terça-feira, junho 29, 2010

Uma relação insustentável

O país político vive em estado de negação. Há mais de um ano, era evidente que um governo de maioria relativa, sem coligações, era um risco político com consequências económicas.

Já no final da semana passada, Sócrates e Cavaco deram mais um contributo para consolidar a irracionalidade política em que vivemos.

O primeiro-ministro, que há cinco anos é acusado de não querer ouvir, confidencia que se sente sozinho a puxar pelo país no exacto momento em que as sondagens revelam um PS em perda acentuada. Um misto de choque com a realidade e de reconhecimento de derrota política. O Presidente da República afirma num dia que a nossa situação é insustentável e que já o devíamos ter descoberto mais cedo, para no dia seguinte vir fazer juras de fidelidade à cooperação estratégica, remetendo depois a busca da verdade para o seu ‘site'.

Agora que o país mais necessitava de condições políticas que dessem respaldo institucional aos ajustamentos dolorosos que terão de ser feitos é quando essas condições estão menos presentes: não há maioria absoluta nem uma coligação política estável, ao mesmo tempo que a cooperação estratégica se tornou uma miragem do passado. O que é verdadeiramente insustentável é a situação política em que nos encontramos: um governo de maioria relativa e uma relação ferida de morte entre Presidente e primeiro-ministro.

O mais dramático é que Sócrates tem razão quando diz que o dever de um primeiro-ministro é puxar pelas energias positivas do país e Cavaco tem razão quando diz que a situação das nossas contas públicas é insustentável. Mas uma coisa são as proclamações retóricas, outra, bem diferente, é o contributo que de facto a relação Belém/São Bento dá para enfrentar os problemas do país. E se não precisamos de uma gestão excessivamente optimista das expectativas, também não serve de nada um pessimismo militante.

Não está de facto no ‘site' de Belém, mas, no essencial, a cooperação estratégica entre Presidência e Executivo pressupunha uma convergência, quer quanto aos objectivos políticos para o país, quer quanto aos meios para os alcançar. E é aí que se joga de facto a sustentabilidade das políticas públicas.

Ora, o essencial da nossa despesa pública é muito rígido e concentra-se em áreas onde é complexo fazer reformas: salários, prestações sociais, despesas com saúde e educação. E nessas áreas não precisamos de proclamações retóricas, mas sim de disciplina concreta. A este propósito, convém não esquecer que o esforço de Correia de Campos para conter o crescimento da despesa na saúde não encontrou cooperação em Belém (aliás, bem pelo contrário) e o de Maria de Lurdes Rodrigues para diferenciar o crescimento salarial dos professores foi entretanto suspenso, com um silêncio complacente do Presidente. O que só prova que há uma grande diferença entre falar de sustentabilidade e cooperar para a sustentabilidade.

publicado hoje no DE.

sábado, junho 26, 2010

Democracia ferida de morte

“O país é governado por uma coligação de procuradores e jornais”, afirmou esta semana Henrique Granadeiro em entrevista ao Jornal de Negócios. Temo que “governado” não seja o termo adequado. Seria mais correcto dizer que o país se vai tornar progressivamente ingovernável por força de uma coligação entre péssimas investigações e jornalismo tablóide. Não são só os desequilíbrios orçamentais, a nossa situação política é também insustentável porque a justiça, nos processos mediáticos, compensa frequentemente a sua incapacidade de produzir prova com a disseminação de informação falsa e a conta-gotas em órgãos de comunicação que se têm prestado a essa função. Com consequências: fica sempre a pairar uma nuvem de suspeição sobre todos – inocentes e culpados – combinada com uma total incapacidade de apurar a verdade. Se, por um lado, ser político passou a ser uma profissão de risco, por outro a imagem dos agentes da justiça deteriorou-se a um ritmo só comparável com a dos políticos. Deveria ser uma prioridade quebrar a espinha a esta coligação indomável entre alguns procuradores incompetentes e péssimos jornalistas que está a ferir de morte a democracia. Mas é duvidoso que tal seja possível. A classe política não o pode fazer pois não só nenhum partido está imune a processos mediáticos, como os políticos se degradaram progressivamente. Resta uma possibilidade. Um Presidente da República que use a sua gravitas para liderar este combate, até porque esta missão é a única relevante que resta a um chefe de Estado. Mas também aqui é escusado depositar quaisquer expectativas. Tanto o Presidente como os candidatos que se perfilam, para além de nunca terem relevado vontade política nesse sentido, têm sido complacentes com o desvario justicialista acomodado pelos media.
publicado hoje no i.

sexta-feira, junho 25, 2010

Uma história exemplar

Há dois anos, os chips das matrículas foram apresentados pelo governo como uma solução virtuosa para todos. Em mais um arremedo de deslumbramento tecnológico, falava-se em "potenciar um cluster na telemática rodoviária", num "aumento da segurança rodoviária", tudo com o objectivo de "fiscalizar veículos e não pessoas". Claro está que o essencial era o não dito. Era necessário criar um mecanismo que permitisse cobrar portagens nas Scut, onde não foram inicialmente construídas praças para o efeito. Dois anos passados, estamos mais ou menos na mesma situação. O governo não conseguiu encontrar uma solução alternativa à obrigatoriedade dos chips e continuamos a aceitar dois princípios insólitos: que é possível existirem auto-estradas sem custos adicionais para os utilizadores e, pior, que é adequado fazer política redistributiva através da rede rodoviária. Para ajudar à festa, enquanto o governo quer monitorizar através de um conjunto de indicadores socioeconómicos as Scut que se devem manter gratuitas, o PSD contrapropõe com isenções para os moradores e agentes económicos das regiões. Entretanto, o PSD a norte e o PS a sul ameaçam com contestação à introdução de portagens, ainda que de intensidades diferentes. Tudo isto serve para revelar que, quando era necessário uma simplificação e racionalização das políticas públicas, caminhamos sempre no sentido da sua complexificação. Que esta complexificação tenha chegado a um domínio aparentemente tão material como o modelo de financiamento das auto-estradas é revelador do monstro que está a ser construído.

publicado hoje no i.

sábado, junho 19, 2010

Diz que é uma espécie de fetiche

Há um vírus sazonal que nos faz crer que os problemas do nosso mercado de trabalho se resolvem através da flexibilização das relações laborais. De tempos a tempos o vírus volta a atacar e encontra ambiente propício ao desenvolvimento na rigidez formal da nossa legislação. Esta semana foi o PSD a fazer regressar o tema, propondo o fim do limite à renovação dos contratos a termo e diminuindo a sua duração. O problema é a realidade. Portugal tem de facto uma legislação do trabalho comparativamente rígida (ainda que já não tanto como no passado), mas a rigidez formal coexiste com a enorme flexibilidade de facto. Não por acaso, os níveis de precariedade são superiores à média europeia e, mesmo com toda a rigidez, o ritmo de crescimento do desemprego não encontra paralelo na Europa. Hoje, aliás, mais de 80% dos novos vínculos laborais são a prazo, o que não é necessariamente um problema se evoluírem para relações de trabalho sem termo. Mas uma coisa é valorizar a flexibilidade na entrada no mercado de trabalho e outra, bem diferente, é pensar que a flexibilidade deve ser a regra ao longo da carreira ou, pior, que os níveis de regulação do trabalho devem ser mínimos. Tudo isto sugere que em Portugal, como na Europa, a crise está a tornar-se um cavalo de Tróia de uma agenda desregulamentadora. E, convém não esquecer, não foi a rigidez dos mercados de trabalho que fez deflagrar esta crise. Era bom que os nossos problemas se resolvessem, de algum modo, com maior flexibilidade na contratação ou combatendo armadilhas de inactividade, mas, com o desemprego a 10% e a economia deprimida, pensar que se combate o desemprego com uma agenda flexibilizadora não passa de um fetiche.

publicado no i.

sexta-feira, junho 18, 2010

e porque não os idosos?

O velho slogan político exige que os ricos paguem a crise. Mas, para além da retórica, há a realidade e as crises são mais duras para os mais pobres. Esta não é excepção e em Portugal, um país onde as desigualdades são muito marcadas, os mais desfavorecidos serão as principais vítimas. É, por isso, numa altura como esta que mais necessária é uma rede de mínimos sociais eficaz. Desde a primeira versão do PEC sabíamos que o esforço de contenção começaria por onde não deveria - pelas prestações não contributivas, o conjunto de benefícios sociais que protege quem nada mais tem. É verdade que existem muitas irracionalidades nas condições de acesso a estas prestações, que o diploma aprovado esta semana resolve: escalas de equivalência não uniformes; rendimentos relevantes que variam de prestação para prestação e exigências aos beneficiários inconstantes. Mas nada disto é novo. Dirão que nunca é má altura para corrigir o que está errado e aumentar a eficácia das prestações. Certo, mas, politicamente, alterações nestes domínios, nesta altura, sugerem que os nossos desequilíbrios orçamentais resultam de uma generosidade excessiva com a protecção dos mais pobres, o que está longe de ser verdade. Aliás, se assim fosse, o que faria verdadeiramente sentido era uniformizar as condições de recursos para todas as prestações com uma componente não contributiva, à cabeça a pensão social e os complementos sociais das pensões. Se o objectivo é poupar dinheiro, é duro dizê-lo, há muito mais margem para poupança no acesso indevido às pensões não contributivas do que com os "malandros do rendimento mínimo". Se se pretende, e bem, uniformizar as condições de recursos, não há razão para excluir os idosos das novas regras.

publicado hoje no i.

terça-feira, junho 15, 2010

Demagogia nas pensões

s pensões oferecem terreno fértil para a demagogia. Ninguém resiste e não é por acaso. O tema garante cobertura mediática e é um dos poucos campos que restam para a diferenciação política.

Na semana passada, foi a vez do PSD. Passos Coelho propôs tectos para as pensões, que depois aparentemente já eram só para a Caixa Geral de Aposentações, ao mesmo tempo que falava da acumulação de pensões. A proposta consegue, ao mesmo tempo, ser confusa, demagógica e propor o que já existe.

Faz sentido que existam tectos para as pensões de reforma. Os sistemas de pensões não funcionam numa lógica pura de seguro social, pelo que têm também uma função redistributiva. Também só agora, quando o nosso sistema começa a maturar, é que a discussão começa a ser relevante em Portugal. Por isso mesmo, a última reforma da segurança social introduziu um tecto para as pensões do regime geral correspondente ao salário do Presidente da República. Sendo que, para todos os funcionários públicos entrados depois de 1993, aplicam-se as regras do regime geral. Este tecto, contudo, não se aplica, nem deve, a quem formou pensões altas com base em carreiras contributivas longas, sempre com remunerações elevadas. Aliás, o impacto material desta norma é reduzido. Não apenas a pensão média de velhice para o regime geral tem valores muito baixos (454 euros), como o último decil começa em 1066 euros. Estes valores servem bem para revelar como a introdução de tectos nas pensões é, hoje, uma questão completamente marginal para a sustentabilidade financeira do sistema.

Mas, se do ponto de vista redistributivo faz sentido promover alguma equidade, há um risco associado à introdução de tectos: desnatar o sistema de segurança social. A sustentabilidade financeira do sistema radica muito no esforço contributivo dos trabalhadores com salários mais elevados, mas, acima de tudo, a legitimidade social e política da segurança social depende da capacidade de proteger todos, como alternativa a um sistema residual e de mínimos sociais.

É por isso que esta discussão tem riscos e avançar mais do que o que já se avançou é um erro. É sabido que quem começa por dizer que não paga pensões a partir de um certo valor rapidamente resvalará para a ideia de que também não quer descontos a partir de um certo valor. A consequência é clara: uma erosão financeira, mas também política do sistema público de segurança social.

No fim resta a confusão: não se chega a perceber se o que o PSD está a dizer é que não quer pagar pensões acima de um determinado tecto para os actuais pensionistas, para os futuros, para os que agora começam a contribuir, ou se a discussão serve apenas para abrir a porta para a introdução de tectos nos descontos. Das duas uma: ou é mais uma ideia pouco maturada ou é apenas uma tirada demagógica, que serve para iludir o facto de a evolução de um sistema como o nosso para um com tectos nos descontos ter custos de transição que, por si só, o tornam inviável.

publicado no Diário Económico.

domingo, junho 13, 2010

Mata e esfola

A campanha presidencial já começou de facto e não vai correr bem ao governo. Há uns dias, Alegre sugeria que o economista da cooperação estratégica não tinha servido para nada. Tem razão. O Professor Doutor de Inglaterra, político não-profissional, que colocou toda a sua sapiência indiscutível ao serviço da pátria, chega ao fim do primeiro mandato com um País económica e financeiramente em pior estado. Não por acaso, e porque sabe que Alegre tocou na ferida que dói eleitoralmente, Cavaco logo se apressou a responder no discurso do 10 de Junho. Primeiro, referiu que não valem a pena "divisões estéreis" (uma versão revisitada da sua velha máxima pessoal, segundo a qual, no fundo, a política não leva a lado nenhum) - e ele bem avisou o que aí vinha. Depois, chamou a atenção para uma verdade insofismável: "quanto mais se exigir do povo, mais o povo exigirá dos que o governam". A leitura é simples: Cavaco coloca-se do lado de fora. Já não era político, agora também não é responsabilizável. Para Alegre a mensagem fica clara: não vale a pena juntar o Presidente à lista dos culpados, que isso da cooperação estratégica acabou com a saída do Dr. Menezes. Estamos assim em Junho. Imaginem depois do Verão. De cada vez que Alegre disser "mata", Cavaco apressar-se-á a dizer "esfola". Sócrates ficará a falar sozinho.
publicado no i.

sexta-feira, junho 11, 2010

a suspensão da democracia

Há um ano, Manuela Ferreira Leite, com o tacto político que lhe é reconhecido, aventou a hipótese de se suspender a democracia. Temo dizê-lo, mas o que era uma possibilidade remota passou a ser cada vez mais real. Na semana passada, o Ministro das Finanças descobriu um novo dilema: entre a prioridade aos formalismos legais e a economia. Vai daí, não hesitou em secundarizar as garantias constitucionais, o que não deixa de ser revelador se nos lembrarmos que este Governo tem defendido com unhas e dentes o primado da Lei e do Estado de Direito. A meio da semana foi a vez de um Comissário Europeu demonstrar que a inclinação para suspender a democracia não é um exclusivo nacional e confirmar – como se ainda fosse necessário – que a Europa está completamente louca. Mostrando desconhecimento acerca das reformas entretanto feitas no sistema de pensões ou na regulação do mercado de trabalho, Olli Rehn pronunciou-se, sem qualquer cobertura dos Tratados (lá está, um formalismo que garante a democracia), sobre o que deve estar na agenda política de um Estado-membro. Isto apesar de a Europa se ter sempre sentido inibida, por ausência de competências, para intervir no modo como os Estados-membros regulavam o seu mercado de trabalho ou arquitectavam os seus sistemas de pensões. Agora, no exacto momento em que a construção europeia se está a tornar numa ficção política, assistimos a claras ameaças ao que resta de soberania. Como lembrou Cavaco Silva, “nenhuma entidade exterior pode colocar questões dessas na agenda nacional”. E, já agora, não há um único exemplo histórico de que algum problema se tenha resolvido com suspensão da democracia.

publicado hoje no i.

sábado, junho 05, 2010

A hegemonia dos duros

Os duros tornaram-se hegemónicos no espaço público. Mas as suas receitas são no essencial preguiçosas. Para uns os males do país resolvem-se cortando salários (em percentagens variáveis) e prestações sociais (para combater os "malandros dos subsídio-dependentes"), para outros tudo se soluciona aumentando a carga fiscal (essencialmente sobre os "malandros de cartola", na caracterização de Francisco Louçã). Os dois caminhos revelam a incapacidade do Estado de lidar com a despesa. Para o governo, é possível cortar salários e aumentar impostos, já racionalizar políticas públicas é invariavelmente mais difícil. Cada tentativa de mudar o que quer que seja choca com a mobilização do coro de descontentamentos locais. Já os que clamam por coragem reformista, quando se fala em fecho de escolas ou maternidades, na diminuição do número de freguesias ou na introdução de critérios para avaliar os professores, aproveitam para se remeter a um comprometedor silêncio. Há, claro, boas razões para que surjam vozes de protesto. Desde logo porque fica sempre a ideia que o que é proposto surge do nada, com pouca partilha prévia da informação em que assentam as decisões. O Estado não consegue racionalizar a própria rede administrativa, mas também não procura criar condições para isso. Com processos de decisão públicos e transparentes talvez fosse possível criar coligações sociais favoráveis à modernização das políticas públicas; com opacidade nas decisões e informação estatística remetida para a penumbra administrativa, estamos condenados a fazer ajustamentos cortando salários, diminuindo prestações sociais ou aumentando a carga fiscal.

publicado no i.

sexta-feira, junho 04, 2010

Ser irrealista, exigir o impossível

Ontem, daniel Cohn-Bendit era realista e exigia o impossível; hoje, no Parlamento Europeu, o mesmo "Dany le Rouge" é realista e diz que "não devemos pedir à Grécia o impossível". Num notável discurso em Bruxelas, e em rápidos seis minutos, Cohn-Bendit explicava, há umas semanas, como exigir um exercício de disciplina orçamental violento, assente em cortes brutais sem qualquer expectativa de crescimento económico, é pedir que a Grécia faça uma autêntica quadratura do círculo. O resultado na Grécia, e em todas as economias europeias, só poderá ser uma espiral de desemprego, quebra da receita, mais desequilíbrio orçamental e recessão profunda. O que é pedido à Grécia, como lembrou Cohn-Bendit, é que faça, por exemplo, alterações no seu sistema de pensões que, um pouco por toda a Europa, levaram à queda de governos (em França e em Itália, num passado recente) ou se revelaram politicamente inviáveis. É por isso que, hoje, o perigo grego reside não apenas no risco de contaminação do profundo desequilíbrio orçamental, mas também na ideia de que ajustamentos abruptos são política e socialmente possíveis. Não são. Haver quem pense que vai ser possível ultrapassar a presente crise assim serve apenas para revelar como "a Europa está completamente louca". Que seja preciso Cohn-Bendit para dizer isso, não deixa de ter ironia. Uma ironia só ultrapassada pela forma como, enquanto ouve as palavras do eurodeputado, José Manuel Barroso acena que não, que ele nunca perdeu eleições. Já suspeitávamos.

publicado no i, onde se pode ver o video do Cohn-Bendit, que vi, em primeiro lugar, nos ladrões de bicicletas.

terça-feira, junho 01, 2010

Um apoio bipolar

A divisão do PS na escolha do candidato presidencial não é a excepção, é a regra.

Foi assim quando Soares, então secretário-geral, reservou uma posição pessoal, não apoiando Eanes; depois, o espaço político socialista dividiu-se no apoio a três candidatos (Soares, Zenha e Pintasilgo); mais tarde, em 1995, Sampaio avançou sozinho, criando desconforto à direcção do PS (que apostava em Fernando Gomes) e a Soares (que chegou a tentar uma candidatura de Rui Alarcão); as últimas eleições estão ainda bem presentes: Soares e Alegre disputaram o mesmo espaço, numa reedição da competição fratricida Soares/Zenha.

Há, contudo, duas diferenças relevantes por relação à situação actual: por um lado, o candidato da área socialista saiu quase sempre vitorioso e, por outro, mesmo promovendo dissensão interna, as vitórias não colocaram em causa o poder interno do partido. Desta feita não será assim. As probabilidades de Alegre vencer, contra um presidente em exercício (que convém recordar, em Portugal, é sempre reeleito), são reduzidas e, qualquer que seja o resultado, a lógica de afirmação política que foi dominante no PS nos últimos cinco anos sofrerá um revés, eventualmente definitivo.

Sócrates apoiou Alegre a contragosto, mas não tinha alternativa, porque não a construiu. Entretanto, todos os nomes que se perfilam como eventuais sucessores (de António Costa a António José Seguro, passando por Assis e Carlos César) já haviam apoiado Alegre e uma não-posição, como sugeriam alguns, era um absurdo político, com consequências devastadoras. Mas o apoio burocrático dado pelo aparelho coexiste com uma desmobilização de figuras de relevo na actual hierarquia partidária. O PS apoiar formalmente, mas depois o terceiro, o quinto e o sétimo da hierarquia não apoiarem, revela a natureza bipolar do envolvimento do aparelho com a candidatura. O que não deixará de ter consequências na campanha - criando uma dinâmica fraccionária - e no resultado eleitoral. Acima de tudo, consolida o que tem sido uma tendência no modo como Sócrates tem gerido o PS: a secundarização de todas as eleições, com excepção das legislativas.

Esta secundarização poderá bem, no caso das presidenciais, colocar fim ao actual ciclo político. Sócrates, independentemente do resultado, já perdeu as presidenciais. Sócrates perde, quer seja Cavaco, quer seja Alegre a ganhar. Se Cavaco reforçar o seu resultado, o lugar de primeiro-ministro passará a estar sujeito a uma tutela política ainda mais apertada; se Alegre perder, mas com um resultado muito elevado, encontrará um equivalente ao "milhão de votos" de há quatro anos para pressionar o PS; e se Alegre vencer, estaremos perante a disputa entre duas visões diametralmente opostas do que deve ser um governo do PS. Que Sócrates se tenha deixado colocar nesta posição permanece um mistério político.

publicado no Diário Económico.