sexta-feira, julho 31, 2009

Um choque social

Numa altura em que as ideologias contam pouco, a crise económica e a competição dos partidos à esquerda trouxeram as prioridades sociais para o topo da agenda do PS. O realismo fez com que o lugar que antes era ocupado pelo “choque tecnológico” esteja, hoje, preenchido por um “choque social”.
A este propósito, podemos distinguir dois tipos de compromissos no programa eleitoral.
Um primeiro que tem a ver com o aprofundamento do que foi feito na anterior legislatura (ex. a diferenciação positiva das carreiras contributivas mais longas e a densificação da rede de creches com horários alargados). Um segundo que se prende com inovações que, ao mesmo tempo que podem ter um enorme alcance social, serão financeira e administrativamente muito exigentes. É disto exemplo paradigmático a prestação para as famílias trabalhadoras com filhos, que se encontram em risco de pobreza.
É uma medida ambiciosa, dirigida ao problema social mais premente: os trabalhadores de baixos salários. Simultaneamente, é o mais forte dos incentivos à activação dos beneficiários da rede de mínimos sociais. A enunciação programática é ainda vaga, mas, a ser levada à letra, o que está em causa é, de facto, uma espécie de majoração do rendimento mínimo para quem está no mercado de trabalho. Enquanto o RSI tem como referencial a pensão social (187 euros), a linha de pobreza encontra-se aproximadamente nos 400 euros. Estamos, por isso, não apenas a falar de um universo de agregados familiares muito grande (todas as famílias que tendo adultos no mercado de trabalho têm rendimentos per capita inferiores à linha de pobreza), como, potencialmente, de prestações diferenciais com montantes muito significativos.
A diferença estará nos detalhes no desenho da medida, mas o seu alcance será equivalente ao do rendimento mínimo garantido e do complemento solidário para idosos. Resta saber se haverá recursos suficientes para o fazer de um modo abrangente.

publicado no i como comentário ao programa do PS para as áreas sociais.

quinta-feira, julho 30, 2009

Desacantonar a política fiscal

Nos últimos anos, Portugal desenvolveu uma rede de mínimos sociais à imagem dos Estados Providência consolidados. Ainda que a pobreza continue a ser a questão social predominante, o caminho passa agora por aumentar a eficácia e a eficiência das políticas existentes. Mas este sucesso relativo aumenta a visibilidade de problemas sociais persistentes. À cabeça a pobreza entre os trabalhadores. Com uma mediana salarial que pouco ultrapassa os 700 euros, há uma classe média literalmente ensanduichada entre as famílias que beneficiam de mínimos sociais e aquelas que têm recursos suficientes. Responder a este grupo é a prioridade do próximo ciclo político.
Acontece que esta resposta já não pode ser dada apenas através da protecção social. Assenta num esforço de densificação dos serviços de apoio às famílias, adequando-os às necessidades de quem está no mercado de trabalho, mas implica, essencialmente, que a política fiscal e a política de emprego assumam maiores responsabilidade sociais. Este movimento requer uma ruptura, desde logo com o património político do PS: a política fiscal não pode continuar acantonada, assumindo escassamente o seu papel redistributivo e solidário. É preciso redistribuir mais e redistribuir mais a favor dos que estão no mercado de trabalho mas vivem uma dupla precariedade: de rendimentos e contratual. Portugal precisa, naturalmente, de modernizar o seu padrão de especialização económico, mas não o pode fazer se não for capaz de fazê-lo solidariamente. Espero por isso que, no programa eleitoral do PS, a política fiscal seja também um instrumento de política social.

publicado no i, como resposta à pergunta: "o que deveria ser o programa de governo?"

terça-feira, julho 28, 2009

Prometer Empregos

Para quem está no poder, um novo ciclo assenta na avaliação combinada do que foi feito com o que de novo se propõe.

Não por acaso, o PSD, assim que o PS apresentou as suas linha programáticas, veio chamar a atenção para as promessas não cumpridas nos últimos cinco anos. E, nesta legislatura, promessas não cumpridas é sinónimo de 150 mil postos de trabalho.

Sejamos claros: não fazem sentido promessas quantificadas em torno de objectivos cuja concretização não depende exclusivamente da acção governativa. Este é o caso da criação de emprego. Estando descartada a possibilidade de criar emprego público, o mais que o Estado pode fazer - e está longe de ser pouco - é criar condições que estimulem o emprego privado e intervir nos factores que alteram o padrão de especialização da nossa economia. Ora esta intervenção pública só produz efeitos no médio prazo e a sua avaliação não é compaginável com metas quantificadas.

Dito isto, o que é que aconteceu, de facto, aos 150 mil postos de trabalho? A resposta é simples: não fora a crise internacional, teríamos de facto assistido à criação líquida de 150 mil novos empregos durante esta legislatura. Mais, estes empregos representariam também uma transformação na estrutura de qualificações dos novos empregos. Teve o Governo responsabilidade nestes resultados? A resposta é sim. A discussão sobre este tema tem assentado num equívoco: estando a taxa de desemprego a subir, o Governo falhou automaticamente a promessa de criar postos de trabalho.

Acontece que o facto de terem sido destruídos 200 mil postos de trabalho não é necessariamente muito grave se forem criados outros tantos. É nisso que consiste a criação líquida de emprego, o total criado menos o total destruído. E o que se passou nos últimos anos é simples: entre o 1º trimestre de 2005 e o trimestre homólogo de 2008, a criação líquida de postos de trabalho foi de 97 mil, mesmo num contexto em que o emprego no sector público diminuiu. O que correspondeu a um aumento da população activa de 111 mil. O problema foi o que se passou após o 3º trimestre de 2008, quando fomos confrontados com as manifestações domésticas do "abalozinho" (para utilizar a memorável definição de Ferreira Leite para a actual crise mundial). A partir de então, o ritmo de destruição de emprego foi tal que deixou de ser compensado pela criação de novos empregos.

Ainda assim, se olharmos apenas para a criação líquida de emprego de indivíduos com habilitações equivalentes ao secundário e superior, temos uma surpresa. Mesmo face à crise, há hoje um saldo positivo superior a 200 mil postos de trabalho. Ou seja, o país está a perder muitos empregos, mas está a conseguir criar empregos novos mais qualificados. Mesmo no meio da crise, estamos a assistir a alguma modernização do mercado de trabalho.

Moral da história: nenhum Governo deve prometer o que não depende apenas de si cumprir, pois, mesmo se tiver algum sucesso, não poderá recolher os louros.

publicado no Diário Económico.

segunda-feira, julho 27, 2009

Uma história de sucesso

As nossas sociedades vivem sob o espectro do envelhecimento.

Não deixa de ser paradoxal que o que durante muito tempo foi uma ambição quase utópica, uma vez concretizado, se tenha transformado na questão social dominante.

O efeito conjugado da melhoria dos cuidados de saúde, do ‘baby-boom' do pós-guerra e da actual baixa da natalidade, criou um mundo em que, pela primeira vez, o número de pessoas com mais de 65 anos superará o de crianças com menos de cinco. Esta é uma história de sucesso, mas torná-la sustentável passou a ser um desafio difícil de enfrentar.

Portugal encontra-se, a este como a muitos outros respeitos, numa situação particularmente preocupante: combina traços de modernidade (é um dos países mais envelhecidos) com marcas do passado persistentes. O que faz com que estejamos a envelhecer mais depressa do que a enriquecer, muito por força de taxas de emprego elevadas, mas assentes em baixos salários, o que tem levado a um declínio da fertilidade. Precisamos, por isso, de continuar a aumentar a qualidade de vida dos nossos idosos - libertando-os da pobreza e garantindo melhores cuidados de saúde - mas temos de criar condições para que seja possível compatibilizar trabalho com a possibilidade de ter filhos. A escola a tempo inteiro e a universalização da rede de pré-escolar foram passos decisivos nesse sentido. O desafio agora é, por exemplo, aumentar a taxa de cobertura de creches, dos actuais 30% para um valor que permita de facto compensar o envelhecimento da população com o nascimento de mais crianças.

texto publicado no Diário Económico como comentário a este estudo.

sexta-feira, julho 24, 2009

Os problemas da visibilidade

Uma das reformas eternamente reclamadas pelos partidos na oposição, mas logo abandonada uma vez chegados ao poder, é a do Parlamento. Esta verdade com lastro foi colocada em causa nesta legislatura. Foi aprovado um novo regimento, por vontade de uma maioria absoluta, e São Bento ganhou uma nova centralidade no debate político. Nada disto aconteceu sem que velhos problemas se tornassem mais visíveis e que novos fossem revelados.
Apesar de, por força da maioria absoluta, os equilíbrios parlamentares não terem sido determinantes para a governabilidade, a disputa política no Parlamento foi muito visível. Este contexto expôs o primeiro-ministro a um nível de sindicância que não encontra paralelo na democracia portuguesa, mas revelou que a nossa cultura política não está ainda preparada para debates sistemáticos que vão para além de velhos vícios. Para que os debates plenários combinem visibilidade com eficácia têm de se centrar mais nas políticas e menos na política, o que implicará uma participação mais activa dos ministros.
Mas esta legislatura fica também marcada por um nível de conflitualidade inédito entre Belém e Parlamento. Os 11 vetos de Cavaco Silva – que comparam com 5 de Soares e 4 de Sampaio – foram todos a Leis da Assembleia, muitas delas assentes em maiorias mais amplas do que a governamental. Nunca saberemos se a escolha do Parlamento como objecto de dissensão foi uma forma de enfrentar a maioria governamental através de um elo com pior imagem pública (o Parlamento), ou se foi apenas acaso. Mas em política não costuma haver coincidências.
artigo publicado no DN a propósito dos trabalhos parlamentares durante esta legislatura.

terça-feira, julho 21, 2009

A classe média portuguesa

A classe média anda na boca de toda a gente. Com o aproximar das eleições, os partidos escolheram-na como prioridade social.

Há razões objectivas para que as prioridades políticas tenham mudado, mas há também dificuldades em se definir do que é que se fala quando se fala de classe média e para se encontrar respostas políticas para este grupo social.

Se é hoje possível evoluir da prioridade à pobreza para as respostas sociais às classes médias é porque o país se dotou, com assinalável atraso, de uma rede de mínimos sociais dirigida às formas mais severas de pobreza. Com o Rendimento Mínimo e com o Complemento Solidário para Idosos foi possível aumentar a selectividade das respostas sociais e assegurar um mínimo de recursos materiais a todos os cidadãos, tornando-nos numa sociedade mais decente. Os dados do INE divulgados a semana passada provam-no: uma diminuição da taxa de pobreza entre os idosos (22%) de 4 pontos percentuais em relação ao ano anterior e 7 pontos percentuais se compararmos com 2004. Estes resultados revelam que abandonar a opção de fazer convergir as pensões mínimas com o s.m.n. e optar por conceder um complemento, com a linha de pobreza como referencial, apenas aos pensionistas com pensões baixas em condição de necessidade, revelou-se uma estratégia eficaz.

Mas o sucesso relativo no combate à pobreza serve também para revelar um falhanço: uma fatia muito significativa das famílias portuguesas está fora da rede de apoios sociais de combate à pobreza, mas não deixa por isso de ser pobre, muito por força dos baixos salários dos adultos. São o que chamei aqui há umas semanas - recorrendo à denominação de um estudo elaborado pela TESE - de "famílias sanduíche".

Frequentemente, quando se fala de classes médias em Portugal julgamos estar a falar de agregados com rendimentos em redor dos 2 mil euros mensais. Convém, no entanto, ter presente que a mediana salarial no sector privado encontra-se em redor dos 700 euros, ou seja, 50% da população portuguesa ganha até 700 euros (valor que aumenta se considerarmos o emprego no sector público). Ora são estas famílias que compõem o grosso da classe média. Para aliviar a sua situação material não podemos recorrer às políticas de protecção social, ao mesmo tempo que não podemos ficar à espera que o padrão de especialização da economia portuguesa se modernize o suficiente para permitir ganhos salariais significativos. Qual é o caminho que resta? Recorrer a instrumentos fiscais que redistribuam a favor das "famílias sanduíche", naturalmente retirando benefícios a quem tem rendimentos bem acima da mediana. Pode ser impopular dizê-lo, mas se nada for feito, estamos condenados a ter um conjunto crescente de famílias para as quais a ausência de expectativas sociais se transformará inevitavelmente numa desafectação face ao sistema político.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, julho 14, 2009

Excesso de licenciados?

Numa altura em que há 38.891 licenciados desempregados, o aumento sucessivo do número de vagas no ensino superior foi recebido com uma vaga de críticas.

O argumento é que, por um lado, está a ser feito um investimento, quer do lado da oferta formativa, quer do lado das famílias, que depois não tem correspondência e, por outro, a democratização do acesso a alguns cursos coloca em causa a qualidade da prestação de serviços em determinadas profissões. Há contudo outra face do mesmo tema: fará sentido num país com os nossos défices de qualificação abrandar o acesso ao ensino superior apenas porque há desempregados licenciados?

A resposta é não. Portugal precisa de mais licenciados e uma qualificação do ensino superior, sendo importante para a competitividade do país, continua a ser essencialmente uma mais valia para quem a detém.

Apesar do desemprego entre licenciados ter crescido e se ter aproximado do número de vagas que abre todos os anos no ensino superior, ter uma licenciatura continua a ser importante para entrar no mercado de trabalho e, não menos importante, é uma garantia de que se terá um emprego com mais estabilidade, melhor remuneração e com maiores possibilidades de progressão na carreira do que um não licenciado. Ao que acresce que um licenciado, quando fica desempregado, tende a ficar menos tempo sem trabalho do que um não licenciado.

Nada disto impede que, para quem investiu numa licenciatura, o desemprego ou um emprego desajustado às suas qualificações gere um sério problema de gestão de expectativas. Ainda assim, por muito que isso frustre as expectativas dos próprios, colectivamente temos a ganhar se mesmo profissões que tradicionalmente não requerem licenciaturas forem desempenhadas por licenciados. É uma situação difícil de gerir para quem a vive, mas, por exemplo, um taxista licenciado em direito desempenhará melhor a sua profissão do que um taxista com problemas de literacia ou incapacidade de falar línguas estrangeiras e ter uma licenciatura ajudará, certamente, a que tenha expectativas realistas de mobilidade profissional.

O problema não é haver muitos juristas, é continuarmos a pensar que todos os juristas vão ser advogados ou juízes.

Nada disto nos deve fazer esquecer, contudo, que há um problema de qualidade da oferta no ensino superior. O desemprego entre os licenciados concentra-se em áreas de estudo específicas, mas, essencialmente, em algumas instituições cuja qualidade coloca sérios problemas de empregabilidade. É por isso que o principal problema do ensino superior não é hoje o excesso de vagas, mas sim a qualidade de alguma da oferta. O que serve para recordar que Portugal precisa de mais licenciados e de continuar a aumentar o número de jovens que todos os anos entra no ensino superior, desde que essas entradas se concentrem em instituições que asseguram qualidade na formação.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, julho 07, 2009

Aumentar impostos

Com o aproximar das eleições multiplicam-se as promessas de que os impostos não irão aumentar.

A semana passada, o ministro Teixeira dos Santos afirmou que, passada a crise, o regresso à consolidação orçamental não será feito à custa de uma maior carga fiscal e não devem faltar muitos dias até que Ferreira Leite declare que com ela os impostos não vão baixar, mas, também, não vão subir. Em Portugal, os impostos têm mau nome e os políticos tratam o assunto com pinças.

Curiosamente, Portugal está longe de ser um dos países da UE com a carga fiscal mais elevada. De acordo com um relatório da Comissão, há 14 Estados membros com um peso dos impostos no PIB superior ao nosso. Enquanto a média europeia é de 39,8%, Portugal apresenta um valor de 36,8% - bem longe dos 48,7% da Dinamarca ou dos 48,3% da Suécia e inferior aos restantes países da Europa do Sul com quem normalmente comparamos (Espanha e Itália). Ou seja, não é por pagarmos muitos impostos que reagimos epidermicamente a possíveis aumentos dos impostos. Com uma carga fiscal bem superior à nossa e com a taxa de imposto para o escalão mais elevado de rendimento que varia entre os 59% na Dinamarca e os 56.5% na Suécia, é duvidoso que, entre os nossos parceiros escandinavos, pagar impostos seja uma actividade de tão má fama como por cá. Quais são então as razões para que em Portugal esteja tão disseminada a ideia de que pagamos muitos impostos? Muito provavelmente o que faz toda a diferença é a percepção de que, nuns casos, a capacidade redistributiva do sistema fiscal é grande, noutros ela revela-se menos eficaz e assenta apenas no esforço contributivo de alguns. Em Portugal, estamos abaixo da média europeia em carga fiscal, no entanto, temos um nível de desigualdades que nos envergonha colectivamente. E a verdade é que são os países com uma maior carga fiscal, mas, também, com maior progressividade nos seus sistemas fiscais, aqueles onde as desigualdades são menores. Seremos capazes de romper este bloqueio? Aparentemente não, já que vivemos armadilhados numa teia onde os políticos temem falar dos impostos como instrumento de promoção de justiça social. Ora, conjuntamente com as políticas de mínimos sociais, a utilização do sistema fiscal é uma das formas mais eficazes de compensar desigualdades de rendimentos excessivas, formadas no mercado.

Como recordava Constantino Sakkelarides em entrevista ao "i", a propósito do financiamento do SNS, "a pergunta é: está disposto a pagar mais? Eu, pessoalmente, digo: só com garantias. A classe média tem vontade de pagar desde que seja bem servida. (...) não se pode pedir mais dinheiro às pessoas sem dar nada em troca". Romper o bloqueio social em que vivemos implica dar algo em troca, designadamente à metade dos trabalhadores portugueses que ganha no máximo 730 euros por mês. O que tem necessariamente de passar por pedir aos que ganham muitíssimo que paguem e que paguem um pouco mais.

publicado no Diário Económico.