segunda-feira, novembro 15, 2010

Um país em dissonância cognitiva

Não é preciso grande exercício de memória para nos recordarmos da ampla coligação em torno da diminuição da despesa que dominava o país há uma semana. Enquanto o Governo se propunha fazer cortes que não encontram paralelo na história da democracia portuguesa, o PSD exigia mais cortes, a somar aos já anunciados. Entretanto, como tudo o que aparenta ser sólido, a coligação desfez-se em ar.

Desde logo, porque, enquanto em abstrato há um largo consenso em torno dos cortes na despesa, assim que estes se traduzem em cortes específicos, o consenso desmorona-se. A procissão ainda vai no adro, mas esta semana, na comunicação social, já tivemos uma amostra - com os cortes nos abonos de família - do que se anuncia para 2011. O exemplo é ilustrativo. É verdade que as prestações não contributivas deveriam ter ficado de fora do pacote de austeridade. Exatamente porque a intensidade dos nossos ajustamentos será muito grande, era necessário garantir uma rede de mínimos sociais sólida, capaz de proteger os mais desfavorecidos. Não foi essa a opção do PEC II e foi um erro que terá consequências sociais, mas, também, políticas (nomeadamente para o PS, que alienou parte significativa do seu património ideológico). Contudo, os mesmos que na semana passada clamavam por maior contenção na despesa, foram os primeiros a indignar-se perante casos concretos de famílias que viram as transferências sociais a diminuírem. Agora foi o abono de família, mas quando chegarmos a fevereiro ou março, os que dizem que é muito fácil cortar nos "consumos intermédios", estarão cá para se indignar com o exemplo, devidamente televisionado, da escola com dificuldades de funcionamento ou dos polícias que não podem garantir a segurança, porque não há dinheiro para a gasolina dos carros patrulha. Parafraseando Passos Coelho, "o pior está para vir". É que a despesa pública não é uma abstração. Podem existir gorduras, mas a despesa pública é, no essencial, salários, prestações sociais, funções de soberania (defesa e segurança), educação e saúde.

Mas o espectáculo mais deprimente foi aquele a que se assistiu no Parlamento. Quem, ingenuamente, tinha ficado convencido que o acordo entre Governo e PSD era um primeiro passo para o consenso político necessário para reequilibrar as contas públicas, perdeu as ilusões. Esta semana, assistimos em força ao regresso do antagonismo militante que tem caracterizado a política portuguesa. Quando eram necessários entendimentos, é-nos oferecida uma repetição dos debates quinzenais, com os mesmos truques, a costumeira agressividade e total incapacidade de diálogo. Os portugueses, como bem intuiu o político profissional Cavaco Silva no twitter, só podem assistir com impaciência aos debates políticos.

Não é preciso ser psicólogo para se identificar a patologia de que o país padece. Chama-se 'dissonância cognitiva' e resulta da tensão entre cognições que são incompatíveis entre si. É a isso que assistimos: uma incompatibilidade lógica entre, por um lado, uma crença de nível mais primário (o corte na despesa) e, por outro, o desconforto com as consequências concretas desses cortes. Como se não bastasse, essa inconsistência é acompanhada por uma dissonância crescente entre a classe política e a expectativa que os portugueses têm sobre o seu comportamento.

Texto publicado na edição do Expresso de 6 de novembro de 2010