terça-feira, maio 26, 2009

O espelho do BPN

Há seis meses, escrevi aqui que tinha reservas quanto à criação da comissão de inquérito ao BPN. Acima de tudo, porque, por um lado, podia estar apenas a ser aberto um circo mediático e, por outro, porque os trabalhos da comissão não se centrariam nos motivos invocados para a sua constituição - a avaliação do papel da supervisão e as razões para a nacionalização do BPN -, mas, evoluiriam para uma apreciação dos actos de gestão praticados no banco. Ora, se assim fosse, estaríamos perante uma sobreposição entre a investigação que deveria decorrer na justiça e a actividade parlamentar. Além do mais, os deputados colocar-se-iam numa posição desigual face à do Ministério Público, pois não só os depoentes não seriam obrigados a dizer o que quer que fosse, como os deputados não tinham poderes especiais de investigação.

Seis meses passados, é evidente que os trabalhos da comissão se têm centrado na gestão do BPN e têm servido para revelar que a realidade do funcionamento do banco ultrapassava as mais delirantes suposições. Contabilidade paralela, balcões virtuais, ilegalidade puras, negócios ruinosos, desconhecimento pelos accionistas do que era feito na gestão, temos ouvido descrições de tudo. Essencialmente, tem sido espantosa a candura com que alguns dos depoentes descrevem o seu papel em todo o processo. Sobre muitos dos que têm ido depor, fica, até agora, uma dúvida: ou estamos perante campeões da ingenuidade ou vigaristas encartados. Ao contrário do que eu esperava, se bem que se tenha desviado do que era o seu propósito inicial, a comissão de inquérito tem sido muito útil na revelação do caos que imperava no BPN. No entanto, o sucesso da comissão de inquérito ao BPN, apesar de exemplar das virtudes do parlamentarismo, não é motivo para satisfação. Pelo contrário, ele revela, uma vez mais, o falhanço do sistema de Justiça em Portugal.

A menos que algo de surpreendente se esteja a passar na discrição da investigação (algo improvável tendo em conta o tratamento de que é alvo o segredo de justiça entre nós), há sinais de que, em seis meses, se progrediu mais numa comissão de inquérito do que no processo que decorre na Justiça. Agora, o mínimo que se pode esperar é que a Justiça seja capaz de aproveitar o trabalho parlamentar e produzir prova a partir dos factos relatados na comissão.

Neste contexto, aquilo a que vamos assistir hoje com o depoimento de Oliveira e Costa não vai ser certamente bonito. Acareações em público, em que se trocam acusações mútuas, podem servir para ajudar a apurar as responsabilidade do que ocorreu no BPN, mas seria preferível que elas ocorressem no recato dos depoimentos prestados no Ministério Público. Mas convém ter cuidado, porque pedir à Justiça que faça o seu trabalho e em tempo útil é capaz de ser interpretado como uma pressão sobre o sistema judicial.
publicado no Diário Económico.

quarta-feira, maio 20, 2009

O contributo da bipolarização

A diferença entre as intenções de voto no BE nas sondagens e o resultado das últimas legislativas é, hoje, suficiente para impedir o PS de repetir a maioria absoluta. Contudo, bastaria que aqueles que votaram no PS e que agora se mostram inclinados a votar BE, repetissem o voto, para que o PS voltasse a ter uma maioria absoluta. O objectivo não é tão difícil de concretizar como parece.
Antes de mais, porque o eleitorado do BE é o menos consolidado de todos os partidos. Não apenas porque tradicionalmente os potenciais eleitores bloquistas revelam grande propensão para a abstenção, mas, também, porque são eleitores que nunca votaram BE.
Este facto, aliás, serve para consolidar um paradoxo. Enquanto entre a direcção do PS e do BE há, relativamente a políticas centrais, diferenças inegociáveis, as diferenças de posicionamento político entre os eleitores flutuantes dos dois partidos são bem menores.
Face a este cenário, o BE escolheu o Governo como principal (e único) adversário político e o PS tem apontado artilharia pesada ao BE. O problema é que este jogo de ataques mútuos tem tido como consequência empurrar para o BE os eleitores oscilantes entre os dois partidos.
Mas, por si só, a aproximação das eleições contraria qualquer estratégia política. O inevitável crescimento do PSD – feito no essencial à custa da descida do CDS – traz de novo uma questão que pairará como um espectro sobre os eleitores de esquerda: preferem um Governo de Ferreira Leite ou um novo Governo de Sócrates? Como o BE não tem resposta para esta questão e mostra-se indisponível para fazer parte da solução de governabilidade após as legislativas, é natural que muitos dos que hoje manifestam o seu protesto através do BE, se mostrem de novo disponíveis para votar, de modo útil, a favor da governabilidade à esquerda.

comentário à relação entre PS e BE quando se aproximam as eleições, publicado hoje no Diário Económico.

terça-feira, maio 19, 2009

Sair, ficando

A decisão “saio, mas fico” de Manuel Alegre acabou por ser a melhor solução para todos. Para Alegre, que mantém a autonomia face a Sócrates e para Sócrates, que não fica mais fragilizado à esquerda.

Até porque Alegre, depois das críticas substantivas e do distanciamento em questões centrais da Governação (ex. o código do trabalho), sairia descredibilizado se aceitasse integrar as listas ao Parlamento, ao mesmo tempo que essa decisão de pouco serviria a Sócrates. Mas para além da personalização, há questões mais relevantes suscitadas pela relação tensa entre Alegre e o PS.

Pese embora as sondagens dos últimos anos revelarem uma pulverização eleitoral sem paralelo nos últimos anos, as eleições europeias encarregar-se-ão de fazer regressar a bipolarização. Uma bipolarização que, no essencial, não assentará em transferências de votos entre campos políticos mas que ocorrerá, por um lado, entre partidos de direita e, por outro, entre partidos de esquerda. Quando chegarem as legislativas, o que vai estar de facto em causa é uma escolha entre uma vitória do PS e uma vitória do PSD - cenário tanto mais credível quanto maior for a proximidade entre os dois nas europeias.

Na sexta-feira, Alegre afirmou que "não entrará em nenhum combate para derrotar o PS e que estará sempre ao lado dos socialistas numa luta eleitoral contra a direita". Ora, esta declaração não apenas sugere que Alegre se envolverá na escolha do próximo Governo, como, pelo peso político que, de facto, adquiriu, ajudará a definir os termos em que ela ocorrerá, condicionando a linha discursiva do PS para a campanha eleitoral. Com o PSD com resultados em redor dos vinte e pouco por cento e com um peso igual ao dos votos somados no PCP e no BE, o PS podia fazer uma campanha em que "malhava" de modo igual à esquerda e à direita. A partir do momento que o PSD começa a concentrar os votos da direita, o PS precisa de mobilizar os votos do seu campo político e apostar de novo na bipolarização.

Nesse exercício, Sócrates beneficia da competição directa com Ferreira Leite, na medida em que é o único que é, de facto, percepcionado como sendo candidato a primeiro-ministro. Mas não basta. É preciso que os portugueses, e nomeadamente os que votaram PS mas que agora se sentem menos ou nada inclinados para voltar a fazê-lo, por um lado, sintam que o regresso do PSD ao poder é um mal maior do que um novo Governo PS e, por outro, que os socialistas se revelem capazes de apresentar um programa de resposta à crise económica e social, para além das soluções de emergência que têm dominado a agenda. Manuel Alegre, simpatizemos ou não com o seu percurso político e com as suas opções recentes, pode ser determinante para o PS concretizar este duplo objectivo. O que só serve para provar que, por vezes, estar fora acaba mesmo por ser a melhor forma de ter mais peso interno.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, maio 12, 2009

Já desistiu

Os 35 anos de democracia revelam que Portugal tem um problema sério de governabilidade.

Nenhum Governo de coligação resistiu uma legislatura inteira e apenas um Governo de maioria relativa durou quatro anos. Aliás, dois anos parece ser o limite máximo de vida para uma coligação em Portugal (foi o que durou a AD, o Bloco Central e a coligação Durão/Portas). Já em maioria relativa, apenas António Guterres conseguiu cumprir uma legislatura. Contudo, a resistência do primeiro governo Guterres é explicável por um crescimento do PIB de 4%, pela criação de 400 mil empregos e por se tratar do início de um ciclo político.

Vale por isso a pena ter presente o nosso passado político quando pensamos nos desafios do próximo ciclo. Se num contexto económico bem menos adverso, nenhum Governo sem maioria absoluta resistiu à turbulência política, podemos bem imaginar o que se irá passar com o PIB a variar entre o crescimento negativo e o medíocre e com o desemprego a rondar os dois dígitos. Não tenhamos dúvidas, se tivermos um Governo que não dure uma legislatura inteira, demoraremos ainda mais a sair da crise e fá-lo-emos em condições bem mais precárias. E pensar que, perante um cenário de grandes dificuldades, os partidos portugueses vão ter o assomo de responsabilidade que não tiveram no passado e se vão entender é ter uma visão lírica da política nacional.

Este fim-de-semana, Sócrates e Ferreira Leite fixaram, em duas entrevistas, a doutrina de cada um sobre as condições de governabilidade. As respostas são bem diferentes: para Sócrates, a melhor forma de garantir a estabilidade é uma maioria absoluta do PS; para Ferreira Leite, não haver uma maioria absoluta não quer dizer que haja uma crise política, até porque o que é preciso é que a oposição seja responsável.

O que a declaração de Ferreira Leite esconde é que o PSD incorporou a ideia de que não pode vencer e desistiu de lutar pela maioria absoluta. O problema é que essa desistência diminui a propensão para a bipolarização e, logo, as condições de governabilidade futuras do país. A percepção de que o PSD não pode ganhar tem ajudado à dispersão de voto à esquerda e à criação de um terceiro bloco, com cerca de 20% das intenções de voto, mas que se exclui de qualquer solução de governabilidade. Se o PSD não compete, de facto, pela vitória com o PS, os custos de votar à esquerda como forma de protesto são aparentemente baixos.Tendo em conta que o país vai precisar de um Governo que dure uma legislatura e que PS e PSD estão relativamente próximos em questões centrais, o melhor cenário é um Governo de maioria absoluta do PS ou do PSD, até porque a alternativa é uma pulverização eleitoral, que só produzirá instabilidade política. Que Ferreira Leite já tenha desistido deste objectivo é, por isso, incompreensível para o PSD e prejudicial para o país.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, maio 05, 2009

O Pai Natal dos partidos

A democracia, como os almoços, não é grátis. Tem custos, alguns deles bem elevados. Como não há democracia sem partidos, desde logo é preciso pagar o funcionamento destes. Não há, a este propósito, pólvora por inventar: ou os partidos são financiados através de uma subvenção pública, assente no esforço contributivo de todos, ou, em alternativa, recolhem fundos privados.
Num país com as nossas tradições, o financiamento público é a melhor forma de, por um lado, impedir a captura do interesse público, mediado pelos partidos, pelos interesses privados financiadores e, por outro, de dificultar a corrupção e a apropriação ilícita por parte de intermediários de fundos destinados aos partidos. Em todos os partidos se contam histórias suficientemente verosímeis que atestam estes dois fenómenos.
Nos últimos anos, deram-se passos correctos: avançou-se para o financiamento com uma subvenção pública que parecia ser suficiente; aumentou-se a fiscalização e a consolidação das contas partidárias e, não menos importante, tudo com o objectivo de economizar nos gastos com campanhas.
Contudo, a semana passada, os deputados reuniram-se para, de surpresa e após todas as audições públicas, darem um passo ao arrepio do que havia sido feito nos últimos anos: aprovaram um aumento em mais de um milhão de euros do limite das entradas em dinheiro vivo nas contas dos partidos, sem necessidade de prestar contas. Ou seja, o que era um limite razoável para acomodar algumas contribuições de militantes e angariações de fundos pagas em numerário, subiu de um tecto de 22 mil euros para mais de 1 milhão de euros. Ao mesmo tempo que a subvenção pública se manteve inalterada, tendo inclusivamente sido aprovada uma derrogação da indexação ao IAS. Mais, ficámos a saber que os orçamentos para campanhas eleitorais vão também subir.
O que os deputados todos, com uma excepção, nos quiseram dizer, em memória do mártir, doador anónimo do CDS/PP, é claro: “que mil Jacintos Capelo Rego floresçam”. Doravante, os partidos voltam a poder ficcionar uma angariação de fundos como forma de dividir montantes não enquadráveis pela lei. Que a necessidade de regularizar as contas da Festa do Avante! – esse momento em que um número de beneméritos da área metropolitana de Lisboa se junta para celebrar a Revolução de Outubro fazendo oferendas em dinheiro vivo – seja invocada é, aliás, do domínio do anedotário nacional.
Bem sei que a expressão autismo foi banida do debate parlamentar. Mas, depois do que se passou na semana passada, e quando deviam estar a ser dados passos para consolidar o financiamento público, aumentar a prestação de contas e para conter os gastos com campanhas, autismo é a única forma de classificar o modo como os deputados lêem os sinais que os portugueses vão dando sobre os partidos portugueses. No fim, fica uma certeza. Para os partidos, Natal é mesmo quando os deputados querem.

publicado no Diário Económico.