cerca de 5 pontos percentuais da maioria absoluta. Perante este contexto, o PS tem de fazer três coisas ao mesmo tempo, que ameaçam ser contraditórias: mobilizar o seu próprio campo eleitoral (aspecto decisivo para ganhar eleições); garantir que a direita se mantém fixa em redor dos 35%; e estancar as perdas à esquerda.

O caminho que foi consolidado no Congresso do PS assenta em dois argumentos: o PS como referencial de estabilidade e José Sócrates, de facto, único candidato a primeiro-ministro nas próximas eleições (até porque os partidos à direita aparentam ter como objectivo apenas retirar a maioria absoluta ao PS); "malhar" nos partidos à esquerda dos socialistas para estancar o seu crescimento eleitoral.

Enquanto o argumento da governabilidade e estabilidade serve para conter a direita, a ostracização dos partidos à esquerda visa desmobilizar o voto de eleitores tradicionalmente socialistas no BE e no PCP. Este caminho assenta num equilíbrio de filigrana.

Desde logo porque o que justifica hoje uma maioria absoluta não é a memória recente da instabilidade com Santana Lopes. O que está em jogo não é uma avaliação do candidato incumbente, mas, sim uma projecção de uma situação de ingovernabilidade futura, quando o que os eleitores hoje têm presente é a experiência recente de uma legislatura inteira de maioria absoluta. Depois, porque se os ataques ao BE e à sua repulsa compulsiva em relação ao poder são eficazes na mobilização do campo socialista, a verdade é que é duvidoso que, por si só, sirvam para recuperar o voto de protesto de eleitores tradicionalmente PS.

Se a isto somarmos que dificilmente as eleições se podem transformar numa avaliação das reformas dos últimos anos, parece-me incontornável que o aspecto decisivo será a capacidade de tornar a estabilidade política uma necessidade do futuro e, acima de tudo, uma discussão sobre quem tem melhores respostas para enfrentar a crise. Uma crise tão diferente que o histórico recente tenderá a ser apagado. Espera-se, por isso, que os partidos sejam capazes de olhar para a frente. Serão?

publicado no Diário Económico.

domingo, março 01, 2009

Entrevista ao Jornal Sol

É co-redactor da moção de José Sócrates. Não seria mais clarificador que cada tendência do PS assumisse em moção a sua visão do futuro?

- A discussão que esteve por detrás da moção foi viva, animada e participada e foi possível expor diversos pontos de vista. Para um partido que está no poder é importante conseguir a síntese desses pontos de vista.

Não me parece que o fraccionamento fortalecesse o PS neste momento, até porque não é essa a tradição.

- Seria mau para o partido?

- Poderia ser artificial. Nas questões essenciais há uma grande convergência. No início de um novo ciclo é importante que saibamos valorizar os pontos de convergência, em vez de potenciar a divergência.

- Neste momento o PS tem um grave problema que não vai ficar resolvido no Congresso-.

- Essa questão chama-se Manuel Alegre. Não concebo um PS sem Alegre, que faz parte da identidade do PS. Espero que também ele não se conceba sem o PS. É preciso grande abertura e disponibilidade de ambos os lados.

- Gostaria que Alegre participasse no Congresso?

- Sim. É muito melhor que esse debate ocorra dentro do partido do que de fora para dentro. Julgo que tem ido a quase todos os congressos.

- Alegre não votou na eleição para secretário-geral...

- A abstenção é um direito. Mas é um sinal que ele dá e e preciso encontrar uma forma de contrariar esses sinais. A sua saída do PS seria um erro com consequências para si próprio, seria um epifenómeno. Para o PS, não são claras as consequências. Já se percebeu que Alegre vale menos internamente do que fora do partido. Do ponto de vista da competição eleitoral pura, a sua saída seria mais perigosa para o BE do que para o PS.

- A ala esquerda do PS contenta-se com a proposta de casamento gay e a subida de Impostos para os ricos?

- A discussão de direitos, liberdades e garantias não deve ser suspensa pela crise económica. Agora, os níveis de desigualdade obrigam-nos a passar para o combate ao conjunto das desigualdades, mudando o padrão de especialização da nossa economia, aumentando qualificações e utilizando os mecanismos fiscais.

Precisamos de introduzir a progressividade das deduções com despesas sociais, taxar mais os que ganham muitíssimo...

- O que é ganhar muitíssimo?

- Quem ganha 15 mil euros por mês não deve estar no mesmo escalão dos que ganham 4 mil. É preciso alargar os escalões.

- O Governo de Guterres não teve coragem para o fazer; o argumento era de que os mais ricos fugiriam de Portugal.

- O PS foi tímido na reforma fiscal de Guterres. Esse risco não se coloca, não é um perigo radical. O Presidente da República já defendeu isso e Fernando Ulrich também. É preciso também taxar mais-valias que não são taxadas, como algumas mobiliárias, e encontrar forma de limitar os benefícios que alguns recebem além da remuneração-base.

- Como pode o PS reconquistar os votos perdidos e tentar alcançar a maioria absoluta?

- Se quiser ir buscar mais votos tem que perceber os motivos que afastaram essas pessoas do PS e mostrar que as suas soluções são as melhores. Não é com irritação, com belicismos. Há demasiada linguagem bélica na política.

- Os portugueses gostam de governos musculados.

- Sim, gostam, mas não é muito elogioso para a cultura democrática do país.

- É por causa dos exemplos dos políticos que acontecem situações como a censura no Carnaval de Torres Vedras e a apreensão de livros em Braga?

- Temos uma cultura de liberdades, direitos e garantias muito frágil. E, por isso, gostava de ver mais vezes os responsáveis políticos e governamentais a ter uma atitude pedagógica e a condenar veementemente estas situações. Como não acontece, isso tem como consequência que uma cultura autoritária, que ainda persiste no país, se sinta escudada.

- Como viu o convite do PS ao Partido Socialista Unido da Venezuela, de Hugo Chávez?

- Faz todo o sentido que Portugal, enquanto Estado, aprofunde as relações comerciais e diplomáticas com a Venezuela e com a China, mas há uma diferença entre as relações internacionais do Estado e as de um partido político, mesmo que seja o partido no poder. Estas devem organizar-se com base nas solidariedades ideológicas e políticas e não vejo nenhum solidariedade política e ideológica com o regime chinês, nem com o da Venezuela. Do mesmo modo que a China não é o meu referencial de socialismo, a Venezuela também não é o meu referencial de democracia. Portanto, acho mal que tenham sido convidados.