terça-feira, junho 30, 2009

Famílias sanduíche

O número não surpreende, apenas revela uma realidade que se pressente: mais de metade das famílias portuguesas (57%) vive com menos de 900 euros por mês. Ao mesmo tempo, 30% tem rendimentos entre os 500 e os 900 euros. Os dados fazem parte de um estudo promovido pela ONG TESE e servem para confirmar que a pobreza persiste como a marca mais resistente da sociedade portuguesa.
Naturalmente que o retrato não é estático. Portugal tem hoje uma rede de mínimos sociais à imagem da existente nos países com Estados providência consolidados. Pese embora o ataque populista de que muitas dessas medidas foram alvo, com o rendimento mínimo, o complemento solidário para idosos ou a diferenciação nas prestações familiares, as formas mais severas de pobreza têm hoje resposta no contexto das políticas públicas. Claro que estas respostas serão sempre insuficientes, mas Portugal não precisa de criar novos instrumentos, precisa de aumentar a eficiência dos que já existem e de contaminar o conjunto das políticas com alguns dos princípios entretanto introduzidos (por exemplo, estender a condição de recursos como requisito para beneficiar de pensões com uma componente não contributiva).
Mas o estudo da TESE serve para revelar aquele que é, hoje, o principal estrangulamento da sociedade portuguesa: há um conjunto de famílias que beneficiando de recursos materiais que são suficientes para as excluírem do acesso às prestações sociais de combate à pobreza, têm contudo recursos insuficientes para fazer face às suas despesas e cumprir expectativas e aspirações naturais de vida. Essas famílias são adequadamente descritas como “famílias sanduíche”: estão fora da rede de apoios sociais de combate à pobreza, mas não deixam por isso de ser pobres.
Esta asfixia das classes médias baixas tem várias consequências. Com os fracos rendimentos não são só as famílias portuguesas que estão ensanduichadas, é a própria democracia. Sem classes médias cooptadas para o sistema, a democracia vive uma permanente crise de legitimidade. E não há cooptação possível quando as classes médias vivem maioritariamente com menos de 900 euros por mês e, não menos grave, com a percepção que as trajectórias de mobilidade social ascendente que, ainda assim, tiveram, não se reproduzirão nos seus filhos. Não por acaso, o estudo revela que 70% dos portugueses não confia nas instituições que nos governam.
Romper este ciclo de precariedade consolidada, ao qual se tem juntado um conjunto de rupturas recentes (desde logo o crescimento do desemprego), e com isso aliviar as classes médias baixas tem de ser o desafio do próximo ciclo político. O objectivo não pode apenas passar por continuar a responder às formas mais severas de pobreza, como revela este estudo, é urgente encontrar soluções para os que estando acima da linha de pobreza, não deixam por isso de ser pobres.

publicado no Diário Económico.

quarta-feira, junho 24, 2009

O nosso esqui

O surf está um pouco por todo o lado. Hoje, quer seja numa praia, quer num anúncio televisivo, é difícil não nos cruzarmos quotidianamente com uma prancha, que sugere invariavelmente uma ideia de liberdade.
Esta presença quase hegemónica do surf coexiste com uma desvalorização do papel económico do desporto. Apesar de não haver quem não valorize o papel do mar como alavanca de um novo modelo de desenvolvimento para o país, estamos muito longe de concretizar esse objectivo e de fazer do surf um aspecto central da associação entre ‘mar’ e a ‘marca Portugal’. O que é tanto mais estranho quanto o surf poderia estar para o turismo português como os desportos de neve estão para os Alpes suíços. O turismo de surf não é um turismo de massas, é sustentável e continuado, e um nicho de mercado sólido e em crescimento. E abundam pela Europa casos de desenvolvimento virtuoso de regiões inteiras, literalmente “puxadas” pelo esqui. Portugal tem um clima temperado, ondas de qualidade, surfáveis durante todo o ano, centralidade (quando comparado com outros destinos de surf) combinada com baixa ocupação das praias na época alta do surf (fora do Verão). O surf poderia ser o nosso esqui, mas, também, o novo golf.
Para que isso acontecesse era preciso que o surf fosse olhado não apenas como uma modalidade desportiva ou um estilo de vida, mas, também, como um bem económico com enorme potencial de expansão, de que o conjunto da sociedade beneficiaria. O que está longe de acontecer.
Publicado hoje no i (que hoje dedica duas páginas ao surf)

terça-feira, junho 23, 2009

Estes economistas

Há vários meses que na faculdade onde dou aulas está pintado numa parede uma inscrição que pergunta, “estes economistas, para quê?”.

Quando li o manifesto dos 28 foi essa a questão que me veio à cabeça. Na verdade, há um manifesto que eu, enquanto não-economista, esperava ver escrito. Um manifesto que reflectisse sobre o falhanço do mesmo saber técnico que agora é invocado para intervir politicamente na previsão do que aconteceu à economia mundial ou sobre a incapacidade de construir respostas políticas que prevenissem o descalabro. Por exemplo, não seria de esperar que se assistisse a um questionamento crítico do Pacto de Estabilidade que tantos entraves criou ao crescimento económico no espaço europeu?

Perante tantos motivos para mobilizar o espírito crítico, o grupo dos 28 propõe que, perante uma crise com uma extensão com poucos termos de comparação, o país pare para fazer uma reavaliação e que suspenda os investimentos públicos em grandes obras. Ora face à crise que vivemos, parar é um luxo que não nos é de facto permitido, como aliás revelam várias instâncias internacionais. Por todas, vale a pena recordar a opinião recente de um conjunto de peritos do FMI sobre a política orçamental adequada para responder à crise. Em primeiro lugar, os Governos devem assegurar que não há cortes nos programas já existentes por falta de recursos; em segundo lugar, os programas que haviam sido adiados ou interrompidos por falta de recursos ou por considerações macroeconómicas, devem recomeçar rapidamente; finalmente, tendo em conta que o recurso ao crédito por parte dos privados se tornou bem mais exigente, o Estado deve aumentar a sua participação nas parcerias público-privadas, de modo a assegurar que os projectos se realizam. O que, por sua vez, gerará emprego (uma urgência social e económica) e oportunidades de investimento privado. Ou seja, tudo exactamente ao contrário do que nos é proposto pelos 28. Uma segunda preocupação do manifesto remete para o risco de, com os investimentos programados - que aliás já foram revistos em baixa sucessivamente -, estarmos a estrangular o futuro da nossa economia. Como lembrava no seu ‘blog' Pedro Lains, esta perspectiva assenta num duplo equívoco. Por um lado, com a integração económica, Portugal não existe autonomamente, mas apenas como uma região pobre da Europa. Por outro, as regiões pobres das zonas ricas devem ser mal-comportadas financeiramente, como revelam vários exemplos de ‘catch-up' com sucesso. É por isso que, perante a crise, e tendo em conta o nosso carácter pobre e periférico, o que precisamos é de economistas que olhem para o futuro, não ficando presos às vias tradicionais que manifestamente falharam. Se essa reflexão vier de quem participou de modo mais ou menos activo nos falhanços dos últimos 35 anos, tanto melhor.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, junho 16, 2009

Um país paralisado

É natural que os eleitores rejeitem uma experiência política com a qual convivem no dia-a-dia. O voto de protesto nas europeias é prova disso.

Mas uma coisa é rejeitar o que se vivencia, outra bem mais difícil é rejeitar o que pode vir a existir. Quando José Sócrates foi eleito primeiro-ministro, com uma maioria absoluta que configurava um resultado inédito na história do PS, os portugueses estavam a rejeitar o Governo Durão/Portas e a instabilidade política com Santana Lopes. Os eleitores tinham experimentado um clima de instabilidade e valorizavam a estabilidade.

Essa opção repercutiu-se no voto. Hoje, com uma experiência de mais de quatro anos de maioria absoluta, a estabilidade é um adquirido e não se encontra entre os critérios mais relevantes para a decidir o voto. O lugar ocupado pela estabilidade na formação das preferências eleitorais nas últimas legislativas foi preenchido pelo desemprego. Em política, há poucas mensagens mais difíceis de fazer passar do que conferir importância ao que faz parte do nosso quotidiano. Mas uma coisa é certa, perante uma crise económica e social que não tem paralelo nas últimas décadas, precisaremos mais de estabilidade política no futuro imediato do que necessitámos nos últimos anos. Paradoxalmente, tudo indica que a instabilidade política está ao virar da esquina, quando mais ela era necessária.

O resultado das últimas europeias funcionou como anúncio do que poderá chegar. Não só nunca nenhum partido venceu eleições com um resultado tão baixo (se exceptuarmos as eleições atípicas de 1985, com o epifenómeno PRD), como estamos numa situação em que nenhum bloco político consegue, isoladamente ou em coligação, governar em maioria. Se por mera hipótese académica fosse necessário formar um Governo a partir dos resultados das europeias estaríamos perante uma permanente crise de legitimidade: ou porque o executivo não teria maioria absoluta ou porque não encontraria respaldo social (no caso de um Governo de direita com uma maioria de votos à esquerda).

Mas uma coisa são estes resultados, outra é a antecipação que os portugueses podem fazer do que poderão ser os cenários políticos futuros. A este propósito, a moção de censura que amanhã o CDS apresentará, e que terá o apoio do PSD, sendo uma versão extrema da acusação de falta de legitimidade política do executivo para Governar que surgiu na sequência das europeias, funciona como antevisão do país que poderemos ter daqui a um ano. E a última coisa que nos faltava acrescentar à crise era um país paralisado por uma crise de legitimidade política do Governo. Que seja sugerido que o país pare já, em Junho, quando não haverá novo executivo até Novembro, tem apenas uma virtude: antecipa o que pode ser a paisagem política no próximo ano.

publicado no Diário Económico

terça-feira, junho 09, 2009

O espectro da ingovernabilidade

Os 26% que o PS conquistou nestas eleições colocam o partido próximo dos seus mínimos históricos de 1985 e 1987 e representam, em votos expressos – menos de um milhão –, o resultado mais baixo do PS de sempre.

Contudo, ao contrário do que costuma ser regra, o decréscimo de um dos partidos de poder (no caso o PS), não ocorreu à custa do seu mais próximo competidor (no caso o PSD). O PS tem uma votação muito baixa, mas o PSD, ganhando, cresce pouco por relação às últimas eleições nacionais (teve 31%, quando com Santana tinha tido 28%). Isto enquanto o BE e o PCP somados ultrapassam largamente a melhor votação que o PCP alguma vez teve (18% em 1979 e 1983). A menos que algo de extraordinário ocorra até Setembro, nenhum partido terá uma maioria absoluta para governar.

Estamos perante um cenário de pulverização partidária, em que se consolidaram três blocos políticos. No entanto, não apenas nenhum destes blocos tem condições para governar sozinho (PSD e CDS, mesmo que coligados, estão ainda distantes da maioria absoluta), como, simultaneamente, as condições para que venham a coligar-se estão longe de estar reunidas (a título de exemplo, ainda este fim de semana, o BE reclamava a saída de Portugal da NATO, o que serve para recordar a profundidade das rupturas que o BE tem de fazer para se aproximar do espaço da governabilidade). Além do mais, se os resultados de ontem se repetissem em legislativas, a única coligação de dois partidos suficiente para formar uma maioria seria entre PS e PSD.

Não sabemos se com as europeias o que esteve em causa foi essencialmente a mobilização de voto de protesto face a um Governo que construiu a sua imagem com um discurso de confronto às corporações e que se revelou impotente para contrariar a crise económica e o crescimento do desemprego - e que com isso desbaratou o seu capital junto da esquerda sociológica - ou se, pelo contrário, estamos perante um novo ciclo político, em que o centro-direita inverte a tendência eleitoral recente. Mas uma coisa sabemos, a pulverização partidária, a somar à crise económica e social, e, em particular, o facto de PS e PSD terem resultados conjugados particularmente baixos - só superiores à percentagem alcançada em 1985, com o PRD - é um passo para a reconfiguração do espectro partidário português. Não vejo como essa reconfiguração possa ocorrer sem pôr em causa a governabilidade do país e sem contribuir para o aprofundamento da crise que vivemos.

No fim, fica uma dúvida: os eleitores expressaram o seu protesto mas, quando estiver em causa a governação do país, voltaremos à bipartidarização ou, pelo contrário, os três blocos, que vivem de costas voltadas, vieram para ficar?

publicado no Diário Económico.

Rupturas à esquerda

O resultado das europeias criou uma grande responsabilidade aos partidos de esquerda: criar condições de governabilidade a partir de uma maioria eleitoral. Não é fácil e implica várias rupturas.
O PS, depois de ter tido um resultado que é, em votos expressos, o mais baixo de sempre e em percentagem só ultrapassado pelos seus mínimos históricos de 1985 e 1987, precisa de reflectir sobre a narrativa política que desenvolveu nesta legislatura e sobre o modo como olha para esta crise.
Esta dupla reflexão implica que o PS não se limite a manter o rumo seguido, numa estratégia cega perante o que os portugueses pensam e insensível à dimensão da crise internacional.
Durante muito tempo, o sucesso do actual Governo foi atribuído ao modo como combatia os interesses corporativos. Os resultados eleitorais vêm revelar que, em democracia, não é possível reformar eficazmente sem estabelecer coligações sociais. Por exemplo, tomar o movimento sindical como adversário é impensável para um partido de centro-esquerda. Por outro lado, esta crise requer soluções que não sejam repetições do passado e obriga a que o centro-esquerda reflicta, de facto, sobre o seu papel na construção dos modelos de regulação que nos trouxeram até aqui.
Os partidos de extrema esquerda têm uma responsabilidade não menor. Com um resultado que supera os pontos mais altos do PC (em 1979), contraíram a obrigação de transformar voto de protesto em mudança efectiva. Para tal, precisam, antes de tudo, de abandonar a tradição de escolher o PS como adversário preferencial e recentrar as suas reivindicações programáticas (por exemplo, o absurdo de exigir a saída de Portugal da NATO).
Serão capazes? Acho muito difícil, como prova a experiência autárquica em Lisboa. Mas uma coisa é certa, os eleitores não perdoarão que o esforço não seja feito.
versão integral de um texto publicado hoje no Diário de Notícias.

terça-feira, junho 02, 2009

Um referendo nacional

Quando foi dado o tiro de partida para as eleições europeias, o Governo queria a todo o custo evitar transformar este acto eleitoral num referendo ao executivo.

Naturalmente, a oposição tinha o objectivo oposto. Aproveitar as europeias para castigar eleitoralmente o Governo, convidando os eleitores a mostrar um cartão amarelo ao PS. Este objectivo encontrava um contexto adequado nas dificuldades económicas e sociais e na contestação a José Sócrates.

Contudo, a partir de certa altura, o PS abandonou a sua linha inicial e passou ele próprio a querer fazer das europeias um referendo ao Governo e às oposições. Por estranho que possa parecer, a ideia aparenta não ter sido má. Se acreditarmos nos resultados das sondagens, pese embora a distância significativa face à maioria absoluta, esta mudança, consubstanciada na entrada de José Sócrates na campanha, coincide com uma recuperação das intenções de voto no PS. O que parece reflectir uma variável chave para o sucesso dos partidos de Governo neste tipo de eleições: a capacidade de mobilização do seu núcleo duro de eleitores.

Eleições de segunda ordem como as europeias são normalmente vistas pelos eleitores como uma boa oportunidade para penalizar os partidos no poder, com poucos custos para as condições de governabilidade. Em eleições deste tipo, votar noutro partido que não o maioritário pode ser uma opção racional para os eleitores descontentes com a governação mas não totalmente desafectados face ao espaço político do partido no poder. Até porque este voto de protesto, ao mesmo tempo que modera a arrogância própria de quem está no poder, pode obrigar os Governos a inflectirem a sua linha política, acomodando algumas das reivindicações que explicam o descontentamento. Contudo, estudos sobre eleições de segunda ordem revelam que estas são tanto mais negativas para os Governos quanto mais distantes de eleições de primeira ordem. A meio do ciclo legislativo penalizam mais os Governos, mais próximo de eleições para parlamentos nacionais, penalizam menos os partidos no poder.

O caso português parece comprovar estas hipóteses- nas europeias de 1999, próximas das legislativas, o partido no poder venceu e nas de 2004, a meio do ciclo, o partido no poder foi fortemente penalizado. Entretanto, tudo sugere que no próximo Domingo o padrão sairá reforçado, com uma vitória do PS, por uma margem curta, que tenderá a representar o seu mínimo eleitoral neste ciclo político. Ou seja, existirá voto de protesto, mas ele será atenuado pela proximidade das legislativas e pelo espectro da ingovernabilidade. O que sugere que se a campanha se tivesse centrado nos temas europeus, como desejava inicialmente o PS, o mais provável é que os eleitores sentissem bastante menos a associação entre estas eleições e as legislativas que ocorrerão logo a seguir ao Verão.

publicado no no Diário Económico.

segunda-feira, junho 01, 2009

E daqui a um ano?

A crer nos dados hoje divulgados, os portugueses mantém-se bastante pessimistas. Ainda assim, o pessimismo é significativamente maior quando questionados sobre como estará a economia daqui a um ano do que em relação ao seu próprio agregado familiar. Provavelmente não é uma percepção muito realista. A dimensão e a profundidade desta crise é tal que poucas famílias escaparão de modo directo ou indirecto ao seu impacto.
Contudo, estes dados entram em contradição com a tendência revelada pelo indicador de clima económico do INE, publicado na semana passada, que revela um interrupção do movimento descendente que se verificava há um ano e que tinha atingido um pico no mês de Abril. Tanto mais que esta inversão foi acompanhada por uma variação positiva dos indicadores de confiança em todo os sectores económicos.
Mas, provavelmente, o aspecto mais paradoxal destes resultados é o seu cruzamento com as intenções de voto apuradas na mesma sondagem. Perante uma crise desta dimensão o que se esperaria seria, por um lado, uma reprovação do partido que está no Governo e, por outro, uma desafectação geral face aos partidos políticos, na medida que se têm revelado incapazes de contrariar a depressão económica e social. Curiosamente, nenhuma destas tendências se está a verificar, o que sugere que os portugueses continuam a ver no executivo e nos partidos do sistema capacidade para responder à crise. Resta saber até quando resiste essa avaliação positiva.
Se daqui a um ano a resposta à mesma pergunta continuar a mostrar indicadores tão negativos, o problema continuará a ser económico e social, mas assumirá contornos políticos com os quais será difícil de lidar.
texto publicado no Diário Económico como comentário a estes resultados da sondagem da Marktest.