sábado, março 27, 2010

Agora ou a eternidade?

Hoje é o primeiro dia do resto desta legislatura: abre-se uma curta janela para o Presidente convocar eleições e, coincidência (ou não), o PSD, depois de seis meses de lenta agonia, terá, finalmente, um líder. Mas se é hoje que começam as oportunidades, temo dizê-lo, é também o momento em que elas acabam. Uma nova liderança do PSD precisa de tempo para se afirmar, mas não pode esperar muito tempo; e Cavaco Silva, com presidenciais à porta, a última coisa que quererá é uma crise política nos próximos meses. Ao que acresce que o epílogo de Ferreira Leite foi também o estertor de uma liderança do PSD em cooperação estratégica com Belém. O PSD a partir de hoje vai necessariamente ter de se afastar de Belém, sendo que precisa de Belém para regressar ao poder no curto prazo. Complexo. Há, ainda assim, uma forma de romper com este dilema: fazer tudo ao contrário do que fez a direcção cessante. Ferreira Leite deixa o partido nos mesmíssimos níveis com que o recebeu de Menezes. Ou seja, o problema não era, nem é, a credibilidade. O problema é que enquanto o PSD se concentrar no carácter do primeiro-ministro, conseguirá afectar a popularidade de José Sócrates, mas não será capaz de se afirmar como alternativa. Todo o debate sobre o PEC foi, desse ponto de vista, elucidativo. O PSD revelou-se, simultaneamente, dividido, contra o programa e incapaz de propor um caminho alternativo. O único caminho para o novo líder passa, por isso, por encontrar um espaço de diferenciação nas políticas. Um desafio que precisa de tempo. Ora o tempo disponível é curto, até porque o pós-presidenciais será daqui a uma eternidade.

publicado no i.

sexta-feira, março 26, 2010

O enigma Ferreira Leite

Havia uma racionalidade para a manutenção de Ferreira Leite na liderança do PSD após a derrota nas legislativas: viabilizar o Orçamento de Estado e o PEC e com isso libertar a próxima direcção, que não teria de aparecer ao lado do Governo na aprovação de políticas de austeridade. Depois das indecisões desta semana, a única explicação para a longa agonia em que a liderança do PSD se encontra desde Setembro desapareceu. As “famosas últimas palavras” de Ferreira Leite foram ditas ontem na reunião do grupo parlamentar: “ainda sou Presidente do partido e defendo a abstenção”. Dificilmente se encontraria maior sintoma de fragilidade política e melhor prova de que de pouco serviu a teimosia. Uma liderança demissionária é por natureza uma liderança frágil e sem nenhuma capacidade política. O PSD, em lugar de estar a escolher hoje o seu líder, já deveria ter resolvido o assunto em Novembro ou Dezembro. É o que se costuma chamar de “óbvio ululante” e a persistente má avaliação da imagem de Ferreira Leite nos barómetros desde as eleições é disso prova.
Mas se essa é uma parte do enigma, há outra que dificilmente encontrará explicação: o tipo de afirmação política que Ferreira Leite procurou. Uma combinação única entre falta de competências na comunicação política, com um discurso de um pessimismo sem paralelo e sem qualquer proposta para um caminho alternativo. Tudo isto pautado por um subtexto no qual categorias que deveriam ser marginais para a disputa política – da verdade ao carácter – foram centrais para a diferenciação do PSD face ao PS. Os resultados desta opção estratégica estão à vista: Ferreira Leite deixa o PSD com scores idênticos aos que herdou de Menezes.
comentário ao barómetro da Marktest, no último dia de Ferreira Leite líder do PSD (publicado no Diário Económico)

Um Bloco Central de Palácios

Os mercados queriam um PEC corajoso e consensual. Basta ler as razões da Fitch para baixar o rating, para perceber que os mercados ficariam sempre insatisfeitos com a dimensão da austeridade prometida. Um PEC consensual é também impossível. O cenário político não podia ser pior: um partido do governo dividido e sem maioria e um PSD dividido e sem posição ou alternativa. Já não restam dúvidas de que a crise política se somará à financeira, num processo dramático de reforço mútuo. Como sair daqui? Emparedados entre a possibilidade de regressar a eleições, que produziriam o mesmo resultado, e a inviabilidade da solução que tem sido tentada - governação à vista, com acordos pontuais -, resta uma saída: uma coligação entre os dois principais partidos. Com a pressão financeira à espreita e o regresso à austeridade com custos sociais, nenhum governo de maioria relativa é sustentável quatro anos. Mas uma coisa era um bloco central claro, com negociações, cedências e compromissos perceptíveis. Outra é um de bastidores, baseado em jogadas palacianas que descredibilizam os partidos e não melhoram, de forma sustentada, o cenário político. Enquanto os partidos continuarem manifestamente incapazes de se entenderem, um outro bloco central começará a ser construído. Como aliás se foi percebendo do modo como o PSD foi formando o voto em relação ao PEC, está a germinar um bloco central de palácios, paradoxalmente construído entre São Bento e Belém. Se for este o caminho, chegaremos a 2013 com os partidos menorizados e um país politicamente ainda mais pobre.

publicado hoje no i.

terça-feira, março 23, 2010

A solução preguiçosa

O PEC foi apresentado como fazendo a quadratura do círculo: combinava a austeridade necessária com a equidade desejável. Quando se passou de 9 para 110 páginas, percebeu-se que não era bem assim.

Os instrumentos de equidade anunciados continuavam lá, mas era revelado que o maior contributo para a diminuição da despesa era dado pela diminuição das transferências do OE para a segurança social.

A poupança no regime não-contributivo (complemento solidário para idosos, abonos, subsídio social de desemprego e rendimento social de inserção) tem sido recebida com estupefacção. Há boas razões para isso: é precisamente numa altura de crise que a existência de uma rede de mínimos sociais é mais necessária e, no passado recente, o seu desenvolvimento foi um elemento central da modernização programática do PS (a nova geração de políticas sociais). Uma coisa é clara no PEC: a redução dos apoios sociais é ideologicamente errada e politicamente preguiçosa.

O peso das prestações sociais no PIB tem crescido, ao mesmo tempo que há um decréscimo do peso dos salários. Deixando de lado, o contributo da maturação do sistema de pensões, é evidente que há um problema. Mas o caminho seguido pelo Governo para o enfrentar é o errado.

Ao definir tectos para a despesa com o regime não-contributivo, o PEC revela uma intenção ideologicamente errada que tem consequências: acaba-se com o princípio de que as prestações de mínimos sociais são direitos de cidadania.

Mas, acima de tudo, o PEC opta pela solução politicamente preguiçosa dos cortes cegos. Não tem de ser necessariamente assim. Há dois caminhos possíveis para garantir uma rede de mínimos sociais com sustentabilidade financeira: encontram-se fontes de receita alternativas (subir de novo o IVA ou, por exemplo, introduzir já em 2010 a taxação das mais valias bolsistas) ou trabalha-se do lado da despesa, mas criteriosamente. O segundo caminho é preferível.

Há naturalmente ganhos de eficiência com o aumento da fiscalização, mas há outras possibilidades: densificar o conceito de "desemprego voluntário" (impedindo o acesso ao RSI e, de facto, ao subsídio de desemprego para quem vai voluntariamente para o desemprego); caminhar mais na diferenciação positiva dos abonos de família, que poderiam não ser recebidos por algumas famílias com rendimentos suficientes; fazer depender as prestações de desemprego da probabilidade de regressar ao mercado de trabalho (o que levaria a que os jovens tivessem ‘plafonds' inferiores, por exemplo, aos dos maiores de 45 anos); e garantir que as pensões com uma componente não contributiva são de facto sujeitas a prova de recursos.

No fundo, o que está em causa é escolher entre garantir a sustentabilidade de direitos ou, tomando o PEC à letra, fazer regressar a rede de mínimos sociais à lógica discricionária do passado.

publicado hoje no Diário Económico.

sábado, março 20, 2010

A lei Pacheco Pereira

As leis devem ser gerais e abstractas. Uma verdade que não colhe no PSD. A lei da rolha é de facto uma lei ad hominem, tem um destinatário claro: Pacheco Pereira; mas, acima de tudo, é o sintoma de que há um problema larvar no partido. É no mínimo insólito que, perante uma crise profunda e com o governo debilitado, o PSD se entretenha a discutir estatutos e a limitar os direitos dos militantes dissonantes. O PSD tem um problema de lealdade - "os tiros nos pés" de que falou Marques Mendes -, mas a unidade só se recupera com poder. Até regressar ao governo, o partido estará condenado aos desentendimentos internos. E a sua principal raiz não é propriamente ideológica. O PSD vive preso numa clivagem entre um partido de "cima" e um partido de "baixo". Um partido que tem presença mediática e outro que se mantém activo no território, através de micropoderes locais com escassa notoriedade pública. Nos últimos anos, o partido de "baixo" (com Santana e Menezes) tem alternado no poder interno com o partido de "cima" (com Marques Mendes e Ferreira Leite), sem que nenhum dos partidos se consiga afirmar perante o outro. O resultado está à vista. O partido de "baixo", que não aparece nos jornais, vinga-se, com a "lei da rolha", do partido de "cima", personificado em Pacheco Pereira, que tem todas as tribunas disponíveis, para depois o partido de "cima" prometer revogar imediatamente uma norma que o partido de "baixo" acabou de aprovar maioritariamente. Mais do que saber se deve ser liberal, conservador ou social-democrata, o PSD tem de encontrar um líder capaz de romper com esta clivagem.
publicado no i.

sexta-feira, março 19, 2010

As pessoas no fim

O PEC tal como conhecido a semana passada combinava austeridade com equidade. Mas esta semana, conhecido na integralidade, emerge uma agenda que esteve escondida. Ao contrário do que parecia, quem vai sofrer mais com o PEC não são as classes médias, são os mais pobres. É dramático, mas o maior contributo para a diminuição da despesa é dado pela redução das transferências do Orçamento do Estado para a segurança social. Ou seja, as políticas que formam a rede de mínimos sociais verão o seu financiamento muito limitado (do complemento solidário para idosos ao subsídio social de desemprego, passando pelo rendimento social de inserção). Não falo do modo como esta opção contradiz o programa eleitoral com que o PS se apresentou às eleições, nem sequer do que esta escassez de recursos representará num país pobre como o nosso, quando o desemprego se manterá a níveis socialmente intoleráveis. O que está em causa é também uma questão de identidade partidária. Há muita falta de memória na política, mas não tanta que faça esquecer que, há perto de 20 anos, quando o PS, com António Guterres, redefiniu a sua linha programática, um dos eixos centrais desse aggiornamento foi a criação de uma rede de mínimos sociais, baseada em direitos de cidadania. No tempo em que os slogans políticos eram levados a sério, era o que queria dizer "as pessoas primeiro". Subitamente, numa terça-feira, o governo do PS vem limitar o financiamento dessa rede, mas acima de tudo cria um tecto administrativo ao que se propõe gastar. Em última análise acaba com uma lógica de direitos de cidadania e faz regressar a política de combate à pobreza aos apoios discricionários com que rompeu no passado. A mensagem é clara: as pessoas ficam para o fim.

publicado hoje no i.

sábado, março 13, 2010

O dilema de Passos

O congresso do PSD que hoje se inicia é o culminar do falhanço de dois planos que tinham o mesmo objectivo: impedir que Passos Coelho fosse o próximo líder do partido. Plano A, a criação de uma vaga de fundo para que Cristo voltasse a descer à Terra, sob a forma de Marcelo ou Rio; plano B, o lançamento de uma candidatura vitoriosa, herdeira da linha dura do Ferreira Leitismo. Os planos falharam, mas a muito provável vitória de Passos Coelho deixa-o perante um novo dilema, que a entrevista de Cavaco Silva só veio adensar. Passos Coelho vencerá porque sugere que com ele o PSD regressará ao poder. Em última análise, é isso que move os militantes que votarão nas directas. Mas esta sugestão só funciona se for acompanhada de uma opção táctica que leve os sociais-democratas ao governo a curto prazo. Um pouco à imagem do que aconteceu com Sócrates quando foi eleito secretário-geral do PS, Passos Coelho precisa de ir a votos rapidamente, sob pena de ser vítima do mesmo que está acontecer ao primeiro-ministro: ser queimado em lume brando. Acontece que não está nas suas mãos precipitar uma crise política. É necessário que o Presidente não vete politicamente esta intenção. Ora aqui os interesses de Cavaco Silva colidem com os interesses de Passos Coelho. Enquanto Cavaco quer tudo menos turbulência política até às presidenciais, Passos precisa de eleições quanto antes. Se procurar precipitar uma crise política, Passos corre o risco de ser desautorizado desde Belém; se esperar até daqui a um ano e meio, corre o risco de ser politicamente desfeito pelos seus pares.

publicado hoje no i.

sexta-feira, março 12, 2010

Um PE

Há uma letra a mais no PEC. O "C" de crescimento. Portugal apresentou um "PE", um programa de estabilidade, mas, no horizonte temporal de 2013 não poderemos esperar crescimento. É este o nosso drama, armadilhados que estamos por uma zona euro que não foi concebida para choques como o que enfrentamos. Aliás, o governo britânico, por exemplo, não o esconde, ao reconhecer no seu próprio PEC que este pode desacelerar a retoma. Ainda assim, o PEC português serve para mostrar como restam margens de manobra políticas. Desde logo porque, em lugar da adopção acrítica da receita dos cortes cegos, é revelada uma preocupação com a equidade, através de uma distribuição desigual dos custos da austeridade (da taxação das mais-valias mobiliárias, à criação dum escalão mais elevado no IRS e, acima de tudo, com a diferenciação nos benefícios fiscais - que são, de facto, um poderoso mecanismo de reprodução de desigualdades materiais). Existe, contudo, outro lado da moeda e esse é que doerá de facto. A credibilidade deste PEC assenta num cenário macroeconómico muito prudente - aliás, ao arrepio do histórico recente do governo português -, que, a ser tomado como bom, torna inviável que haja uma diminuição do desemprego significativa até 2013. Com um desemprego estimado nos 9,3% e com o número de desempregados sem subsídio a crescer todos os meses, chegaremos a 2013 com centenas de milhar de portugueses sem rendimentos. O cenário é socialmente sustentável? Claramente não. Havia alternativa? Também não. A menos que a Europa decida, de uma vez por todas, acrescentar o "C" que falta a outro "PE", o Pacto de Estabilidade.
publicado hoje no i.

terça-feira, março 09, 2010

Virgens ofendidas

Nas últimas semanas, algumas vozes vieram dizer o óbvio: em Portugal assiste-se a um processo de judicialização da actividade política.

Não começou ontem, mas, na verdade, tem-se intensificado, muito por força duma coligação perversa e indomável entre mau jornalismo e péssimas investigações. Como seria de esperar, logo se seguiu um coro de virgens ofendidas, com os costumeiros "ai, ai, ai que não é assim".

Na verdade, não só é assim, como os próprios magistrados reconhecem que tem de ser assim. A judicialização da vida democrática e, logo, da actividade política é, aliás, vista pelo poder judicial como uma tendência inexorável das nossas sociedades. A este propósito, vale a pena recuperar o texto de apresentação do congresso dos juízes portugueses, realizado em finais de 2008, no qual se propõe uma discussão sob o lema: "O Poder Judicial numa Democracia Descontente".

O pressuposto de que partem os magistrados é que "o poder judicial nas democracias descontentes do início do século XXI corre o risco de se vir a assumir-se como verdadeiro poder" (sic). Não há margem para dúvidas: é, de facto, de um risco que falamos. Depois, uma interrogação: "se o século XIX foi o século do poder legislativo e o século XX o do poder executivo, poderá o século XXI vir a ser o século do poder judicial?"

No dia-a-dia temos tido sinais visíveis da vontade de poder dos magistrados, mas ficamos a saber também que isso é feito de modo reflectido e como resposta a uma convocatória "do poder judicial para um outro exercício da democracia". Aliás, os magistrados não o escondem, quando se questionam se "estaremos perante uma transferência de legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicial?". Claro que esta alteração na "narrativa" produz efeitos: não só "tem de explicar o papel dos vários poderes do Estado Democrático de um outro modo", como "densifica a dimensão política" do judiciário. Como seria de esperar, tudo tende a acabar em reivindicações sobre a carreira: "o estatuto dos juízes deixa para a lei ordinária um largo campo de regulamentação".

O que nos é sugerido é não apenas uma nova centralidade para o poder judicial, como também uma ofensiva que passa pela diminuição das esferas de autonomia dos poderes políticos. O que nos lembra que já não estamos apenas numa fase de tensão latente. Se a saída para a "democracia descontente" em que nos encontramos passar por uma transferência da legitimidade de poderes com legitimidade eleitoral (como são o legislativo e o executivo), para um poder cuja legitimidade radica em mecanismos fracamente sindicáveis pelos cidadãos, há boas razões para termos medo. É um sintoma de que está a germinar uma visão em que o poder judicial já não quer ser independente do poder político, mas sim ver este subjugado ao seu poder.

publicado no Diário Económico.

sábado, março 06, 2010

O nosso caso Lewinsky

A PT QUERIA COMPRAR a Media Capital e a Media Capital queria ser comprada pela PT, mas o negócio foi interrompido pela Golden Share. Foi o que nos disseram esta semana Zeinal Bava e Bernardo Bairrão. Estamos perante um caso de coito interrompido por interferência de terceiros. Face a isto, o Parlamento prepara-se para fazer uma comissão de inquérito, porque José Sócrates afirmou não saber do negócio que ambas as partes queriam, de facto, que fosse feito e que o primeiro-ministro não deixou que se fizesse. Estranho, mas é assim. De facto, em nome do interesse público, não faz sentido que a PT, enquanto existe golden share, regresse aos conteúdos. Mas uma coisa é desde já sabida: o Estado tinha poder para vetar o negócio, mas, tendo em conta a complexa estrutura accionista da PT, dificilmente poderia ser o seu artífice moral. Não deixa, aliás, de ser curioso que saibamos tanto sobre o papel de personagens menores neste enredo e tão pouco sobre o de actores determinantes (à cabeça, o Banco Espírito Santo). No fim, resta uma certeza. Teremos uma comissão de inquérito em tudo igual à que delapidou o capital político de Clinton. Também aqui o tema não será o direito a ter amantes, mas sim saber se um político pode cometer perjúrio. No fatídico dia 24 de Junho, Sócrates alegou desconhecimento de um negócio que era conhecido por muitos (e no qual os seus amigos políticos se puseram, no mínimo, em bicos de pés); agora, em Fevereiro, inaugura-se uma nova fase da vida política portuguesa. Vai ser avaliado, com os poderes parajudiciais que detém uma comissão de inquérito parlamentar, o papel da mentira na política.
publicado no i.

sexta-feira, março 05, 2010

A miséria do sindicalismo

"A greve na função pública é apenas a preparação da ampliação da luta." Foi assim que Carvalho da Silva antecipou a greve de ontem, em entrevista ao "Diário Económico". Não es- panta: na mesma entrevista classificou o acordo tripartido alcançado na Irlanda como resultante de uma "cultura diferente" e classificou o apelo à negociação como uma "treta" (sic). O sindicalismo português é apenas mais um elemento da miséria política do nosso país. Perante dificuldades extremas e constrangimentos que aparentam ser inultrapassáveis, o que se exigia de todas as partes eram convergências: entre partidos e governo, entre empresários e sindicatos. O que nos é oferecido é precisamente o contrário: uma total incapacidade de negociar, de abandonar a rigidez da posição de partida para alcançar um compromisso. Entretanto, o desemprego continua a sua imparável cavalgada e a dívida que temos de pagar lá fora fica todos os dias mais cara. Portugal tem níveis de conflitualidade laboral (medidos pelo número de greves) comparativamente baixos e estes têm descido de modo acen- tuado. A administração pública é a excepção. Hoje faz greve quem pode (quem tem uma relação laboral protegida) e os funcionários públicos podem. Contudo, é também sabido, o padrão de baixa conflitualidade laboral coexiste com níveis elevados de contestação política de base sindical. No fundo, as greves servem para "ampliar a luta". As consequências da estratégia serão incontornáveis: um acantonamento político e social do movimento sindical, sem ganhos visíveis para os trabalhadores. Precisamos, de facto, de "outras políticas", mas precisamos não menos de outros sindicatos.
publicado hoje no i.