terça-feira, outubro 05, 2010

Obviamente demitia-se

Há muita falta de memória na política". A frase, mesmo que muito repetida, tende a ser esquecida. Esta semana tivemos um exemplo paradigmático com o episódio da rotação de Carrilho-embaixador. Uma história que, além da tendência nacional para a fulanização das discussões, serve para expor o problema de falta de memória que afeta os ciclos noticiosos e revelar muitas das debilidades da política à portuguesa.

Há um ano, Manuel Maria Carrilho recusou-se a apoiar a eleição de Farouk Hosny para diretor-geral da UNESCO. O egípcio tinha um historial de antissemitismo, chegando a disponibilizar-se para "queimar todos os livros israelitas que encontrasse numa biblioteca". Ora, não é necessário ter boa memória para saber que a asserção do poeta alemão Heinrich Heine de que "onde se queimam livros acabará por se queimar pessoas" é historicamente verdadeira. Na altura, Carrilho teve coragem e o Ministério dos Negócios Estrangeiros nunca explicou que razões de Estado explicavam o inusitado apoio. Mas os diplomatas não têm estados de espírito ou, se os querem ter, devem agir em conformidade. Carrilho revelou estatura ética, enquanto os negócios estrangeiros portugueses, ao tolerarem ultrapassar uma fronteira civilizacional, expuseram a sua pequenez. Contudo, depois da sua posição, ao embaixador na UNESCO só lhe restava uma alternativa: ser consequente com a sua atitude e demitir-se. Estranhamente não o fez.

Não passou muito tempo para que o Expresso noticiasse o que era óbvio. Carrilho estava de saída. Nenhuma diplomacia pode fingir que um episódio de recusa de acatar uma decisão ministerial é uma questão menor. Agora, chegada a rotação ordinária de diplomatas, Carrilho sai, confirmando o que já era público.

Mas, como acontece demasiadas vezes em Portugal, o facto de algo ter sido notícia uma vez não impede que o volte a ser. Na semana passada, tivemos um dia inteiro marcado por uma notícia que já tinha quatro meses (a suspensão de um concurso do TGV) e esta semana mais um episódio Carrilho, com direito a promoção de livro e tudo. É sintomático que, primeiro, não exista capacidade nas redações para filtrar o que é notícia; segundo, que se inicie um ciclo noticioso que assenta em reações ao que já não é novo. No mínimo, fica sugerido que as redações são cada vez mais incapazes de procurar notícias e que se limitam a amplificar o que alguém (de um assessor governamental a uma agência de comunicação, passando por uma editora de livros) quer que, naquele momento, ocupe a agenda. Só que os media não podem nem devem ser câmaras de ressonância, é também disso que depende a confiança no que é noticiado.

Contudo, o episódio Carrilho é também revelador da forma desconfortável como os partidos lidam com dissensões internas. Carrilho, concorde-se ou não com o que diz e a forma como o faz, tem voz própria e os partidos não sabem o que fazer com quem vive à margem do centralismo democrático que impera em todo o espectro partidário. O que tem custos: sem vozes autónomas, os partidos veem o seu pluralismo diminuir, o que enfraquece ainda mais a capacidade para representarem a sociedade. Com direções muito centralizadas, focadas na figura do líder, os partidos caminham para uma entropia da qual não se libertarão. No fundo, é isso que revela o modo como o PS tem lidado com Carrilho.

Texto publicado na edição do Expresso de 25 de setembro de 2010