sábado, novembro 28, 2009

Juntos, contra

Durante muito tempo ouvimos vozes de todo o espectro político a insurgirem-se contra a ausência de protecção no desemprego de muitos portugueses. A indignação é justa, mas choca com os limites ao financiamento dos apoios sociais. Com um sistema baseado numa lógica de seguro social, a protecção depende dos descontos prévios e da massa salarial sobre a qual incidem. Subverter esta lógica pode ser muito popular, mas é, no mínimo, financeiramente irresponsável.
O problema é tanto mais sério quanto Portugal combina níveis de participação no mercado de trabalho muito elevados com uma grande precariedade do emprego – que encontra poucos paralelos na Europa. Acontece que à precariedade não estão apenas associados níveis remuneratórios mais baixos e menor segurança no emprego, mas também, frequentemente, ausência de protecção no desemprego.
A única forma viável de proteger mais os portugueses que estão no desemprego é encontrar novas formas de financiar a segurança social, alargando a base de incidência contributiva, designadamente considerando rendimentos não salariais, mas que são de facto contrapartidas do trabalho. É também isso que está em causa com o novo código contributivo. Perante isto, a direita opõe-se porque o novo código onera os empregadores e a esquerda porque legitima a precariedade. Juntos, votam contra. Mas não tardará que, juntos, venham clamar por mais protecção no desemprego. A mesma protecção que agora se recusaram a financiar.
publicado hoje no i (na edição impressa, para além duma gralha que muda o sentido - e à qual sou alheio -, o texto vem atribuído à Laurinda Alves

sexta-feira, novembro 27, 2009

O Gulag pode ser aqui

Há umas semanas, uma deputada do PCP revelava desconhecer o Gulag. A entrevista deu que falar, mas a polémica parecia deslocada. Nada de mais errado. Esta semana, Jerónimo de Sousa mostrou que, sendo o Gulag uma sinistra recordação, o seu espírito se mantém vivo. A propósito das escutas ao primeiro-ministro - e, peço desculpa, o tema é, para o caso, completamente irrelevante -, o secretário-geral do PCP defendeu que "seria muito grave que quaisquer formalismos legais determinassem a anulação definitiva de matéria de prova" e que se devia procurar manter "essas provas para processos futuros". Não vá alguém, algum dia, tergiversar, nada como ter na gaveta alguma coisa que possa servir para incriminar. Já os "formalismos legais" são apenas o que nos protege dos julgamentos populares, uma espécie de antecâmara do Gulag. Mas ainda a procissão ia no adro e Aguiar-Branco - paradoxalmente o melhor ministro da Justiça dos últimos anos, prejudicado pelo contexto em que exerceu o cargo - afirmava que "ninguém é obrigado a aceitar um cargo político" mas que, ao assumi-lo, "aceita o escrutínio das suas conversas". Ou seja, com a responsabilidade política vem também uma compressão intolerável dos direitos individuais.
Das últimas semanas guardo uma esperança: que tudo o que se tem dito seja apenas resultado temporário de uma profunda discordância de Sócrates - politicamente legítima e justificável - que está a obnubilar os espíritos, mesmo os mais livres.
publicado hoje no i.

terça-feira, novembro 24, 2009

Muito barulho para nada

Cinco anos passados, muita contestação depois e muito desgaste para as várias partes, os indícios de que a avaliação de professores regressará ao ponto onde se encontrava em 2005 são manifestos.

Se assim for, a conclusão só pode ser uma: muito barulho para nada.

Convém recordar algumas coisas. Em primeiro lugar, os professores estiveram em guerra por causa da avaliação, mas, muito provavelmente, esta foi um pretexto para mitigar a verdadeira causa da luta: a divisão da carreira docente, com a criação do "professor titular" (o que colocava fim às progressões automáticas, limitando o acesso aos níveis salariais mais elevados, e confrontava a natureza horizontal da carreira). Depois, os professores são a maior classe profissional da administração pública e mais de metade dos cerca de 140 mil está nos escalões mais bem remunerados - a massa salarial consome 80% do orçamento, correspondendo a 3% do PIB; ao que acresce que, se nada for feito, o ritmo de crescimento da despesa com salários consumirá todos os recursos disponíveis para a política educativa.

Neste contexto, o governo tem pouca margem de manobra negocial, por força dos sucessivos recuos (com a assinatura do memorando de entendimento e com as alterações mais recentes no estatuto da carreira docente), e essencialmente porque é minoritário.

Há hoje basicamente três cenários. Um optimista, que assenta no pressuposto que os professores já perceberam que a avaliação é um adquirido, com uma categoria na carreira onde não chegam todos e estão empenhados em tornar exequível o modelo de avaliação já em prática. Um segundo em que é criada a ilusão de que tudo irá mudar, ou seja, são criadas expectativas nas escolas, que depois, caso sejam defraudadas, farão regressar a contestação, mas de modo ainda mais intenso. Finalmente, o cenário que parece em vias de se concretizar: o governo precisa tanto de um acordo que vai ceder em questões inegociáveis.

A questão será, por isso, saber até onde é que vai o recuo. Todos os partidos defendem o acesso ao topo da carreira sem restrições. Resta saber se as negociações em curso acabarão apenas com o nome "professor titular" ou se, mudando o nome, se mantém o acesso limitado ao último escalão da carreira. Esta é a primeira linha de fronteira, mas há outras: o prolongamento dos horários e as aulas de substituição.

No fim, fica uma certeza. Cinco anos passados, muitos erros na gestão política e na aplicação do modelo de avaliação depois, preparamo-nos para voltar ao lugar em que nos encontrávamos em 2005, mas em piores condições. Ou seja, a carreira de professor continuará a beneficiar de um estatuto excepcional, o que limita os recursos financeiros para o investimento na escola pública. A inabilidade do anterior governo é, em parte, causa desta situação. Agora, como se não bastasse, todos os partidos preparam-se para assumir a sua quota parte de responsabilidade.

publicado no Diário Económico.

sábado, novembro 21, 2009

Ausência de caminho?

Desemprego acima dos 500 mil, dívida incontrolável e o défice voltou a ser excessivo. No horizonte, crescimentos medíocres do produto e, pelo menos até 2012, não há sinais de que o emprego recupere. Como se não bastasse, assim que se vislumbrar uma tímida retoma, regressará a pressão para a consolidação orçamental.

Não são bons tempos para se estar vivo - economicamente falando, claro. Mas uma coisa os últimos meses também nos disseram: o cenário poderia ter sido bem pior. As previsões feitas para a economia portuguesa têm sido sistematicamente revistas em alta. Sendo verdade que as estratégias anticíclicas revelaram alguma eficiência, foram também insuficientes. Moral da história: sem o pacote de estímulos, a recessão teria sido bem mais profunda e o desemprego ainda pior.

Foi quebrado o ciclo vicioso que nos ameaçava, mas os riscos estão longe de terem sido eliminados. Que fazer agora? Estamos perante um dilema dramático: não temos recursos para manter a economia alimentada pelo consumo público, mas não há condições para não o fazer.

Há três caminhos possíveis, todos muito exíguos: diminuir a despesa (sendo que a que resta é tremendamente rígida); aumentar impostos (não se vê quais) e estimular a economia, continuando a aumentar a despesa. Provavelmente, é preciso fazer de tudo um pouco. Mas também é necessário que nos libertemos dos que, enquanto se entretêm a repetir que o cenário é negro, não conseguem vislumbrar nenhum caminho.

publicado no i.

sexta-feira, novembro 20, 2009

Exemplos

Em 1770, em Boston, os soldados britânicos dispararam sobre vários populares que se manifestavam contra a possibilidade de o parlamento britânico regular de facto as trocas comerciais e taxar as colónias da América do Norte. No que ficaria conhecido como "Massacre de Boston", morreram cinco civis. O episódio tem uma grande carga simbólica e costuma ser visto como tendo espoletado o processo que levou à declaração de independência dos EUA.

Há, contudo, outro lado da mesma história. Num clima de grande indignação popular, os soldados britânicos são levados a julgamento. Têm, contudo, dificuldade em encontrar quem os defenda. Acabam por conseguir que John Adams aceite ser seu advogado. Adams, que tinha assistido ao massacre, era um empenhado militante independentista, e viria a ser vice-presidente de George Washington, a quem sucederia como presidente.

Ao contrário de todos os outros advogados, que recusaram a defesa com medo que isso os descredibilizasse perante os seus compatriotas independentistas, Adams aceitou. Ao fazê-lo, pôs à frente do seu interesse político um princípio inegociável: o direito a uma justiça justa e isenta.

Este episódio é relatado numa notável série da HBO sobre John Adams, magnificamente interpretado por Paul Giamatti. É uma história exemplar e bem actual.

publicado no i.

terça-feira, novembro 17, 2009

Cepticismo, por favor

Sempre que há um caso judicial que envolve política, inicia-se um ‘ping-pong’ de acusações entre políticos que se indignam com a ligeireza com que a justiça trata os direitos e as garantias e operadores judiciais que se sentem constrangidos na sua autonomia.

No entanto, há uma classe que tende a passar entre os pingos da chuva e cujas responsabilidades na percepção da falência da justiça em Portugal estão bem longe de ser irrelevantes: os jornalistas.

A este propósito, Paulo Pena, que é jornalista da Visão, escreveu um texto corajoso, que reafirma princípios que deveriam ser elementares, mas que parecem estar esquecidos em muitas redacções.

Paulo Pena começa por recordar que as grandes investigações envolvendo políticos acabam por redundar em fiasco, mas deixam também um subtexto - "os políticos não se deixam apanhar, ou fazem leis para se safar, ou condicionam os intrépidos magistrados". As consequências são inescapáveis, acrescento eu. Um político que se veja envolvido numa investigação criminal passou a ser, de facto, culpado.

O que fazem os media nestes casos? Levam a cabo investigações jornalísticas autónomas? São actores empenhados na busca da verdade?

Paulo Pena sugere que aquilo a que assistimos em Portugal não são verdadeiras investigações jornalísticas, mas, sim, "reportagens sobre investigações". A diferença é que, neste último caso, o relato jornalístico depende de uma fuga de informação da investigação oficial, após a qual o jornalista "oferece" à sua fonte um espaço para a difusão de alegações ou insinuações, sem qualquer responsabilização pública. Este método não é, em si, errado. Contudo, tem muitos riscos associados. À cabeça, ao jornalista é dada a conhecer apenas uma parte da investigação, pelo que a possibilidade de ser manipulado pela fonte é grande. Não é preciso ter grande memória para saber que os exemplos recentes de manipulação de jornalistas pelas fontes, em casos mediáticos, são muitos.

Como conviver com estes riscos? O texto responde com clareza: com cepticismo. "Os jornalistas devem investigar, e não fazer de caixa de ressonância; os investigadores judiciais devem ser avaliados pelos resultados das suas investigações e não pela comoção pública que geram as suas quase-descobertas; e os políticos devem ser julgados pelas suas acções e não pela sensação de verosimilhança que gostamos de associar entre uma discordância política e uma falha ética." Ora o que parece ser a atitude dominante nas redacções perante investigações judiciais é falta de cepticismo, o que ameaça tornar os jornalistas não apenas "coniventes" como "acéfalos" perante a informação que lhes é oferecida. O que recorda que jornalistas que revelem cepticismo, abandonando o conforto do cinismo, podem contribuir mais do que se pensa para a credibilização da justiça, logo da nossa democracia.

publicado no Diário Económico.

sábado, novembro 14, 2009

Sabemos como começa

Primeiro aceitamos que a investigação criminal vá assentando cada vez mais em escutas, e aparentemente quase só em escutas; depois toleramos que o seu conteúdo seja plantado na comunicação social; por fim discutimos o teor do que não deveria existir, sem que questionemos o modo com estamos colectivamente a deixar que se minem os alicerces do Estado de direito. Como se não bastasse, admitimos com normalidade que um titular de um órgão de soberania seja, em última análise, alvo de espionagem política durante uns meses. Para culminar, parece ter chegado o dia em que os deputados se juntarão para aprovar uma lei que obrigará de facto o suspeito de um crime a provar a sua inocência, em lugar de obrigar a acusação a provar a sua culpa. Pelo caminho deitámos fora princípios sacrossantos para uma vida em comum numa sociedade decente: o direito à privacidade e a importância das garantias consagradas no processo penal, designadamente a presunção de inocência. Agora toca a quem ocupa transitoriamente o cargo de primeiro-ministro, mas, se não somos intransigentes neste caso, haverá um dia em que poderá passar-se connosco. E nesse dia não teremos a lei do nosso lado, e já não haverá Estado de direito para nos defender.

A tudo isto se chama recuo civilizacional. Sabemos, na verdade, como começa, mas temo que saibamos também como vai acabar. Até certa fase podemos ir resistindo, com mais ou menos energia, mas chegará um momento em que teremos de viver recatadamente com a derrota.

publicado hoje no i.

sexta-feira, novembro 13, 2009

O dia em que o Correio da Manhã venceu

Estava escrito. Um dia o modo como o "Correio da Manhã" olha para a sociedade tornar-se-ia dominante. Temo que esse dia tenha chegado. O contexto estava maduro: a sensação de que a corrupção está a aumentar combinada com um sentimento de impunidade. Mas, ainda assim, as instituições pareciam imunes aos julgamentos na praça pública alimentados por violações grosseiras ao segredo de justiça; do mesmo modo que partidos políticos não hesitavam na defesa das regras básicas de uma sociedade decente - o primado da lei, a importância dos procedimentos formais para nos proteger a todos e a presunção da inocência.

Infelizmente, chegou o dia em que o consenso que nos permitia resistir à fúria justicialista foi posto em causa. Manuela Ferreira Leite, no Parlamento, não resistiu a afirmar que "as dúvidas políticas não se resolvem adiando investigações e destruindo provas", para logo depois dizer que o primeiro- -ministro devia esclarecimentos ao país sobre este caso. Eu não sei, nem quero saber, que "provas" são essas de que Ferreira Leite fala. Desde logo porque, num país civilizado, as escutas deveriam ser o último recurso para a investigação, em situação alguma deveriam ser passadas aos media e todos devíamos ter a consciência de que a maior exigência nas escutas aos órgãos de soberania visa proteger não quem ocupa transitoriamente os cargos mas, sim, a segurança do Estado, da governação e, custa-me dizê-lo, hoje em dia, também a autonomia da política face à justiça.

publicado no i.

terça-feira, novembro 10, 2009

A latrina

A corrupção está no meio de nós e mina os alicerces da nossa democracia, ouve-se dizer. Temo que não seja assim.

Há, de facto, uma percepção generalizada de que a corrupção está a crescer, mas o que está a minar o regime é a impunidade de que parecem gozar corruptos e corruptores.

Sobre a "face oculta" sabemos ainda muito pouco - na verdade, o que sabemos resulta de informações que a investigação partilhou, através de fugas seleccionadas para os media -, mas podemos exigir que, por uma vez, uma investigação se concentre na produção de prova, em lugar de procurar produzir nos media a prova que tende, mais tarde, a não conseguir apresentar em tribunal. Aguentará o país mais um caso de grande mediatismo, mas que depois revela uma mão-cheia de nada? Claramente não.

É que a repetirmos o que aconteceu com outros casos, igualmente mediáticos, permaneceremos no pior dos mundos: a apropriação da coisa pública pelo interesse privado, incapacidade da justiça para investigar com eficácia e do jornalismo para respeitar princípios elementares de uma sociedade decente. O país em que vivemos hoje combina, cada vez mais, uma política latino-americana, com jornalismo de sarjeta e justiça de vão-de-escada. Como é que podemos sair daqui?

A crer nos últimos dias, são apontados dois caminhos. Por um lado, o dos actores políticos, que insistem na solução preguiçosa de tipificar novos crimes (à cabeça o enriquecimento ilícito) e que competem pela veemência com que o defendem; por outro, o da coligação entre mau jornalismo e péssimas investigações, para quem atropelar direitos fundamentais e os formalismos em que tem de assentar um Estado baseado no primado da lei são questões menores.

Ambos os caminhos procuram resolver o problema da corrupção empurrando-nos ainda mais no declive cívico em que já nos encontramos.

Dêem-se as voltas que se queira dar, o enriquecimento ilícito implica uma inversão do ónus da prova e ao aceitarmos que é possível alguém ser escutado em matérias que não têm rigorosamente nada a ver com um processo em investigação e, mais grave, essas escutas serem tranquilamente divulgadas nos media, estamos a dar mais umas machadadas nuns quantos princípios sacrossantos do Estado de direito, ao mesmo tempo que condicionamos judicialmente a autonomia da esfera política.

Na verdade, para sairmos da latrina onde estamos presos, precisamos de investigações discretas, blindadas às fugas e capazes de produzir, de facto, prova. Mas, precisamos, essencialmente, que o processo de tomada de decisões nas políticas públicas seja transparente, baseado em critérios partilhados e densificado por um enquadramento legal estável e previsível. Infelizmente, temos todos os dias violações ao Estado de direito, mas temos também quotidianamente decisões políticas opacas e sobre as quais pouco sabemos.

publicado no Diário Económico.

sábado, novembro 07, 2009

A sombra do passado

O debate deste final de semana revelou um governo novo com um programa novo, mas que herdou do executivo anterior velhos problemas. À cabeça o processo de avaliação dos professores. O tema está, em teoria, bem longe de ser uma prioridade nacional; acontece que se transformou de facto numa prioridade política e será um teste decisivo à capacidade de Sócrates para governar em minoria.
A equação não é fácil de resolver. De um lado estão escolas (que precisam de estabilidade) e professores já avaliados (que não querem abdicar do percurso que já fizeram); de outro, partidos políticos e sindicatos, que querem manter a chama da luta política acesa e não abrem mão da suspensão do processo. No meio está o governo, que viu diminuídas as suas condições políticas e perdeu grande parte da margem de manobra negocial que detinha (primeiro, no memorando de entendimento com os sindicatos em Abril de 2008 e depois com a revisão do estatuto da carreira, aprovada neste Verão com escasso impacto).
Os sinais sobre qual vai ser a saída para o impasse são contraditórios: a nova ministra afirmou que "tanto no sistema de avaliação como no estatuto, não há pontos que não se possam mudar", enquanto o ministro dos Assuntos Parlamentares acena com uma encruzilhada jurídica, que em última análise pode bloquear politicamente o país. Há, contudo, uma certeza: o modo como será resolvida esta equação marcará a identidade do novo governo, o que não é compaginável com indefinições e contradições.
publicado no i.

sexta-feira, novembro 06, 2009

Por detrás das falas mansas

Em Novembro de 1989, os alemães de leste foram finalmente autorizados a passarem a fronteira com Berlim ocidental. Vinte anos passados, há bons motivos para comemorar o simbolismo dos primeiros passos de uma Europa unida e livre. Mas, num remoto país da Europa, há quem pense que não. Em nota enviada à Lusa, o PCP vem recordar-nos que “as 'comemorações de regime' a que assistimos são uma operação de reescrita da história e de branqueamento do capitalismo". Afinal, “o mundo está hoje mais injusto, mais desigual, mais perigoso e menos democrático" e, claro, a solução dos problemas da humanidade "não está nas contra-revoluções que há 20 anos varreram o Leste europeu", mas sim na lealdade aos ideais da "grande Revolução de Outubro".
Podemos tomar estas declarações como pitorescas, mas, na verdade, torna-se difícil. Desde logo porque, nas sociedades abertas, as liberdades civis e políticas são inegociáveis e não compagináveis com nenhum “mas”; depois, o próprio PCP já tinha encerrado este capítulo de sinistra nostalgia estalinista e é, no mínimo, trágico que se entretenha agora a reabri-lo. No fim, fica a certeza que, por detrás das falas mansas do “comunismo de sociedade recreativa”, se esconde um partido envolvido num crescendo de ortodoxia que não encontra paralelo no mundo ocidental. Afinal, o enlevo com a Coreia do Norte de Bernardino Soares ou o apagamento dos Gulags da deputada Rita Rato não são notas dissonantes ocasionais, mas, sim, o elemento central da partitura pela qual se rege hoje o PCP.
publicado hoje no i.

terça-feira, novembro 03, 2009

A vaga de fundo

Há um ano e meio, os barões do PSD uniram-se para que Ferreira Leite avançasse para a liderança.

A vaga de fundo, é hoje sabido, ofereceu uma curtíssima vitória nas eleições directas à "boa moeda". Depois, a "escolhida" teve um resultado eleitoral em tudo idêntico ao da "má moeda", cinco anos antes, com Santana Lopes. Agora, os mesmíssimos barões empenharam-se em revisitar o equívoco, lançando um apelo para que, desta feita, fosse Marcelo Rebelo de Sousa o voluntário para se deixar imolar na fogueira que os barões, depois, se encarregariam de ir mantendo acesa. A repetição da história revela, antes de mais, que o partido não conseguiu aprender com os erros recentes, mas também que há um conjunto de pressupostos sobre o PSD que a realidade se tem encarregado de desmentir.

Desde logo a tese de que haveria uma dissonância entre a base militante e eleitoral do PSD. Durante as lideranças de Santana e de Menezes, era dito que o principal obstáculo à afirmação do PSD era uma clivagem profunda entre a dinâmica interna ao aparelho do partido - que escolhia líderes populistas - e o eleitorado tradicional do partido - supostamente em sintonia com as elites social-democráticas. O teste eleitoral de Outubro veio provar que as más ‘performances' eleitorais não dependiam do valor facial da moeda escolhida para liderar.

Depois, o carácter relativamente inconsequente das vagas de fundo. Como se viu nas últimas directas, não há uma correspondência entre a notoriedade dos apoiantes e os votos nos candidatos. Ferreira Leite fazia quase o pleno entre os barões, mas no fim teve apenas 37% dos votos dos militantes, contra 31% de Passos e 29% de Santana. Estes resultados não podem deixar de indiciar uma profunda clivagem entre base militante e barões e mesmo entre aquela e quadros intermédios do partido. Há um PSD militante que se tem vindo a distanciar do partido que aparentemente representa os militantes no espaço público.

Ora, a pior forma de ultrapassar estes bloqueios à afirmação do PSD é evitar discutir o que quer que seja - desde logo uma estratégia diferenciadora da do PS - e entronizar um líder através de um unanimismo artificial. Engana-se quem pense que os problemas se resolvem através da notoriedade mediática desta ou daquela personalidade. No passado, o PSD foi capaz de se unir através do poder, hoje, distante do poder executivo, o único cimento possível para a afirmação nacional do partido é programático. É isto que faz com que o problema não seja a balcanização do partido, mas sim o alinhamento das facções radicar num misto de ódios pessoais com querelas cuja origem se torna difícil de determinar. A próxima liderança do partido ou se afirma na política e nas políticas ou o PSD teimará em não se reencontrar consigo próprio.

publicado no Diário Económico.