sábado, maio 29, 2010

Descer a Avenida

Entrámos na normalidade: o governo é penalizado nas sondagens e a contestação social aumenta. Hoje, dezenas de milhar de pessoas descerão a Avenida e nos próximos tempos a mobilização sindical intensificar-se-á. Faz sentido. Todas as crises são assimétricas, penalizam mais uns do que outros. Mas a crise tem servido para revelar também o profundo desajustamento entre a resposta política e o que seria necessário para lhe responder eficazmente. O movimento sindical mobiliza-se, os portugueses revelam o seu descontentamento, mas, temo dizê-lo, no essencial, não está nas mãos do governo a possibilidade de inverter a situação. O problema é que a crescente impotência dos governos nacionais coexiste com uma disputa política que se mantém presa às fronteiras do Estado-nação. Não temos uma Europa que reproduza as clivagens políticas tradicionais e nem sequer temos líderes europeus que consigam compensar essa insuficiência (como aconteceu no passado, com o eixo Kohl/Mitterrand, coadjuvados por Delors). Mas, para além da miséria dos outros, temos também a nossa miséria nacional. Quando mais precisávamos de um movimento sindical internacionalista, temos uma CGTP que cultiva uma política isolacionista. A recusa em aderir à nova Confederação Sindical Internacional pode parecer uma questão menor, mas não é: prejudica a nossa capacidade institucional para responder à crise. Hoje, em lugar de estar com os sindicatos europeus autónomos, a CGTP escolheu descer a avenida lado a lado com os sindicatos politicamente tutelados que pertencem à Federação Sindical Mundial. Os sindicatos de democracias pujantes como a Coreia do Norte, Bielorrússia ou Síria.
publicado hoje no i.

sexta-feira, maio 28, 2010

o apoio burocrático

Neste fim-de-semana o PS apoiará, a contragosto, a candidatura presidencial de Alegre. Manuel Alegre amarrou o PS e Sócrates com uma passividade que lhe sairá cara politicamente, deixou que o PS ficasse amarrado a esta opção. Este apoio burocrático tem em si o entusiasmo dos actos administrativos: obedece a uma racionalidade própria, mas ninguém se dispõe a apoiar afectivamente a decisão. A mobilização entre os socialistas, já se percebeu, será escassa e o resultado eleitoral condizente. Ironia das ironias, Manuel Alegre, que se afirmou decisivamente no PS como um dos mais veementes opositores das estratégias entristas nos anos 70 (que visavam esquerdizar o PS desde o seu interior), é hoje um aliado objectivo do novo entrismo. A estratégia política do BE, o único partido de facto mobilizado no apoio a Alegre, é clara: promover uma cisão no PS e sobre os seus escombros reerguer uma nova esquerda. É por isso que, do mesmo modo que o apoio a Alegre faz todo o sentido para o BE, não faz sentido nenhum para o PS de Sócrates. O problema é que também não faz sentido para quase mais ninguém no PS. Alegre sem o PS não é um candidato vitorioso, mas Alegre com um apoio burocrático do PS é um candidato perdedor. Como se não bastasse, a sua derrota funcionará como uma espécie de vacina para a possibilidade de um PS simultaneamente ganhador e ancorado à esquerda. A única forma de, a partir do centro, esvaziar eleitoralmente o BE e o PC, garantindo a governabilidade à esquerda.
publicado hoje no i.

sábado, maio 22, 2010

O Vice Primeiro-Ministro

O último inquérito pós-eleitoral do ICS já trazia boas notícias para os partidos mais pequenos: as condições estruturais para o seu crescimento são reais (ver margens de erro). Mas o tom das entrevistas que Sócrates e Passos Coelho deram esta semana às televisões serviram para revelar que as condições conjunturais também concorrem para essa tendência. Se Sócrates teve de justificar o aumento de impostos e o adiamento dos grandes investimentos com o facto de o mundo ter mudado em poucos dias (o que não deixa de ser verdade), a posição de Passos Coelho também não é fácil. Depois de uma campanha interna em que prometeu poder ao aparelho e menos impostos ao eleitorado, a realidade impôs-se: perante a necessidade de salvar a economia portuguesa, Passos chegou a acordo para a aprovação de um pacote de austeridade que durará, segundo o próprio, durante 2010 e 2011. Inicialmente, o acordo parecia favorecer Passos: a photo opportunity em São Bento deu-lhe uma imagem de estadista que lhe faltava, sem os custos da partilha do poder numa conjuntura bastante complicada. Propostas como o tributo social, infelizmente, também não desagradam à maioria. Mas com o passar do tempo, à medida que o peso das medidas do lado da receita tem, segundo o próprio, de passar para o lado da despesa, Passos vai ter de se posicionar, revelando a sua agenda. O que implica falar de salários (função pública), de despedimentos (reforma laboral) e de cortes no Serviço Nacional de Saúde. O que não deixará de ter custos políticos. Não por acaso, o Bloco de Esquerda já lhe chama «o Vice Primeiro-Ministro».
publicado no i.

sexta-feira, maio 21, 2010

A gestão da contestação

A semana começou com uma comunicação do Presidente da República ao país e termina com uma moção de censura do PCP. Em ambos os casos, a contestação ao governo como pano de fundo. A moção do PCP é a expressão institucional da manifestação convocada para o próximo fim-de-semana. Nada de novo: o PCP sempre desempenhou esta função de socialização política da contestação, prejudicando o desenvolvimento de lógicas de negociação, mas evitando, apesar de tudo, o tipo de radicalismo a que assistimos, por exemplo, na Grécia. A outro nível, e em contextos económicos e sociais bem mais favoráveis, essa foi também uma das funções da Presidência da República: em público ou nos bastidores, Soares e Sampaio foram, frequentemente, a válvula de escape do regime, capazes de moderar reacções de interesses sociais afectados e de desbloquear alguns impasses na sociedade. Cavaco não tem sabido desempenhar essa função. Na segunda-feira dirigiu-se pela terceira vez ao país e pela terceira vez escolheu um tema considerado (pelo próprio) menor. Depois do Estatuto dos Açores e das escutas a Belém, desta vez veio justificar a promulgação do casamento gay. Foi uma promulgação mais sonora que muitos vetos, mas que desagradou tanto à sua base eleitoral como aos defensores da lei. Mais uma vez, não alargou o seu espaço político, num discurso em que o efeito da crise apareceu misturado com a "conflitualidade" que a igualdade de acesso ao casamento alegadamente gera. Que, perante isto, a esquerda não esteja com boas perspectivas para as presidenciais diz muito sobre o estado da esquerda. Mas talvez a moção de censura ajude a explicar.
publicado hoje no i.

terça-feira, maio 18, 2010

Ainda salvos pela Europa?

Houve sempre um espectro a pairar sobre a integração europeia: a perda de soberania nacional. Contudo, essa ameaça revelou-se infundada.

Como bem demonstrou o historiador Alan Milward em "The European rescue of the nation state", a integração foi responsável por um reforço da legitimidade dos Estados-nação e não por uma diminuição das suas capacidades políticas. Primeiro, a integração foi a resposta à barbárie da guerra, que tinha feito colapsar as soberanias nacionais; depois, com as formas de proteccionismo selectivo do mercado único foram gerados recursos para o desenvolvimento dos Estados-Providência nacionais; finalmente, com a coordenação crescente das políticas, muitos Estados-membros, à cabeça os da "coesão", encontraram na integração um racional, mas, também, uma "desculpa" para levar a cabo reformas que de outro modo não seriam capazes. Ao longo da história, o processo de integração, em lugar de diminuir a soberania nacional, foi a base política e económica para a sobrevivência dos Estados-nação.

Foi, mas pode deixar de ser. É essa a lição dos últimos meses e que se agudizou na semana passada, com a saída encontrada para fazer face ao ataque especulativo às dívidas soberanas da zona euro. Uma saída que representa um golpe profundo na soberania nacional, sem que lhe esteja associada uma (re)legitimação do processo de integração. O que a Europa nos propõe é uma gestão financeira da crise, sem qualquer tipo de estratégia económica e que se limitará a reproduzir os desequilíbrios do passado: crescimentos anémicos; desemprego alto e pressão fiscal crescente.

A actual miséria política europeia é filha da incapacidade para responder a dois tipos de argumentos de raiz contrária, mas que se coligam na inviabilidade da integração monetária. Por um lado, o que nos diz que o euro estava condenado por não assentar numa união política, considerada um projecto utópico - porque os Estados- nação nunca abdicarão do seu poder soberano; por outro, o dos fundamentalistas da moeda única que julgaram que uma moeda sem Estado e sem os instrumentos monetários tradicionais era, em si, uma invenção genial e que, agora, basta reforçar as políticas seguidas até aqui.

Enquanto os dois campos se digladiam, não sobrou ninguém para defender uma política económica coordenada, que de facto protegesse de modo sustentável o euro e que obrigava necessariamente a um reforço da integração e não a um regresso em força do intergovernamentalismo pela porta do cavalo.

A opção tomada terá consequências sociais difíceis de antecipar, mas, seguramente, ainda mais difíceis de gerir. O que estará em causa é uma ameaça à viabilidade dos Estados-nação, que é onde ainda radicam os mecanismos de legitimidade política. Com uma diferença: ao contrário do que aconteceu com outras crises, esta ameaça é filha da própria integração.
publicado hoje no no Diário Económico.

sábado, maio 15, 2010

Os pobres eram o problema

Vale a pena recuar umas semanas até à apresentação do PEC. Na altura, foi revelada uma inusitada preocupação com o peso das prestações sociais não contributivas e do subsídio de desemprego na despesa pública. Aliás, a preocupação era tal que o principal resultado prático da primeira aparição conjunta de Sócrates com Passos Coelho foi a antecipação do aperto na protecção social face ao calendarizado. É o que se pode classificar como um exercício puramente político e cosmético. O essencial dos nossos problemas não é o excesso de protecção social dos mais desfavorecidos e o impacto orçamental das alterações propostas não só será reduzido, como em muitos casos terá custos administrativos adicionais. Esta semana, quando governo e oposição foram obrigados a fazer o inevitável para enfrentar a deriva especulativa e para responder ao que é a actual miséria política europeia, tornou-se ainda mais claro o erro que foi cometido. Os ajustamentos violentos que são inevitáveis para restaurarmos a nossa credibilidade financeira precisam de ser compensados por uma rede de mínimos sociais eficaz e solidária. Exactamente o que se procurou deslegitimar politicamente há um par de semanas. Nos últimos anos, muito por força das medidas que agora se criticam, Portugal diminuiu a sua taxa de pobreza e a percentagem de desempregados a receber subsídio foi sempre crescente. Nos próximos anos, acontecerá exactamente o contrário. Quando se tem de aumentar a pressão fiscal, retrair o investimento público e, consequentemente, se congela o mercado de trabalho, talvez não fosse má ideia não tocar no estado social.

publicado no i.

sexta-feira, maio 14, 2010

A desorientação é o regime

E num instante tudo muda. Há dias, o risco de incumprimento do nosso PEC radicava num cenário macroeconómico optimista. As instâncias internacionais desconfiavam da nossa capacidade para crescer, mesmo que a um ritmo medíocre. Pelo caminho, o garrote do financiamento tinha-nos sido apertado, de modo a garantir que não cresceríamos sequer como o previsto. Esta semana, como que para provar a irracionalidade em que tudo assenta, o INE revelou um crescimento do produto no 1º trimestre inesperado, mesmo para os mais optimistas. Depois, o pouco investimento público que restava, e que na semana passada nos era apresentado pelo governo como estratégico, foi directamente para o caixote do lixo da história. Ficámos, portanto, a saber que a velha máxima do futebol de que "o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira" contagiou definitivamente a política. Entretanto, a mesma Europa, que defendia há um par de meses que a retirada precoce dos estímulos às economias produziria um efeito recessivo profundo, abriu as portas à possibilidade de intervir nos orçamentos nacionais, enquanto empurrava os países para um regresso em força à disciplina orçamental apertada. Por cá, onde a desorientação é o regime há vários meses, governo e PSD entenderam-se para assegurar definitivamente que o nosso ajustamento não assentará em nenhuma estratégia económica, mas numa recessão duradoura. Se íamos crescer pouco, o mais certo é que agora não sejamos capazes de crescer. No meio da desorientação, talvez não fosse má ideia que alguém aproveitasse para dizer que, sendo assim, chegaremos a 2013 com níveis de desemprego iguais ou superiores aos que temos hoje.
publicado hoje no i.

sábado, maio 08, 2010

A grande recessão

Numa semana, forçados pela pressão externa, havia entendimento entre PS e PSD sobre a necessidade de implementar o PEC. Noutra semana, reaberta a disputa política interna sobre as “grandes obras”, o entendimento desfez-se em ar. Nenhuma das instituições internacionais que se pronunciou sobre o nosso PEC identificou o investimento público nele previsto como um risco. Aliás, o risco de incumprimento reside, no essencial, num cenário macroeconómico optimista, mesmo incluindo o pouco investimento público que resiste. Com aeroporto e TGV – que não poderão deixar de ter impacto positivo na nossa competitividade externa no médio prazo –, chegaremos ao fim do PEC com o desemprego em 9,3% e o crescimento do produto em 1,7%. E uma coisa é certa: sem que se vislumbre um modelo alternativo ao que tem dominado nas últimas décadas, um corte total, drástico e de um dia para o outro de todo o investimento público teria um impacto dramático – uma recessão profunda, duradoura, acompanhada por um disparar do desemprego bem para além dos actuais 10%. Neste cenário, tornar-se-ia, por exemplo, impossível promover qualquer tipo de consolidação orçamental. As profundas alterações das nossas condições de financiamento e o fim do “dinheiro barato” são óptimos pretextos para racionalizar o investimento público, colocando fim a muito desperdício e dando prioridade aos que têm melhor rendibilidade privada. Mas entre esse exercício e parar tudo vai uma grande diferença. No fundo, a diferença entre o mantra tantas vezes repetido de que “o País tem de aumentar a sua competitividade” e a capacidade de ter, de facto, uma política económica que torne Portugal viável.

publicado hoje no i.

sexta-feira, maio 07, 2010

Pode alguém ser quem não é?

Alegre formalizou a sua candidatura presidencial e, não tarda, o PS apoiá-lo-á. Desde das últimas presidenciais, estava escrito que assim seria. Uma espécie de fatalidade à qual nenhuma das partes tinha capacidade de resistir. Mas Alegre e o PS vivem enredados num dilema: Alegre sabe que um candidato ganhador precisa de ser capaz de alargar o seu espaço político de partida e o PS sabe que Alegre não é, na verdade, o candidato da sua linha estratégica dominante. Contudo, no anúncio em Ponta Delgada, Alegre-candidato revelou-se bem diferente de Alegre-proto-candidato. Onde antes havia um crítico do Governo em aspectos politicamente centrais, ouvimos um candidato alinhado com a estratégia de Sócrates. O candidato que esteve quase sempre com o “pé-fora” do PS, para recuperar a expressão de Soares, voltou agora a pôr o “pé-dentro”. Mas uma coisa são as proclamações, outra é a percepção que existe sobre o que Alegre e Sócrates representam politicamente. E, quanto a isso, não há interpretações alternativas: as visões de cada um são suficientemente diferentes para impossibilitar qualquer tipo de cooperação estratégica de facto. Alegre foi um candidato forte enquanto “maverick”, rebelando-se contra o poder do seu espaço de origem; o mesmo não é verdade para Alegre candidato artificialmente oficial do PS. Qualquer das duas versões está eleitoralmente limitada e, em política, não há nada pior do que se tentar ser o que não se é. No fim, restará uma disputa presidencial entre dois candidatos conservadores, ainda que com matrizes políticas diferentes. Entre Cavaco e Alegre ficará um amplo espaço político por representar.

publicado hoje no i.

terça-feira, maio 04, 2010

O bloqueio e Alegre

A sondagem publicada pelo DE/TSF no fim-de-semana vem revelar com particular clareza um bloqueio estrutural da política portuguesa: a diferença entre as condições de governabilidade para o centro-direita e para o centro-esquerda.

No estudo da Marktest, um PSD em crescendo conquista com facilidade eleitorado ao CDS; o mesmo não acontece no espectro esquerdo. A única maioria absoluta do PS foi à custa duma posição particularmente frágil do PSD e coexistiu com bons resultados eleitorais para PC e BE. Como se não bastasse, PSD e CDS têm condições programáticas para entendimentos pós-eleitorais, enquanto as divergências entre PS e os partidos à sua esquerda tornam qualquer forma de diálogo impossível. Numa espécie de profecia que se auto-realiza, o PS foi-se cada vez mais consolidando como partido charneira, encontrando na fixação centrista uma forma de responder ao anquilosamento político dos partidos à sua esquerda, que, convém recordar, não encontra paralelo no mundo ocidental.

A candidatura que Manuel Alegre hoje oficializa é, no essencial, uma tentativa para enfrentar o bloqueio estrutural da esquerda portuguesa: apesar de eleitoralmente maioritária é incapaz de garantir condições efectivas de governabilidade. Mas se Alegre, ao contrário do PS de hoje, tem a virtude de tentar enfrentar este bloqueio, infelizmente não contribui estrategicamente para o ultrapassar. Pelo contrário, a sua candidatura pode funcionar como uma espécie de vacina que inviabilize um PS modernizador e ancorado à esquerda.

O principal desafio da social democracia na Europa ocidental é ter uma agenda que faça da sustentabilidade financeira do Estado Providência a sua prioridade política. Ora Alegre, nuns casos colocou-se à margem de todas as discussões sobre este tema que ocorreram em Portugal nas últimas décadas, noutros foi um destacado opositor de medidas que tinham este objectivo. Da diferenciação das prestações familiares ainda com Guterres, passando pela disciplina orçamental no SNS com Correia de Campos e pela introdução do factor de sustentabilidade na segurança social com Vieira da Silva, até à opção pela adaptabilidade externa na reforma da regulação laboral, Alegre ou esteve ausente ou foi porta-voz da oposição política a estas medidas.

Num contexto de austeridade como o que vivemos, o sucesso de Alegre depende mais de libertar-se do conservadorismo de esquerda que tem sido a sua marca distintiva, do que de corrigir o afastamento recente em relação ao seu espaço político de origem. Seria um contributo relevante para a construção de um centro-esquerda capaz de crescer eleitoralmente à esquerda. Pelo contrário, uma candidatura conservadora nos costumes e imobilista nas políticas públicas serve apenas dois objectivos: consolida o bloco político conservador e assegura que o PS encontra na sua ala esquerda, por paradoxal que possa parecer, o melhor dos pretextos para se ir, cada vez mais, descaracterizando ideologicamente.

publicado hoje no Diário Económico.

sábado, maio 01, 2010

Imitem a Europa: entendam-se

Por lirismo ou pura irresponsabilidade, o país pôs-se numa posição singular no contexto da zona euro. E não, não é o risco da dívida soberana. A nossa maior singularidade é política. Na Europa há governos de maioria absoluta, de coligação no executivo ou assentes em coligações parlamentares. O que não existe são governos minoritários sem entendimentos parlamentares estáveis. O caso português é único e, por alguma razão, ninguém replica o nosso experimentalismo. Num contexto de crescimento económico, com maior ou menor vigor reformista, a governabilidade é possível sem um apoio maioritário. Num contexto de austeridade, é irresponsável go-vernar sem uma maioria estável. Se as eleições não produzem esse resultado, o mínimo que se exige à classe política é que seja capaz de se entender. Nos últimos seis meses, com responsabilidades repartidas, os partidos portugueses entretiveram-se a votar favoravelmente medidas que aumentam a despesa (acordo sobre a carreira dos professores) e que diminuem a receita (chumbo do Código Contributivo e suspensão do pagamento especial por conta). Esta semana, num gesto essencialmente simbólico, Sócrates e Passos Coelho apareceram lado a lado em São Bento. Fizeram-no condicionados pela pressão externa, mostrando mais uma vez que nos maus momentos temos de ser ajudados a partir de fora. É pena que PS e PSD tenham demorado seis meses a perceber o óbvio: uma crise destas não se enfrenta com coligações pontuais e com governação à vista. Mas é bom que percebam também que, sendo um passo positivo, a solução não radica em conferências de imprensa.

publicado hoje no i.