terça-feira, dezembro 29, 2009

Felizmente não sou economista

Com o sentido de oportunidade que tem caracterizado a sua actuação à frente do Banco Central Europeu, este fim-de-semana, Jean-Claude Trichet apelou aos países da zona euro para que reduzam o seu défice o mais tardar em 2011 e alguns já em 2010.

O objectivo tem tanto de irrealista como de politicamente errado. Desde logo porque ninguém sabe com exactidão o que nos espera no sector financeiro e na economia. Por um lado, a probabilidade de existirem muitos Dubais ao virar da esquina é grande, ao mesmo tempo que a retoma é no mínimo incerta; por outro, o mercado de trabalho continuará muito deprimido: com o desemprego na zona-Euro em redor dos 10%, a pressão sobre as contas públicas será enorme, quer pela necessidade de manter o pacote de estímulos que impediu que tivéssemos caído numa "grande depressão", quer pelo agravamento das despesas com protecção social. Num contexto de profunda incerteza, falar de regresso à consolidação orçamental em 2010 na zona Euro não resolveria nenhum problema, apenas agravaria muitos dos que continuamos a enfrentar.

Mas o argumento tem feito o seu caminho. O artigo de Trichet é, apenas, o corolário duma tendência que culpa as medidas públicas pelas dificuldades de recuperação económica. Mas, como perguntava Robert Skidelsky num artigo publicado no Financial Times e apropriadamente titulado, "Why market sentiment has no credibility", qual a razão para uma crítica tão feroz aos tímidos anúncios de aumento da despesa pública para compensar a quebra da procura privada?

Para Skidelsky a resposta é clara: os governos têm de cortar na despesa porque é isso que esperam os mercados. Ou seja, os mesmos mercados que desestabilizaram o sistema financeiro a um ponto tal que este teve de ser salvo pelos contribuintes, exigem agora um esforço de consolidação como preço a pagar pelo seu apoio a governos cujas dificuldades ajudaram a causar.

Mas eu, que felizmente não sou economista, perante a crise e as suas sequelas, só me ocorre que existe um conjunto de questões políticas sobre o papel do BCE que tem de ser respondido. As declarações de Trichet só as tornam mais claras. Como sublinhava João Ferreira do Amaral num artigo na Ops: será desejável manter os níveis de independência política de que goza o BCE? Não deveria a política monetária ter como objectivos, em pé de igualdade com a estabilidade de preços, o combate ao desemprego, o crescimento económico e a taxa de câmbio do euro? Não poderiam ser admitidos mecanismos excepcionais para reduzir o défice da balança externa de alguns Estados- membros? Nesta fase, talvez fosse mais oportuno ouvir Trichet sobre estas questões do que escutar apelos contraproducentes e irrealistas à consolidação orçamental em 2010.

publicado no Diário Económico.

sábado, dezembro 26, 2009

Inconformados e birrentos

Os nossos políticos andam inconformados e birrentos. Nenhum dos líderes partidários se conforma com o resultado das eleições: Sócrates não perdoa aos portugueses não ter tido maioria absoluta e age como se ainda a tivesse ou, pior, alimenta a ilusão de que pode recuperá-la; Ferreira Leite não percebe como teve tantos votos como o omnipresente Santana e, em lugar de se afastar e permitir que o PSD respire de novo, insiste na estratégia de insídia que a levou à derrota; Louçã não aceita que a esquerda iluminada não faça a diferença para a maioria absoluta; Jerónimo não compreende como é que a crise não provoca um levantamento nacional que ponha de vez fim à democracia burguesa; Portas não entende como é que a sua clarividência retórica não basta para o alcandorar a líder incontestável da direita. Vai daí, fazem todos uma enorme birra: uns fingem que não perderam as eleições e outros não aceitam governar com o resultado eleitoral. A consequência está à vista - querelas institucionais com base em atrasos a chegar a reuniões, provocações, acusações de falta de carácter e coligações negativas. Para sairmos deste pântano, é-nos sugerido, poderíamos perguntar, de novo, ao soberano o que pensa sobre o assunto. Como nos aproximamos do fim do ano, permita- -se que faça uma profecia:
o resultado eleitoral seria o mesmo de há um par de meses. Logo, é bom que cada partido desempenhe o papel que lhe foi destinado pelos portugueses em Setembro.

publicado no i.

domingo, dezembro 20, 2009

Menos pobres

Não passa muito tempo sem que sejamos confrontados com os níveis intoleráveis de pobreza em Portugal. É bom que tenhamos presente a dimensão do problema: ajuda a manter o combate às desigualdades como prioridade política. Mas, enquanto isso acontece, convém valorizar colectivamente o muito que vai sendo feito para enfrentar o fenómeno. Esta semana, no meio do pessimismo que varre o país, o Padre Jardim Moreira, da Rede Europeia Anti-Pobreza, revelava o seu espanto com o sucesso da estratégia nacional para os sem-abrigo, que está a ultrapassar as melhores expectativas. Metade dos objectivos traçados para seis anos foram alcançados em nove meses e só no Porto mais de mil pessoas deixaram de dormir nas ruas. Já a Associação Nacional de Direito ao Crédito celebrou dez anos, durante os quais apoiou, através do microcrédito, o empreendorismo emancipador de mais de mil pobres. No final da semana, o Presidente da Cais sublinhava que sem transferências sociais (entre elas o rendimento mínimo), a nossa taxa de pobreza seria de 41%.

São motivos para satisfação, mas serve também para revelar como o nosso sucesso relativo na resposta à pobreza mais severa não tem sido acompanhado no combate ao conjunto das desigualdades. Se temos hoje instrumentos para combater as formas extremas de pobreza, continuamos estrangulados por níveis salariais que fazem dos trabalhadores uma parte importante dos pobres. É isso que está em causa com aumentos do salário mínimo acima dos salários médios.

publicado no i.

sexta-feira, dezembro 18, 2009

E a banda continuou a tocar

Não se sabe com exactidão que música tocava a banda quando o Titanic chocou com o iceberg. Mas uma coisa é certa: a banda continuou a tocar. Portugal chocou com o seu iceberg particular. Empurrados pela conjuntura externa dramática, as nossas debilidades estruturais não só vieram ao de cima como se agravaram. Desemprego, défice e endividamento são os aspectos mais visíveis do rombo. Perante isto, os partidos continuam a tocar música como se nada se estivesse a passar. Não bastava a coligação parlamentar de cortes na receita combinados com aumento na despesa, esta semana os deputados do PS reuniram-se para falar de regionalização. Na política, a oportunidade, não sendo tudo, é quase. E dificilmente haverá tema mais desajustado. Quando o foco deveria estar por inteiro na política económica de resposta à crise (do mercado de trabalho e orçamental), o Partido Socialista escolhe reflectir sobre quantas regiões deviam existir e as competências a transferir. O tema é uma espécie de fetiche da classe política, desajustado da realidade. Mas, também, não há novidade. Sempre que os partidos precisam de encontrar uma manobra de diversão têm na regionalização um tema adequado. Os outros partidos não se inibem de reagir e a comunicação social amplia devidamente o tema. Há uma década que é assim, mas é apenas mais um sintoma de empobrecimento do debate político. O problema é que agora temos mesmo de resolver o problema do iceberg.
publicado hoje no i.

terça-feira, dezembro 15, 2009

Duvido, logo corrupto

A crer na fúria legisladora do Parlamento, dentro de dois anos, a corrupção estará erradicada da face do país e, não tardará, as avançadas democracias escandinavas estarão a emular as boas práticas domésticas.

Nada que surpreenda. Perante um problema político sério - e a corrupção é-o - tendemos a optar pela solução preguiçosa: tipificam-se mais crimes, criam-se uns quantos observatórios e daqui a não muito tempo levantar-se-á um clamor colectivo protestando contra a ineficácia das leis entretanto aprovadas. Depois, já se sabe, a história repetir-se-á, com nova fúria legisladora.

O problema do combate à corrupção é que as respostas mais eficazes não só não produzem resultados no imediato como têm escassa visibilidade pública. É isto que cria o contexto para que seja possível explorar politicamente uma alegada inacção dos poderes públicos, que de facto não existe. Não por acaso, o combate à corrupção tornou-se num terreno fértil para a demagogia. Hoje, quem tenha dúvidas sobre a eficácia do caminho que está a ser seguido passa logo por corrupto no activo ou, pelo menos, em potência.

Como sublinhava Guilherme de Oliveira Martins, num artigo no Público, a propósito do tema: "as afirmações demagógicas e imediatistas apenas contribuem para o desenvolvimento da desesperança e do fatalismo (...). Mais importante do que a multiplicação de leis, precisamos de instrumentos eficazes, de medidas e de vontade".

E enquanto os deputados parecem ter descoberto no crime de ‘enriquecimento ilícito' e na inversão do ónus da prova que lhe está, diga-se o se disser, associada a maleita para todos os males, as respostas mais eficazes passam para segundo plano.

Se queremos de facto combater a corrupção, precisamos de intervir nas zonas cinzentas que persistem na formação das decisões na administração e nas empresas públicas. Isso faz-se, a título de exemplo, com mais transparência e informação (por exemplo publicitando de facto as adjudicações e os contratos públicos - veja-se o que acontece nos EUA, em que o destino dos recursos do pacote de estímulos anti-crise está descrito de forma detalhada na net); melhorando a organização do Estado (com um mais adequado sistema de controlo interno, através de códigos de conduta claros, mas, também, como aliás já acontece entre nós, com a responsabilização penal das pessoas colectivas); e com mais poderes de controlo para entidades reguladoras independentes (do Tribunal de Contas aos vários reguladores).

Ainda que com as limitações que são típicas das políticas e dos poderes públicos em Portugal, os passos que têm sido dados nos últimos anos vão neste sentido. O problema é que é muito mais difícil consolidá-los silenciosamente do que cavalgar a fúria mediática, que tem tanto de populista como de ineficaz.

publicado no Diário Económico.

sábado, dezembro 12, 2009

Vigiar e punir

Lembramo-nos bem do último governo com tutela presidencial. Foi com Santana Lopes, correu mal e acabou depressa. Era previsível que assim fosse. Mas, como para provar que nunca aprendemos o suficiente, esta semana vários socialistas vieram reclamar uma nova forma de tutela presidencial, desta feita sobre o Parlamento: Cavaco Silva deveria intervir, puxando as orelhas aos partidos que não se entendem.

O apelo insólito, para além de revelar desnorte político, teve, desde logo, o condão de fragilizar quem o fez
- que ficou à espera de uma resposta presidencial, que naturalmente não chegou. Não deixa de ser verdade que, no discurso de tomada de posse do governo, Cavaco destinou a si próprio o papel de referencial de estabilidade. Mas uma coisa é apelar a que o Presidente cumpra esse papel, outra, bem diferente, é criar as condições objectivas para que ele o faça.

Nas últimas semanas, temos visto facções que se digladiam numa competição para aumentar a despesa e diminuir a receita e a uma maioria que se lamenta perante as coligações negativas - isto ao mesmo tempo que se revela incapaz de fazer pedagogia política que explique a sua posição (veja-se o exemplo do Código Contributivo, em que só após a suspensão no Parlamento se ouviram os argumentos do executivo). Moral da nossa história: como os partidos não se entendem, reclamam que a autoridade vigie e puna. Em democracia só pode dar mau resultado, e não foi para isso que foi concebido o nosso semipresidencialismo.

publicado no i.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

O pé de fora

As candidaturas presidenciais ganhadoras são as que, partindo de um determinado espaço político, conseguem alargá-lo. Quando Mário Soares, em entrevista ao i, diz que Alegre está com um pé dentro e outro fora do PS tem, de facto, razão, mas está também a reconhecer o potencial eleitoral da recandidatura alegrista. O problema é que o pé que Alegre tem fora do PS - e em muitos dias é esse o "pé-director" -, ao mesmo tempo que tem ajudado a tornar a sua candidatura presidencial uma quase inevitabilidade, está a amarrar Sócrates a uma estratégia que não lhe convém. Há uns dias, Alegre proclamava que não estava refém de ninguém. É verdade, até porque são hoje Sócrates e o PS que estão reféns de Alegre: as lições de 2005 impedem uma candidatura alternativa à do poeta (que só fraccionaria o PS), mas Alegre Presidente ameaça o projecto político que Sócrates tem tido para o PS. Se a cooperação estratégica entre Cavaco e Sócrates é uma miragem de um passado longínquo, entre Sócrates e Alegre é uma utopia distante. É inevitável que, dentro de um ano, José Sócrates e Manuel Alegre estejam nos braços um do outro, enquanto proclamam a partilha dos valores da esquerda democrática. Acontece que, politicamente, não há convergência estratégica possível entre os dois. E, como se não bastasse, Alegre candidato oficial do PS não terá o potencial eleitoral de Alegre candidato com o "pé fora" do PS. Nisto, as presidenciais servirão para revelar o bloqueio estratégico que existe à esquerda.
publicado hoje no i.

sábado, dezembro 05, 2009

A posição minoritária

Esta semana, Ana Gomes, na TSF, afirmava que quem era contra a tipificação do enriquecimento ilícito, por este inverter o ónus da prova, usava "desculpas de mau pagador"; já no Parlamento, Fernando Negrão, enquanto justificava a coligação entre PSD/BE/PCP nas políticas de combate à corrupção, falava no pré-crime.

Confesso que há para mim uma diferença de escala entre os deputados entenderem-se em torno de formas de aumentar a despesa de modo incontrolável e a coligação invencível que, a propósito do justo combate à corrupção, se prepara para esmagar quem se atreva a ter dúvidas sobre os passos demagógicos que estão a ser dados. É, ainda assim, bem mais grave, à boleia do calor mediático, minar os alicerces do estado de direito do que abraçar a indisciplina orçamental.

Tendo em conta que não me é possível sugerir que experimentemos colectivamente uma distopia - que infelizmente está sempre ao virar da esquina - onde direitos, liberdades e garantias são uma miragem do passado,

recomendo que se leia mais ficção científica ou se vejam as adaptações ao cinema.
No "Relatório Minoritário" de Philip K. Dick, o departamento que geria preventivamente a criminalidade chamava-se "precrime" e nos seus livros fica claro que a capacidade de impedir crimes de ocorrerem e a criação de sociedades absolutamente seguras tem sempre uma outra face bem sombria: um universo totalitário que tende a suspender as liberdades individuais. Convém recordar que se chega a esse mundo através de uma sucessão de pequenos passos.

publicado hoje no i.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

Imaginação Informada

Brian Eno é um notável músico, mas também um surpreendente colunista político. A coluna que assina na "Prospect" - Dr. Pangloss - é um oásis de optimismo antropológico, enfrentando o modismo pessimista que tem feito escola. No seu último texto - "The post-theoretical age" - chama a atenção para o facto de vivermos numa era onde o debate é mais informado do que nunca. Dos blogue ao Twitter, assistimos a uma democratização do acesso a dados. As consequências são claras: "Na ausência de dados, teorizamos. Na abundância, só temos de fazer as contas." O que poderia parecer uma negação da dissensão política, não o é. Com a massificação da informação estamos a construir as ferramentas intelectuais que vão decidir o futuro. Perante este novo contexto, o conservadorismo leva vantagem: enquanto os progressistas se inclinam perante um futuro ainda indefinido, os conservadores agarram-se ao passado e sabem exactamente o que não querem. O futuro é para os progressistas um "acto colectivo de imaginação informada", sendo que a qualidade da informação está a melhorar.
Eno não o diz, mas informação pública de qualidade é o alfa e o ómega das políticas progressistas. Se há domínio no qual, em Portugal, há défices gritantes é esse. Défices que minam a confiança no debate público democrático. É por isso que o exercício de desinformação orçamental feito ao longo deste ano, sendo politicamente grave, é, acima de tudo, uma limitação à imaginação do futuro.
publicado no i.