terça-feira, setembro 29, 2009

Tempos sombrios

Os portugueses escolheram um Parlamento à imagem da Europa: fragmentado e com o partido mais votado na casa dos 30%.

A questão é saber se os partidos portugueses saberão responder ao desafio colocado pelos eleitores - procurar pontos de entendimento e garantir estabilidade política perante uma profunda crise económica e social.

A distribuição de mandatos não favorece as negociações. Desde logo porque há uma maioria de bloqueio à direita, tendo em conta que PSD e CDS juntos têm mais deputados do que o PS (o que não acontecia com os governos Guterres). Depois porque nenhum dos partidos à esquerda do PS pode, isoladamente, viabilizar as propostas governamentais, o que promoverá a competição pelo título de guardião do conservadorismo de esquerda.

O novo parlamento cria um contexto que desresponsabiliza individualmente os partidos de esquerda, que não se sentirão pressionados para contribuir, cada um por si, para a governabilidade; e representa uma ameaça para o PS, se optar por procurar o apoio à direita. Como, aliás, revelam os resultados eleitorais na Alemanha, quando o centro-esquerda se alia à direita, as perdas eleitorais à esquerda tornam-se inevitáveis. Esta assimetria nas relações do PS com a direita e com a esquerda num parlamento com clara inclinação à esquerda, colocará, paradoxalmente, dilemas políticos de difícil superação. Ficámos com um parlamento onde todos ganharam, mas onde a soma das vitórias parciais pouco contribui para a governabilidade e para responder aos problemas do país.

Perante este cenário, ao PS é exigido que revele propensão para a negociação interpartidária, o que manifestamente não teve na anterior legislatura. Acontece que as negociações, para serem virtuosas, têm de assentar num ‘trade-off', em que uma parte dá e outra recebe. Ora entre exigências maximalistas dos partidos à esquerda e um caderno de encargos dos partidos à direita que violenta a base eleitoral dos socialistas, o PS encontrar-se-á numa posição em que pouco ou nada pode oferecer perante o que lhe será exigido.

No fim, resta o mais importante - o contexto económico e social. Enquanto não se conhecem ainda os contornos exactos da crise, uma coisa é certa, não faltará muito para que se comecem a delinear, ao nível europeu, as estratégias de saída (i.e. a forma como o Estado vai diminuir o papel entretanto adquirido nas respostas à crise). Portugal terá de regressar, inevitavelmente, à disciplina orçamental, logo, às políticas de austeridade.

Ora é de todo improvável que os partidos portugueses se entendam em torno da redução sustentada do défice. Se o fizerem, não resistirão eleitoralmente; se não o fizerem, o país não resistirá económica e socialmente. Vêm aí tempos sombrios.

publicado no Diário Económico.

sábado, setembro 26, 2009

Mais realistas que os realistas

“Eu, pessoalmente, queimaria todos os livros israelitas que encontrasse numa biblioteca”. A declaração é de Farouk Hosny, Ministro da Cultura do Egípcio há mais de vinte anos, conhecido pelo seu sólido curriculum de declarações anti-semitas, actos censórios e atentados aos direitos das mulheres. O poeta alemão Heinrich Heine escreveu que “onde se queimam livros, acabará por se queimar pessoas”. A história, infelizmente, foi-lhe sempre dando razão.
E não é possível não recordar a história quando o Governo português apoia Farouk Hosny para Director-Geral da Unesco. O embaixador português na UNESCO, Manuel Maria Carrilho recusou-se a acatar a decisão do Palácio das Necessidades, tendo sido substituído na votação por um diplomata de carreira. No fim, ironia do destino, o candidato egípcio, contra as expectativas, acabaria por ser derrotado pela candidata búlgara. Claro que a culpa da derrota foi das forças sionistas.
Do pouco que se sabe, o voto português teria como troca o apoio egípcio à candidatura de Portugal a um lugar não-permanente no conselho de segurança da ONU para o biénio 2011-2012. Não sei se será exactamente assim, mas o que sei é que a diplomacia portuguesa revela sempre uma incansável tendência para ser mais realista que os realistas. Sofremos do síndrome dos bons alunos, mas sem benefícios e à custa de princípios inegociáveis. E se há alguma coisa inegociável é não tolerar quem pondera queimar livros.
publicado no i.

sexta-feira, setembro 25, 2009

É da natureza dele

Quando se candidatou à Presidência, Cavaco Silva fez da cooperação estratégica o alfa e o ómega do que seria o seu papel em Belém. Hoje, é claro que, enquanto o PSD teve lideranças nas quais Cavaco Silva não se revia, a acção de Belém foi de facto instrumental na capacitação do Governo para levar a cabo políticas estratégicas para o País. Mas, uma vez resolvida a questão interna do PSD, a natureza táctica da cooperação saltou à vista.
O problema de Ferreira Leite é que, como aliás aconteceu no passado, quando os Presidentes procuram tutelar o seu espaço político, os resultados não são famosos. Naturalmente que ninguém esperaria que se chegasse tão longe, ao ponto de, aparentemente, se ter tentado, com a conivência ou não de Cavaco, não se sabe, um ‘putsch’ por meios mediáticos.
A meio da semana, quando o que restava era compensar os danos colaterais da demissão de Fernando Lima, Pacheco Pereira apelou a que Cavaco dissesse tudo o que tinha a dizer sobre o tema. Fazia sentido: era a única saída viável para a posição em que o PSD se colocou ao focar a campanha na verdade, quando o que preocupa os portugueses são as questões económicas e sociais.
O apelo, contudo, embateu num obstáculo. Cavaco Silva, com o seu característico realismo, já estava a pensar em segunda-feira. Deixou cair Fernando Lima, como havia deixado cair Fernando Nogueira e, pelo meio, foi Ferreira Leite que ficou sem discurso e sem campanha.
publicado no i.

terça-feira, setembro 22, 2009

A dissolução

Após as últimas revelações sobre o episódio das escutas em Belém, das quatro uma: ou Cavaco Silva desautorizava a fonte da casa civil ou o director do Público oferecia o "corpo às balas"...

Após as últimas revelações sobre o episódio das escutas em Belém, das quatro uma: ou Cavaco Silva desautorizava a fonte da casa civil ou o director do Público oferecia o "corpo às balas" - e dizia que tudo não havia passado de uma inventona do seu jornal -, ou o Presidente da República retirava a confiança ao primeiro-ministro ou, então, era Cavaco Silva que perdia a legitimidade para o exercício do seu mandato. Não me parece que qualquer outro cenário fosse viável, a menos que aceitássemos viver numa farsa política. No Verão foi possível assobiar para o ar e fingir que se tratava de um "equívoco", depois do regresso do tema e após as novas revelações não mais se podia agir como se nada se estivesse a passar.

Em plena campanha eleitoral e quando enfrentamos uma crise económica e social de contornos indefinidos, a última coisa de que precisávamos era de perturbação institucional. Ora o que temos no horizonte é bem mais do que isso, é uma autêntica dissolução institucional para a qual era preciso encontrar urgentemente saída. A história das escutas parecia uma farsa de Verão, mas repetiu-se, desta feita como tragédia.

Se Cavaco Silva tinha provas de que estava a ser espiado desde, pelo menos, Abril de 2008, não podia passar um ano e meio a agir como se nada se passasse. A questão é naturalmente séria de mais para ser tratada com a ligeireza e superficialidade que Belém lhe terá dedicado. Bem sei que, como lembrava Ferreira Fernandes este fim-de-semana no DN, Portugal se tem transformado num país onde as suspeitas e os achismos valem bem mais do que os factos, ainda assim só havia um cenário possível: retirar a confiança política ao primeiro-ministro.

Se o Presidente achava que podia estar a ser escutado e/ou espiado - conforme as versões -, devia ter apurado se as suspeições tinham fundamento. O seu lugar institucional obrigava-o a recorrer ao secretário-geral do sistema de informações ou ao Procurador-Geral da República. Se não o fez, e optou por fazer chegar a informação a um jornal, deixou de confiar em duas instituições vitais. Tinha naturalmente de retirar consequências.

Se tomássemos como boa a informação de que a fonte de Belém era Fernando Lima, das duas uma, ou este era imediatamente desautorizado por Cavaco Silva - para usar a cínica mas eficaz expressão de Marcelo Rebelo de Sousa levava um "puxão de orelhas" - ou o Presidente passava a ser conivente com um gravíssimo acto de guerrilha institucional e não podia deixar de ser visto como um factor de degradação do regular funcionamento das instituições.

Cavaco Silva, depois de ter estado quatro dias em estado de negação perante o mais grave conflito institucional da história da democracia portuguesa, sacrificou o seu assessor e homem de confiança há largos anos. Será que é suficiente para apagar os estragos entretanto feitos?

publicado no Diário Económico.

sábado, setembro 19, 2009

O ocaso no Verão

Em Agosto, a história parecia um caso de Verão, passageiro e equívoco. Quando Cavaco Silva disse que as escutas estavam a desviar as atenções do essencial, a declaração parecia sensata e desautorizava as fontes de Belém invocadas pelo Público. Passada a época das tontarias, no Domingo passado o Provedor do Leitor do Público revelou que as alegadas escutas não se baseavam em qualquer "indício palpável", para além "de um indício, sim, mas de paranóia, oriunda do Palácio de Belém". Mais, todas as informações recolhidas pelo correspondente do jornal na Madeira que contradiziam a fonte de Belém haviam sido ostensivamente ignoradas aquando da publicação das notícias. Entretanto, ontem, o DN revelava um e-mail onde se dá conta do modo como, alegadamente, um assessor de Cavaco plantou a notícia.
Tudo sugere que estamos perante um gravíssimo episódio de manipulação política do jornalismo e um acto institucionalmente inaceitável. Como é hábito, entre explicações delirantes, ninguém assume responsabilidades, mas as consequências são já claras: o que aparentava ser um caso tonto tornou-se no ocaso da superioridade moral de Cavaco Silva. Quando mais precisávamos de um Presidente capaz de contribuir para a solidez institucional, ajudando a formar um Governo sólido, que supere a inevitável fragmentação eleitoral, teremos um Presidente fragilizado na sua principal mais-valia: a credibilidade.

publicado no i.

sexta-feira, setembro 18, 2009

Partidos capturados

Zangam-se as comadres, sabem-se as verdades. Como se vê pelos votos comprados no PSD, a asserção também é válida para os partidos políticos. Com a agravante de o assunto não ser apenas entre comadres, mas dizer respeito a todos.
Para um estranho à vida partidária, eleições internas não passam de acontecimentos menores, que tendem a decorrer em caves fechadas, distantes da realidade. Acontece que não é assim. Dificilmente se encontra melhor observatório do agravamento do fosso entre partidos e cidadãos.
Pagar quotas de terceiros é uma prática com lastro histórico. Mesmo com a introdução de pagamento feito directamente pelos militantes, continuam a persistir formas mais ou menos sofisticadas de generosidade interessada. Caciques locais que pagam em massa quotas de terceiros. O intuito é simples: quem paga tem o poder de decidir quem é militante, logo quem elege representantes nas estruturas partidárias.
Ora, esta generosidade tem várias consequências. Fecha os partidos à entrada de novos militantes e reproduz lógicas perversas de poder interno. Se há 100 militantes e estes são suficientes para manter uma determinada estrutura de poder, qual a razão para abrir a porta a novos militantes com autonomia? Depois, quem paga quotas é eleito e quem é eleito passa a ter recursos para pagar mais quotas e ainda dar uns bónus (25 ou 30 euros, ficámos a saber). Fica assim explicada a importância, para alguns, de estar nas listas de deputados.
publicado no i.

terça-feira, setembro 15, 2009

A governabilidade na Europa

A maioria absoluta de um só partido está hoje afastada dos cenários eleitorais. Logo, voltámos a ser assolados pelo espectro da ingovernabilidade. O que não deixa de ser estranho, num país onde, por tudo e por nada, se recorre aos exemplos que vêm de fora. Ora, olhando para os 27 Estados-membros da U.E., os governos maioritários de um só partido são a excepção, a regra são as coligações.

É possível distinguir três tipos de governos na Europa a 27. As coligações entre vários partidos; governos minoritários; e, finalmente, os governos monocolores. Há, neste momento, na Europa, 17 governos que assentam em coligações entre partidos; 4 governos minoritários (que vão desde coligações minoritárias, de que são exemplo a Bulgária, a Dinamarca e a Estónia, até à Espanha, onde o PSOE não tem maioria absoluta, mas governa sozinho, negociando com partidos regionais); e finalmente 6 governos com maioria de um só partido. Nesta última categoria, Portugal e Chipre são claramente casos excepcionais (pois têm sistemas eleitorais proporcionais, pouco propensos à formação de maiorias absolutas), enquanto Reino Unido e França têm sistemas maioritários, a Grécia um bónus maioritário e Malta um sistema bipartidário de facto (só dois partidos elegem deputados).

Contudo, a história da democracia portuguesa demonstra-o, temos um sério problema de estabilidade governativa quer com governos de coligação, quer com governos minoritários. Nenhum governo de coligação durou uma legislatura inteira e apenas um governo minoritário chegou ao fim do mandato (o primeiro de Guterres, num contexto de crescimento do PIB e do emprego). A questão é que estamos perante uma situação económica e social deprimida, com contornos muito sensíveis, da qual não sairemos sem estabilidade institucional e política. Será possível que destas eleições saia uma solução que garanta um módico de governabilidade?

Olhando para a campanha, a resposta é não. Pura e simplesmente os nossos partidos aprenderam muito pouco com mais de duas décadas de integração. Enquanto as convergências e as divergências entre partidos se deviam centrar nas políticas, em Portugal insiste-se na competição entre carácteres e atitudes (para usar as expressões de Ferreira Leite e de Sócrates, respectivamente); enquanto a possibilidade de coligações pós-eleitorais devia assentar num processo negocial onde o programa do partido mais votado constituiria o núcleo duro do programa de governo, em Portugal são os partidos minoritários que querem impor o seu programa como requisito para governarem. Não admira, por isso, que tenhamos um sério problema de governabilidade, que não deixará de provocar um desastre económico e social. Começa já daqui a duas semanas.

publicado no Diário Económico.

sábado, setembro 12, 2009

A palavra é importante


Numa cena de "Palombella Rossa", Michele, o alter ego de Nanni Moretti, enquanto procura um rumo entre os escombros do PCI, responde a uma jornalista, após um jogo de pólo aquático. A certa altura grita irritado - "quem fala mal, pensa mal. É preciso encontrar as palavras adequadas: as palavras são importantes". A política é também uma conversa que temos uns com os outros, logo falar bem é uma competência essencial. Para quem tenha visto os debates, fica claro que há três líderes que se sentem bem na dimensão tribunícia da política: Sócrates, Portas e Louçã. Depois há Jerónimo, cujo estilo patusco, adequadamente descrito como "comunismo de sociedade recreativa", tem servido para compensar o crescendo ortodoxo do PCP. Sobra Ferreira Leite.

Não é novidade: Ferreira Leite não domina a palavra. Se nos debates não houve gaffes, surgiu a outra face da mesma moeda: os raciocínios confusos e as frases por acabar.

O problema é que a líder do PSD não compensa essa fragilidade com uma afirmação tecnocrática, até porque se recusa a desvendar como é que o saber técnico poderia responder aos males nacionais. Aparentemente, esta negação das formas tradicionais de fazer política revela- -se mobilizadora. O que só pode ser visto como um perigoso sintoma de empobrecimento do sistema político, com a agravante de não inaugurar nada de novo. Desde logo porque não podemos esperar de quem fala mal que pense

publicado no i.

sexta-feira, setembro 11, 2009

Vamos assustá-los

A política é a continuação da guerra por outros meios e os debates entre candidatos um desporto de combate. Contra todas as expectativas, Louçã perdeu o debate com Sócrates por KO técnico. As razões da derrota são simples: Sócrates usou as armas que Louçã costuma utilizar - um caso concreto para desmontar um argumento genérico -, enquanto Louçã não soube pôr-se no papel de primeiro-ministro - que tem de oferecer princípios genéricos para justificar políticas concretas. O líder do BE só pode viver mal com essa dificuldade. Afinal o seu objectivo é liderar a esquerda e ser primeiro-ministro. Acontece que o BE vive uma crise de crescimento: mobiliza o voto de protesto, desde que não exponha aquele que é, de facto, o seu programa eleitoral. Se é revelado o que o BE pretende fazer (do programa de nacionalizações ao fim das deduções fiscais, passando pelo antieuropeísmo), logo se percebe que não há ali nada de novo e o que há de velho é assustador.
Há, a este propósito, frases particularmente reveladoras. Logo após o debate, Louçã foi encerrar um comício em Almada. Tal como um general ferido em plena batalha, e certamente inspirado pelo discurso de Almada de Vasco Gonçalves, não resistiu a mobilizar as tropas com um "vamos assustá-los". O risco é mesmo esse - assustar muitos dos potenciais eleitores do BE, que não se revêem no projecto político do partido.
publicado no i.

terça-feira, setembro 08, 2009

Uma questão de oportunidade

Como seria de esperar, o Presidente da República, na sequência do caso Moura Guedes, chamou a atenção para os riscos que corre a liberdade de expressão.

Há boas razões para o fazer, mas a liberdade de expressão, como se tem visto, infelizmente, não se defende nem com indignação colectiva, nem com auto-regulação. É aqui que importa recordar a Lei do pluralismo e da não concentração dos media. Não era certamente uma Lei totalmente equilibrada - levantava, por exemplo, alguns problemas de operacionalização - mas era um passo claro no sentido de regular o sector.

Um aspecto decisivo para a defesa da liberdade de expressão passa pela autonomia das decisões editoriais face aos detentores do capital e às administrações das empresas. As especificidades do negócio da comunicação social a isso o obrigam. Ora o que temos hoje, face à não promulgação da Lei, é um vazio que possibilita, de facto, que os detentores de um grupo económico intervenham directamente nas decisões editoriais. Deixemos agora de lado a discussão sobre a bondade do afastamento de Moura Guedes, a verdade é que foi esse vazio legal que permitiu que, consoante as versões, os donos da Media Capital ou a administração tivessem passado por cima das chefias editoriais e afastassem a "jornalista". Se há indícios ou mesmo provas cabais de que, cada vez mais, a autonomia editorial das redacções se encontra limitada por força de um intervencionismo das administrações que ameaça a liberdade de expressão, esse problema agrava-se quando, como já acontece em alguns casos em Portugal, nem sequer sabemos quem são os proprietários dos órgãos de comunicação social.

Sobre estes dois aspectos, a lei do pluralismo não podia ser mais clara. No seu artigo 26º, afirmava-se que ficava "vedado a qualquer pessoa que não exerça cargo (...) na área da informação a emissão de directivas, instruções ou qualquer tipo de intromissão que incida sobre os conteúdos de natureza informativa veiculados ou sobre a forma da sua apresentação". Já nos artigos 5º e 7º ficava definida a obrigação pública da divulgação da titularidade dos media, bem como de toda a cadeia de entidades à qual deve ser imputada uma participação qualificada.

Não é preciso fazer um grande exercício de memória para nos recordarmos do veto do Presidente a esta lei, após o voto contra de toda a oposição. Entre outros argumentos, era afirmado que não era oportuno legislar. Imagino que o critério da oportunidade já esteja presente, o problema é que não há nada pior do que criar regras gerais perante casos concretos. Mas, claro, é sempre mais fácil fazer declarações grandiloquentes do que regular em abstracto.

publicado no Diário Económico.

sábado, setembro 05, 2009

A verdade é totalitária

Em 1984, apenas quatro ministérios governavam a Oceânia. Um era o da verdade, onde, aliás, trabalhava o protagonista da distopia de Orwell. O jornal do regime soviético chamava-se "Pravda", verdade em russo. O partido nazi exigia no seu manifesto que fossem perseguidos aqueles que propagavam mentiras políticas. A história ensina-nos a desconfiar de quem nos promete uma política imune à mentira.

Nas sociedades abertas não há nem uma verdade, nem superioridade moral de uma "mundividência", para usar um novo modismo. Pelo contrário, há uma concorrência racional, assente em regras partilhadas, entre diferentes verdades.

Por paradoxal que possa parecer, precisamos mais de políticos que defendam a sua verdade (uma visão alternativa da realidade com soluções contrastantes) do que de políticos que se afirmem detentores da verdade (enquanto definição positivista de soluções desprovidas de juízos de valor).

Em Portugal, a semanas das eleições, quando devíamos estar focados na escolha entre programas, o que nos é sugerido é que optemos entre caracteres e atitudes. Convenhamos que se percebe o apelo imediato da política de verdade - chama a atenção para promessas não cumpridas e serve para atacar o carácter dos oponentes - mas remete para um mundo nada admirável e faz muito pouco pela credibilidade da política.

publicado no i.

sexta-feira, setembro 04, 2009

A estupidez não tem limites

O Jornal Nacional da TVI não gostava de José Sócrates e o afecto era retribuído. A vantagem é que quem frequentava aquela hora já sabia ao que ia: não era possível ter um olhar neutro, até porque o que era oferecido não era um produto jornalístico, assente em factos e no contraditório. Mas essa é outra história, que tinha, aliás, a vantagem de ser clara. A três semanas de eleições, a decisão de pôr fim ao regresso anunciado de Manuela Moura Guedes aos ecrãs é uma decisão notável, que não se percebe a quem convém. Comercialmente não faz sentido que a Media Capital abdique de um programa líder de audiências e politicamente Sócrates sai prejudicado pela percepção de que afinal há "asfixia democrática". Mas, convenhamos, uma televisão privada é uma empresa, em que também há relações hierárquicas. Ora o que poderá uma administração fazer quando uma funcionária se entretém a conceder declarações à imprensa que colocam manifestamente em causa a autonomia das decisões da administração? Pois foi isso que fez Moura Guedes ao dizer, textualmente, que "só se fosse alguém muito estúpido" é que a tirava do ar. Entre fingir que não ouviram ou agir em conformidade face a uma chantagem, a administração agiu. É, no mínimo, estúpido e inoportuno.
publicado no i, onde a partir de hoje passo a escrever todas as sextas e sábados.

terça-feira, setembro 01, 2009

Como fazer?

Lido o programa do PSD, o que fica é um conjunto de vacuidades com as quais qualquer pessoa de bom senso tende a concordar.

Nas áreas duras das políticas públicas - educação, saúde, segurança social - encontramos omissões significativas combinadas com enunciados genéricos. É por isso que se em 38 páginas é possível vislumbrar a resposta à pergunta "que fazer?", raramente se encontram indícios que nos permitam responder ao bem mais exigente, "como fazer?".

Os parágrafos dedicados à segurança social são um bom retrato do programa. O PSD é claro quando sustenta "o progressivo plafonamento do valor das contribuições". No fundo, defende que se intensifique a evolução para um sistema de segurança social misto, que combine repartição - as contribuições de quem está hoje no mercado de trabalho pagam as pensões dos actuais beneficiários - com capitalização - as contribuições feitas hoje servem para financiar os benefícios futuros. Pese embora se queira frequentemente fazer crer que um sistema assente na capitalização é sinónimo de uma segurança social privada, tal não é verdade. Aliás, o sistema português tem desde a lei de bases de 2007 uma componente de capitalização, ainda que voluntária, e tem mesmo um fundo de estabilização financeiro que obtém óptimas rendibilidades com investimentos prudentes no mercado de capitais. Nenhuma destas soluções assenta numa lógica privatizadora: a gestão é pública. Para além da retórica política, ninguém duvida que há virtudes em sistemas assentes na repartição - ajudam a criar solidariedade intergeracional - bem como nos que se fundam na capitalização - potenciam a responsabilidade individual -, sendo que ambos os modelos podem assentar numa gestão pública.

Se fosse possível desenhar um regime de segurança social desde o zero, a escolha recairia sobre um sistema misto. O problema é que tal não é possível: há um legado institucional que, ao mesmo tempo que impossibilita que se desenhe um sistema como se não existissem opções anteriores, torna os custos de transição de tal modo elevados que qualquer mudança no sistema é financeiramente incomportável. Desde logo, porque para começar a capitalizar diminuir-se-ia automaticamente a receita, logo o sistema ficaria impossibilitado de assegurar as prestações dos actuais beneficiários. Que o PSD se proponha mudar a natureza do nosso regime, ainda para mais numa altura em que o mercado de trabalho se encontra deprimido, e não dedique uma linha a explicar como o pretende fazer não é um contributo sério para uma política de verdade. Sinceramente, não vejo como seja possível diminuir a taxa social única em dois pontos percentuais, tornar o subsídio de desemprego mais generoso e, ao mesmo tempo, fazer evoluir a segurança social para um sistema misto. Pensando bem há uma forma: ferindo de morte a sustentabilidade financeira da segurança social.
publicado no Diário Económico.