terça-feira, outubro 27, 2009

Uma linha ténue

Há quatro anos e meio, no discurso de tomada de posse, José Sócrates deu o tom para o que seria a identidade política do seu governo.

As "férias judiciais" e a "liberalização das farmácias" serviram como amostra do reformismo sem temor a corporações. Resultados à parte - que esse é outro tema -, a primeira impressão foi mesmo uma oportunidade para criar uma imagem. Ontem, ainda que de modo bem diferente, Sócrates deu também o tom do que será a identidade do novo executivo.

Depois de ter apresentado um elenco ministerial que pouco dizia sobre a identidade política do governo, restava saber se este executivo seria mais próximo da imagem do governo minoritário de Cavaco Silva ou do primeiro governo de António Guterres. Se dúvidas restassem, ontem ficou claro: esta não vai ser uma maioria de diálogo, como aconteceu com Guterres, mas sim um governo que vai tentar desviar o epicentro da decisão política para fora do parlamento, à imagem do que aconteceu entre 1985 e 87 com Cavaco Silva.

Foi, na verdade, um discurso com um nível de concretização inferior ao da primeira tomada de posse. Mas foi também um discurso em que Sócrates fez uma interpretação dos resultados eleitorais que serve para definir o que será a linha política do governo. O primeiro-ministro foi claro quando afirmou que "o voto dos portugueses foi um voto de confiança numa governação reformista", tendo mesmo acrescentado que "este facto encerra uma importante lição política para o presente mas também para o futuro: a lição de que é possível fazer reformas e promover mudanças, mesmo que exigentes, contando com o apoio dos cidadãos eleitores".

Para bom entendedor, as palavras são claras: o que foi a votos foi a identidade do governo definida há quatro anos e meio e o reformismo contra os interesses corporativos saiu vencedor. Para as oposições, a mensagem é também inequívoca: o caminho passará por prosseguir uma agenda reformista e o ónus da instabilidade política recairá sobre elas, nomeadamente se forem criadas coligações negativas. Em maioria absoluta, as oposições podem ser "irresponsáveis"; num contexto de maioria relativa serão naturalmente responsabilizadas pela instabilidade.

A linha apontada é de combate político. Mas é também uma linha em que a diferença entre sucesso e falhanço é muito ténue. Ora uma coisa é certa, o sucesso da estratégia depende de um elenco governativo politicamente robusto, capaz de resistir à exposição parlamentar e de alargar a base de apoio do governo para além da Assembleia da República. Ouvido o discurso de ontem, só podem por isso aumentar as perplexidades sobre a equipa ministerial que tomou posse. Pode haver surpresas, mas, em teoria, não é possível ter um governo de combate político com tão poucos políticos.

publicado no Diário Económico.

sábado, outubro 24, 2009

Mais perto e mais longe

Um governo com mais mulheres aproxima-nos da norma europeia, mas há uma outra dimensão que nos afasta: os ministros independentes. É verdade que a entrada de novos ministros, recrutados fora da esfera partidária e governativa, revela capacidade de atracção, quando se temia que ela já não existisse. Mas, acima de tudo, esconde um conjunto de fragilidades do sistema partidário português. Fragilidades que, em lugar de serem contrariadas, são reforçadas. Os independentes tendem a revelar-se, com excepções, casos problemáticos de inabilidade política (risco que é maior quando não há maioria absoluta). Mas são essencialmente um sintoma de fraca institucionalização dos nossos partidos.
Nas democracias do Norte da Europa há poucos ministros vindos de "fora" do sistema partidário: ou são previamente eleitos para o Parlamento ou são "políticos profissionais", saídos dos aparelhos partidários ou sindicais.
Num caso e noutro, há incentivos para os melhores irem a votos e, o que não é menos importante, para se envolverem na vida política. Em Portugal temos sistematicamente o incentivo contrário. A mensagem é clara: "Se ambicionas ser governante, afasta-te dos partidos." Esta mensagem tem várias consequências - degrada (ainda mais) a imagem dos partidos e secundariza o seu papel na configuração da governação, ao mesmo tempo que tenta resolver pela porta do cavalo a sua fraca ancoragem social. Se calhar, as quotas de que precisamos são as que obrigam os ministros a serem eleitos em listas partidárias.
publicado hoje no i.

sexta-feira, outubro 23, 2009

Uma onda vale milhões

A realização de uma etapa do circuito mundial em Peniche pôs o surf na agenda mediática. É bom que isso aconteça. Uma onda vale milhões de euros e em Portugal o potencial das ondas é imenso. Num paper recente, Pedro Bicudo e Ana Horta (do IST) estimam que uma onda de qualidade possa ter um impacto no turismo na ordem dos 100 milhões de euros anuais. Faz sentido. Não apenas o número de praticantes em Portugal tem crescido bastante, como, numa sondagem recente, 90% dos europeus escolhiam o surf como o desporto que mais gostariam de experimentar. Da África do Sul à Indonésia, passando pelo País Basco, há localidades que se transformaram radicalmen- te porque tinham condições óptimas para o surf. Jeffrey's Bay, Uluwatu ou Mundaka são lugares prósperos porque se reconverteram de longínquas terras costeiras em destinos turísticos de surf. Com ganhos evidentes: desenvolveram-se (preservando a sua identidade) e encontraram um equilíbrio ambiental, obrigadas a proteger um recurso natural - uma onda de excelência. Há várias ondas em Portugal que podem funcionar como pólo de atracção do turismo de surf. Mas, como lembra o mesmo paper, em Portugal continuam a ser destruídas ondas de enorme qualidade: o Jardim do Mar na Madeira, Rabo de Peixe nos Açores ou o caso mais recente do Cabedelo na Figueira da Foz. Há autarcas sentados em cima de uma autêntica galinha de ovos de ouro, mas que, em lugar de a usarem como alavanca para o desenvolvimento, preferem destruí-la.
publicado hoje no i

terça-feira, outubro 20, 2009

A economia do surf

Dez anos depois, uma etapa do circuito mundial de surf volta a passar por Portugal. É uma óptima notícia para os adeptos da modalidade, que durante duas semanas, se as condições do mar em Peniche o permitirem, vão poder assistir a um espectáculo notável.

Mas é também um óptimo sinal para a economia portuguesa, que tem no surf uma oportunidade de enorme potencial.

Num estudo recente, dedicado ao ‘hypercluster' mar, coordenado por Ernâni Lopes, era afirmado que a economia do mar poderia ser, ao mesmo tempo, uma força propulsora e um catalizador capaz de dinamizar um conjunto de sectores com elevado potencial de crescimento e capacidade para atrair investimento. Tanto mais que o potencial económico do mar tem sido escassamente explorado, nomeadamente através de investimentos inovadores, capazes de acrescentar valor. Ora o surf é precisamente um dos sectores onde melhor se pode combinar crescimento sustentado, com criação de novas oportunidades económicas no quadro da economia do mar.

Tal como há na Europa regiões inteiras cujo desenvolvimento virtuoso radicou nos desportos de neve, o surf poderia desempenhar o mesmo papel alavancador em várias zonas de Portugal. O surf poderia estar para o turismo português como os desportos de neve estão para os Alpes suíços.

O turismo de surf não é massificado, representa um nicho de mercado em franca expansão e é ambientalmente sustentável. Os surfistas, até porque o desporto depende de um recurso natural (as ondas), valorizam as boas práticas ambientais, o que estimula a preservação ecológica das praias. Esta preocupação ambiental funciona como um constrangimento positivo, que contraria a propensão para a destruição do orla costeira - tarefa à qual se têm dedicado muitos autarcas portugueses ao longo de décadas.

Portugal tem, no contexto europeu, condições únicas para a prática de surf. Temos um clima temperado, ondas de qualidade e, não menos relevante, condições para o surf durante todo o ano. A estas condições acresce a nossa centralidade, nomeadamente quando comparado com outros destinos de surf, bem mais distantes. Além do mais, tendo em conta que as melhores ondulações são fora do Verão, o surf pode ajudar a compensar as quedas na ocupação hoteleira fora da época alta.

O surf pode ajudar a fazer uma síntese de que muitas regiões do país bem necessitam: gera novos recursos, mas contribui também para preservar recursos naturais, que tradicionalmente eram vistos como um empecilho ao desenvolvimento económico. Os bons exemplos das autarquias de Peniche e de Cascais - que têm visto no surf uma oportunidade para a criação de uma nova identidade local - bem podiam ser seguidos por muitas outras câmaras do pais que, tendo ondas de qualidade, não só não cuidam da sua protecção, como desprezam o seu potencial económico.

publicado no Diário Económico.

sábado, outubro 17, 2009

Singularidade política

A política portuguesa não escapa à proverbial inclinação nacional para os comportamentos singulares. Esta semana, se dúvidas restassem, ficámos a saber que teremos um governo que não encontra paralelo: composto por apenas um partido, sem coligações e sem maioria parlamentar. Na Europa há governos de maioria absoluta (quase exclusivamente em países com sistemas eleitorais maioritários); governos assentes em coligações parlamentares e ainda governos de coligação. O que não existe são governos minoritários, com coligações do tipo "navegação à vista", como acontecerá em Portugal. E não existe porque é certo que se traduzirão em instabilidade.

Aliás, em Portugal, apenas um governo de maioria relativa resistiu uma legislatura inteira, o primeiro de Guterres. Um governo que teve um contexto económico favorável e que serviu para "desasfixiar" o país das maiorias absolutas de Cavaco. Agora, com crescimentos económicos medíocres, com uma pressão social difícil de gerir e com uma clara propensão para a formação de coligações negativas, resistir ao pântano é um trabalho político hercúleo para o governo. Mas, certamente, não menos para as oposições, que não podem estar comprometidas com a governação, mas também não vão querer ser responsabilizadas pela instabilidade. Não por acaso, apenas um governo caiu no Parlamento por iniciativa das oposições (em 1987, o governo minoritário do PSD). Já agora, nas eleições seguintes, o partido no poder teve uma maioria absoluta e as oposições foram justamente fustigadas.

publicado no i.

sexta-feira, outubro 16, 2009

A minha escola é melhor que a tua

Todos os anos ficamos a saber quais as escolas com notas de exames nacionais mais elevadas. É essa a informação dada pelos rankings esta semana publicados. Ou seja, a classificação dos alunos é transformada em classificação das escolas. A informação deixa certamente muito satisfeitos os pais que têm filhos nas escolas de topo. Acontece que a eventual qualidade da escola é apenas uma entre muitas variáveis que explicam boas prestações académicas. O mérito pessoal, a origem social e a localização geográfica são, pelo menos, igualmente relevantes. Aliás, se todos os anos "descobrimos" que as escolas privadas lideram os rankings, tendemos a não reparar que há uma outra clivagem mais persistente, a que separa as escolas do litoral das do interior, independentemente de serem públicas ou privadas.
Que fazer perante estas desigualdades? É-nos frequentemente dito que a liberdade de escolher a escola resolveria parte dos problemas. Será verdade? Provavelmente não.
Desde logo porque nem todas as famílias estão na posse da informação que permite escolher de modo adequado, mas, acima de tudo, há poucos professores bons que queiram leccionar nas escolas más e não há oferta de qualidade que se queira deslocar para os lugares mais difíceis. Os rankings só são úteis se discutirmos os factores que verdadeiramente explicam o mérito e o demérito nos desempenhos escolares dos alunos e não nos limitarmos a ordenar escolas em páginas de jornais. Pode ser que depois sejamos capazes de intervir, de facto, nesses factores.
publicado no i.

terça-feira, outubro 13, 2009

Sinais de mudança

A reprodução do poder continua a ser a marca forte do mapa autárquico em Portugal, mas, ainda assim, é possível identificar algumas mudanças no imediato e algumas tendências que poderão consolidar-se em 2013.

Estávamos perante umas eleições puras, na medida em que não havia nenhuma contaminação por dinâmicas nacionais: não era possível esperar voto de protesto face ao Governo (o assunto havia ficado resolvido há quinze dias) e as eleições encerravam um ciclo político. Desse ponto de vista, o eleitorado deu grandes sinais de maturidade: comprovável quer pelas significativas flutuações em alguns concelhos entre voto legislativo e autárquico, quer pelos níveis de participação eleitoral muito significativos.

A participação eleitoral, aliás, revela que, em lugar do cansaço que se temia, a personalização e a competitividade de muitas disputas são mobilizadoras. Em Lisboa, por exemplo, comparando com o que aconteceu há quatro anos e de modo ainda mais intenso nas intercalares, votou mais gente. Há também alguns sinais de que mudanças de presidentes de câmara podem estar associadas ao crescimento da participação eleitoral. Ou seja, a mobilização de quem no passado não votou poderá ser determinante para explicar a renovação no poder autárquico.

O aspecto mais surpreendente destas eleições foi a boa ‘performance' do PS. Se bem que tenha perdido uma capital de distrito, conquistou duas outras, bem como várias câmaras simbólicas. Não menos importante, ganhou autarquias que se mantinham no mesmo partido desde 1976. Mais, foi capaz de conquistar autarquias quer ao PC, quer ao PSD.

Se tivermos em conta que, entre os presidentes que se recandidatavam, havia perto de duzentos que estão legalmente inibidos de concorrerem em 2013 (por força da lei da limitação dos mandatos), abriu-se uma janela de genuína renovação daqui a quatro anos. Neste contexto, a dificuldade que o PC tem revelado para substituir os seus autarcas de referência pode anunciar um definhamento autárquico dos comunistas. Em 2013 poderemos assistir a um reforço da bipolarização do mapa autárquico (contrariando por exemplo a tendência das legislativas e também das europeias), combinado com muitas transferências de poder entre os três partidos com expressão autárquica.

Finalmente, as leituras nacionais imediatas. As autárquicas revelaram um manifesto equívoco da direcção do BE em relação ao que pensam os eleitores do partido. Enquanto os dirigentes se auto-excluem de qualquer solução de governo, os eleitores, pelo menos no caso autárquico, prefeririam ver o BE a assumir responsabilidades governativas, só assim se explicam as quebras eleitorais em Lisboa e no Porto. Já Manuela Ferreira Leite, que procurava nas autárquicas uma tábua de salvação que manifestamente não se vislumbrava, é, agora, de facto, ex-líder do PSD.

publicado no Diário Económico.

segunda-feira, outubro 12, 2009

A proximidade entre legislativas e autárquicas tornou as eleições de ontem numa escolha “pura”. Não apenas era difícil que as autárquicas servissem para expressar um voto de protesto ao Governo (que ainda não existe), como as diferenças em alguns concelhos muito populosos entre o voto nas legislativas de há duas semanas e as eleições de ontem revelam a maturidade do eleitorado, capaz de distinguir os dois actos.
As autárquicas serviram também para consolidar um padrão com lastro histórico em Portugal. Quem exerce o poder executivo e se recandidata a um novo mandato, ganha. Com algumas excepções, foi isso que aconteceu: um mapa autárquico que, em importante medida, replica o de 2005. Sendo que, ainda assim, o PS conquistou, quer ao PSD (ex. Ourém e Leiria), quer ao PC (ex. Beja) autarquias que se mantinham estáveis desde há muito.
Depois, ontem ficou demonstrada a dificuldade de enraizamento do BE como partido autárquico, particularmente visível quando o PS se afirma com partido âncora à esquerda, como aconteceu com Costa em Lisboa (de facto coligado com o “alegrismo”). Também o PC teve uma quebra em concelhos simbólicos, mostrando dificuldade em substituir os seus autarcas modelo – problema que se acentuará em 2013. Finalmente, a derrota de Lisboa – que poderia ser a única tábua de salvação para Ferreira Leite – torna o processo de sucessão no PSD uma inevitabilidade.
publicado no Diário Económico de hoje (escrito ontem às 22 horas, quando ainda não era perceptível a extensão da vitória do PS).

sábado, outubro 10, 2009

Uma sociedade decente

Num país que é dos mais desiguais da Europa, o combate à pobreza deveria estar no topo da agenda política. E na verdade em Portugal está, mas pelas razões erradas. O que deveria ser motivo de indignação colectiva - as centenas de milhares de famílias que vivem abaixo do limiar de pobreza ou que não têm acesso a um conjunto mínimo de oportunidades - não o é, ao mesmo tempo que o rendimento social de inserção é sujeito a ataques políticos diários, que combinam demagogia desbragada com insensibilidade social.

É claro que há fragilidades na aplicação do RSI, como aliás acontece em todas as políticas públicas. Mas aquelas não diminuem nem o alcance da medida na diminuição da severidade da pobreza, nem o conjunto de oportunidades de inserção de que beneficiaram milhares de famílias ao longo da última década. Falar em "preguiçosos", para usar a terminologia de Portas, ou em "subsídio-dependentes", de acordo com Rui Rio, é esquecer que 60% dos titulares da prestação têm outros rendimentos, maioritariamente porque estão no mercado de trabalho, e que 80% dos beneficiários estão envolvidos em programas de inserção com vista à sua aproximação à vida activa. Acima de tudo, ignora que a prestação média é de 90 euros por beneficiário. Lançar este anátema sobre todos os que vivem com tão poucos recursos materiais é um acto de violência simbólica, impróprio de uma sociedade decente.

publicado no i.

sexta-feira, outubro 09, 2009

O segundo na lista

As autárquicas são, de facto, eleições uninominais. Elege-se uma lista, mas na verdade está-se a escolher o presidente de câmara. É também esta personalização que leva a que o presidente recandidato seja, inevitavelmente, reeleito. Não por acaso, pouco mudará no poder autárquico no próximo domingo. Dos 308 presidentes de câmara no poder, a larga maioria recandidata-se e, salvo raríssimas excepções, terá a reeleição assegurada. No poder executivo, a renovação tem de ser imposta por lei. É o que, em boa hora, acontece em Portugal desde 2005: os presidentes de câmaras municipais passaram a só poder ser eleitos para três mandatos consecutivos.
Esta limitação de mandatos tem consequências: há perto de 200 concelhos onde os presidentes, caso ganhem as eleições de domingo, se preparam para iniciar o seu último mandato, ficando impedidos de se recandidatar em 2013.
Mas uma coisa é também conhecida sobre o modo como os dinossauros do nosso poder autárquico gerem a sua própria sucessão. Quando se aproxima o fim de ciclo, abandonam o mandato a meio, entronizando o seu número dois, que depois se candidata na posição vantajosa de presidente em exercício. É isso que faz com que, no próximo domingo talvez valha a pena, um pouco por todo o país, esquecer por um momento quem é o primeiro da lista e olhar atentamente para quem aparece em segundo lugar. Em cerca de 200 concelhos, o mais provável é que o discreto número dois seja o presidente daqui a não muito tempo.
publicado no i.

terça-feira, outubro 06, 2009

A Europa a votos

“Votarás até que o resultado satisfaça os nossos desejos”. É esta a mensagem que a Europa envia, invariavelmente, a quem vota contra a sua vontade.

Até ver, tem funcionado - repetem-se os referendos e o soberano fica mais esclarecido e acaba por votar sim. Foi assim no passado, com os referendos suecos e dinamarqueses ao euro e com o referendo irlandês ao tratado de Nice ou, numa versão extrema, com os referendos franceses e holandeses ao falecido tratado constitucional - que, em última análise, levaram a que não houvesse referendos ao tratado de Lisboa.

Ainda que no caso irlandês haja um conjunto de idiossincrasias que explicam o não inicial (desde logo o receio de que com o tratado de Lisboa a Irlanda perdesse o peso relativamente excessivo que detinha na Comissão e, não menos importante, que a influência europeia obrigasse à despenalização do aborto), colocar a Europa a votos é hoje um risco que nenhum governo quer ou pode assumir.

A questão é que se ninguém quer hoje expor a Europa ao voto popular, a responsabilidade das políticas europeias neste receio é marginal. O problema é, no essencial, da apropriação que é feita da Europa pelos governos nacionais.

Para além da mudança que de facto tem promovido em muitas áreas da governação, a Europa tem funcionado para os governos nacionais como um importante mecanismo de capacitação institucional (ajuda os executivos a desenvolverem políticas que sem o constrangimento externo não seriam capazes). Entre estas formas de capacitação destaca-se o que se poderia chamar de "passa culpas": os governos responsabilizam a Europa por políticas que, na verdade, desejariam implementar mas que sem a desculpa europeia se tornaria mais difícil de levar a cabo. A disciplina orçamental é um entre muitos exemplos de "passa culpas". Enquanto - e com razão - muitos políticos nacionais defendem os défices baixos, a maior parte das vezes é a imposição europeia que é invocada para defender o equilíbrio das contas públicas. Logo, o ónus da impopularidade recai sobre a Europa e não apenas sobre os governos nacionais.

Das reformas das pensões à política agrícola, passando naturalmente pela disciplina orçamental, são muitos os exemplos onde a responsabilidade por medidas impopulares é escassamente assumida pelos governos nacionais, que optam por culpar a Europa. As consequências são inevitáveis: um declínio do europeísmo e derrotas da integração europeia quando é sujeita ao voto popular em referendos. O que serve para recordar que talvez seja o momento para os políticos nacionais assumirem as suas responsabilidades, desde logo, para evitar a paralisia política em que se encontra a Europa. Só depois será possível que seja, de facto, a Europa a ir a votos.

publicado no Diário Económico.

sábado, outubro 03, 2009

Uma situação inédita

Esta semana a associação sócio-profissional dos juízes classificou a decisão do conselho superior da magistratura de congelar a progressão na carreira do juiz Rui Teixeira como "uma situação inédita". Mas os representantes dos juízes vão mais longe: os seus pares que votaram favoravelmente a decisão perderam "irreversivelmente a legitimidade" e, como se não bastasse, o mesmo é válido para os outros membros do conselho. Há cerca de um ano houve, de facto, uma situação inédita: um juiz classificou como "erro grosseiro" a decisão de um outro juiz e condenou o Estado a indemnizar a vítima dessa decisão em mais de 100 mil euros. O Ministério Público recorreu e o recurso encontra-se pendente.
Perante este contexto, o bom-senso aconselhava a que se suspendesse a decisão de fazer ou não progredir na carreira o juiz em causa até à decisão do recurso.
Afinal, será aceitável que quem lesou individualmente um cidadão (prendendo-o sem nenhuma justificação) e colectivamente todos nós (que suportamos a indemnização) seja recompensado na sua carreira profissional? Em qualquer profissão, ninguém hesitaria em responder que não. Mas para os sindicatos de magistrados, já se sabe, os seus pares foram ungidos e estão acima de qualquer forma de responsabilização. A tal ponto que não toleram que um conselho, hoje aliás constituído maioritariamente por magistrados, tome uma decisão, por nove votos a favor e dois contra, que assenta apenas no bom senso.
publicado no i.

sexta-feira, outubro 02, 2009

O Presidente no seu labirinto

Por motivos que permanecem insondáveis, o Presidente da República foi-se deixando enredar num labirinto. A declaração desta semana, em lugar de contribuir para ajudar Cavaco Silva a encontrar uma saída não foi clarificadora, lançou novas dúvidas e revelou um Presidente hiper-susceptível à disputa política.
Continuamos sem perceber se as notícias sobre a alegada vigilância de Belém têm ou não fundamento, se foram uma invenção da fonte da casa civil ou, afinal, não passaram de uma inventona do Público. Ficámos, contudo, a saber que, numa terça-feira do ano de 2009, um Presidente de uma República do mundo ocidental descobriu que o seu computador é vulnerável e pode ser violado. Mais, sentiu necessidade de transmitir aos seus concidadãos essa insólita descoberta.
Mas, acima de tudo, quando precisávamos, mais do que nunca, de ter na Presidência um referencial de estabilidade, Cavaco revelou-se despeitado porque, em plena pré-campanha eleitoral, um par de deputados socialistas cometeu o pecado de "encostá-lo" ao PSD.
Se bem percebi, em última análise, Cavaco respondeu com uma tempestade institucional a uma declaração política que tem tanto de legítima como de desastrada: havia membros da casa civil a participar no programa eleitoral do PSD. Não deixa de ser reveladora a perturbação presidencial com o tema, mas temo que, chegado aqui, Cavaco já não encontre a ponta do novelo que o leve de volta à saída.
publicado no i.