segunda-feira, dezembro 27, 2010

Para os pobres, os restos

Há uma notável regularidade no modo como, entre nós, a pobreza surge no espaço público. De tempos a tempos assistimos a um clamor coletivo, umas vezes em torno dos níveis insustentáveis de pobreza, outras louvando o esforço solidário dos portugueses. Estranhamente, esse clamor não só é suspenso quando a discussão se centra nos mecanismos que, de facto, podem romper com a reprodução da pobreza, como muitos dos que se indignam com os nossos níveis de pobreza são os mesmos que se indignam com o efeito alegadamente perverso das políticas que visam combater o fenómeno, enquanto defendem o regresso ao assistencialismo.

A pobreza é um drama individual com consequências coletivas: em democracia, não ter um nível condigno de recursos materiais é a forma mais brutal de privação de liberdade e a existência de níveis elevados de desigualdade é um mecanismo poderoso de diluição dos laços sociais. Perdemos muito como país em não fazer do combate às desigualdades a prioridade das nossas políticas.

Nas últimas semanas, primeiro, com mais uma campanha do Banco Alimentar contra a Fome e, depois, com a iniciativa "direito à alimentação", foi-nos revelado o esforço solidário que, de tempos a tempos, emerge em Portugal. Num país onde o Estado é, simultaneamente, visto como a raiz de todos os males e como o recurso a que todos, sem exceção, recorrem, há boas razões para se elogiar estas ações. Contudo, nada nos obriga a suspender o espírito crítico apenas porque estamos perante um esforço solidário da sociedade civil.

A questão não é tanto discutir a bondade intrínseca das iniciativas, é saber se são de facto eficazes para quebrarmos a espinha à pobreza. É que uma coisa é potenciarmos um conjunto de ações que visa aliviar as formas mais brutais de privação (como faz, e bem, o Banco Alimentar contra a Fome), outra, bem diferente, é intervir para que a pobreza não se reproduza geracionalmente e não se caracterize por ter uma inscrição social tão marcada.

É uma vergonha que, numa sociedade democrática, haja quem tenha fome; mas não é por combatermos a fome que combatemos a pobreza. E o problema é que é-nos frequentemente sugerido que as iniciativas da sociedade civil assentam numa estratégia de substituição do Estado. Ora estas iniciativas têm um carácter supletivo e só são eficazes se as políticas públicas contrariarem os fatores que causam o nosso padrão de desigualdades.

Nada contra que a sociedade civil se organize para combater a fome - ainda que distribuir restos de restaurantes e apresentar a iniciativa num casino tenha uma carga simbólica negativa -, mas não deixa de ser surpreendente que o consenso público em torno do assistencialismo alimentar coexista com uma incapacidade de consensualizar políticas redistributivas que aliviem a privação e políticas educativas que contrariem as assimetrias de origem social. Dá que pensar quando o Presidente da República oferece o seu patrocínio à distribuição de sobras de restaurantes e, ao mesmo tempo, o país discute o aumento do salário mínimo para 500 euros, tolera ataques demagógicos aos "malandros do rendimento mínimo" ou confunde massificação da escola pública com facilitismo. No fundo, permanecemos no exato lugar em que estávamos quando Ruy Belo escreveu: "é tão suave ter bons sentimentos/consola tanto a alma de quem os tem/que as boas ações são inesquecíveis momentos/e é um prazer fazer bem".

Texto publicado na edição do Expresso de 18 de Dezembro de 2010

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Bloco Central - medidas competitividade, presidenciais e wikileaks

para ouvir aqui.

A democracia capturada

A revista "Sábado" publicou esta semana a enésima reportagem sobre eleições internas num partido. Depois do "gang do multibanco" no PSD, agora o tema foi as federações do PS. Se escrevo enésima é porque é um daqueles assuntos que antes de ser publicado já o era. Podemos antecipar com segurança o que vamos ler: uma mesma história, repleta de episódios de arrebanhamento de votos, de quotas pagas a granel, cadernos eleitorais martelados, tudo culminando em processos de formação de poder que de democrático têm cada vez menos. Não sendo inovadora, a reportagem da "Sábado" é reveladora e talvez a mudança nos partidos dependa da revelação.

As eleições internas dos partidos são um assunto demasiadamente sério para ser deixado apenas aos militantes partidários. Para um estranho à vida partidária, estamos perante temas irrelevantes. Mas não é assim. Uma parte muito significativa dos mecanismos de poder interno assenta nas escolhas que são feitas nas estruturas locais. Ora, como os partidos são uma condição necessária à democracia, em última análise, o poder de quem nos governa está alicerçado nestes atos eleitorais. E o que deles se sabe é pouco edificante.

O tema das quotas é, a este propósito, um excelente observatório: saber como são pagas as quotas diz-nos muito sobre as lógicas de funcionamento das estruturas partidárias. Persiste naturalmente muita militância convicta, desinteressada e que se mobiliza autonomamente; mas, hoje, a militância genuína é facilmente desmobilizada por eleições manipuladas por quem pode pagar quotas a terceiros. Mesmo numa altura em que os estatutos partidários apertaram o cerco a estas formas de caciquismo, no mínimo, elas persistem.

Não há nada de particularmente novo nestes mecanismos de generosidade interessada. Nisso os partidos continuam a funcionar à imagem do liberalismo do final do século XIX e da República do início do século XX. O problema é que, enquanto a democracia portuguesa, no seu conjunto, se afastou significativamente do padrão de "eleições feitas", os partidos continuam a operar num quadro de "apoio comprado" e de "apoio por compensação concreta".

A generosidade dos caciques que pagam quotas produz vários efeitos. Enquanto fecha os partidos à entrada de novos militantes, reproduz lógicas perversas de poder interno. Por um lado, a perpetuação de uma determinada estrutura de poder é mais fácil de sustentar se não existirem novos militantes; por outro, quem paga quotas vence eleições e quem vence eleições passa a ter mais recursos para, depois, pagar mais quotas.

Perante isto, as direções partidárias tendem a defender que o problema existe a um nível local, mas depois as estruturas nacionais vão encontrando formas de compensar estas disfuncionalidades. É isso que explica que as lideranças, quando confrontadas com a questão, reajam com condescendência - ao ponto do líder da federação do Porto afirmar à "Sábado" que "as quotas são um problema individual de cada militante". Infelizmente, não é assim, são um problema coletivo, que mina a democracia na base e que não deve ser tolerado. Se nada mais, porque o sinal dado é claro: se os partidos não são capazes nem de basear os seus mecanismos de poder interno no cumprimento da lei, nem de torná-los verdadeiramente pluralistas, não há razão para acreditarmos que, uma vez no governo, serão capazes de o fazer no Estado.

Texto publicado na edição do Expresso de 11 de dezembro de 2010

sábado, dezembro 11, 2010

O Euro fim

Estamos a assistir ao desenrolar da história europeia, mesmo diante dos nossos olhos, agora como tragédia. A recomendação do eurogrupo para Portugal fazer reformas estruturais, designadamente no seu mercado de trabalho, é mais um passo no delírio político europeu. É uma intromissão (sem cobertura nos tratados) politicamente errada (em contexto recessivo esta não deveria ser a prioridade da zona euro) e socialmente iníqua (precisamos de reformar o mercado de trabalho, mas não no sentido sugerido). Acima de tudo, é reveladora do precipício para o qual caminhamos e que pode bem destruir o euro e décadas de laboriosa integração europeia.

Desde logo, custa a compreender que, no final da reunião, perante as recomendações, o Ministro das Finanças tenha optado pelo silêncio. A atitude só pode significar uma de duas coisas, ambas preocupantes: ou Teixeira dos Santos discorda das decisões do eurogrupo mas aceitou passivamente a decisão, ou está de acordo com a posição e usa-a para reforçar a sua posição em Portugal, obrigando os seus colegas de Governo a vergarem-se perante as diretrizes europeias. A primeira possibilidade é incompreensível: consolida a natureza patológica da atitude do bom aluno, hoje contrária ao interesse nacional. A segunda é ainda mais grave: significa que não há um Governo, mas vários. Infelizmente há demasiados sinais de que nas questões estratégicas o Governo se tornou num coro muito desafinado, com os ministros mais relevantes a alinharem por diferentes diapasões.

As recomendações a Portugal, em linha com o imposto à Irlanda, revelam que a maioria política que domina o conselho não percebeu a natureza da crise. Tudo aponta para que a Europa esteja empenhada em fazer com que a economia, não tendo morrido da doença (a crise que nasceu no sistema financeiro), morra da cura. Só assim se compreende que, perante a falência do modelo irlandês, todo ele fundado no desenraizamento social das instituições que gerem a economia (do mercado de trabalho ao sistema financeiro), a Europa obrigue a Irlanda a liberalizar ainda mais. No fundo, estamos face a uma posição semelhante à dos comunistas ortodoxos que insistem que o socialismo real falhou porque não foi verdadeiramente adotado. Trata-se, apenas, de uma aspiração ideológica, contrária às evidências empíricas.

Portugal precisa de modernizar o seu mercado de trabalho. Mas não será por aí que sairemos da situação em que nos encontramos e o que a Europa sugere não é a reforma necessária. A ladainha da excessiva rigidez da nossa regulação laboral esconde várias realidades: a proteção legal foi um contraponto a um sistema de proteção social pouco eficaz e à ausência de mecanismos de autorregulação; a nossa legislação já não é tão rígida como se quer fazer crer; e, no que é a dimensão mais relevante, a rigidez formal coexiste com flexibilidade de facto, o que nos torna um dos países europeus com maior precariedade. O PPE que domina a Europa quer, e muita gente por cá, flexibilizar o despedimento. Muito bem, avancemos nesse sentido, mas, para o fazermos, temos de enfrentar simultaneamente a precariedade. Logo, acabemos também com todas as formas de subcontratação (por exemplo, pondo fim aos recibos verdes) e tornemos o acesso ao subsídio de desemprego mais fácil (reduzindo o número de dias de trabalho necessário para ter direito à prestação).

Texto publicado na edição do Expresso de 4 de dezembro de 2010

Resultados do PISA

emissão do bloco central pode ser ouvida aqui.

Debate quinzenal e barómetro na SIC-N

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Bloco Central - distribuição dividendos

para ouvir aqui.

Uma Greve Reveladora

Há invariavelmente um lado de farsa na leitura das greves. Para quem organiza, foram um sucesso sem paralelo (o delirante número de três milhões de grevistas de Carvalho da Silva); para quem está no poder, não se passou quase nada. Mas, além da competição dos números, resta uma greve geral, que tem funções sociais, mas é também reveladora do absurdo político em que operamos.

A greve serviu para contrariar a distância social que persiste entre o espaço público, dominado pela defesa da austeridade, e a experiência concreta dos portugueses que, em lugar de viverem acima das nossas possibilidades, sobrevivem abaixo das suas próprias necessidades. Há um Portugal de baixos salários e de subordinação laboral que está quase sempre ausente do debate. Quarta-feira mostrou-nos esse país e o sindicalismo de base é ainda a forma mais eficaz de representação dos de 'baixo'. A greve foi, de facto, um mecanismo de reequilíbrio das relações de poder, ainda que em moldes diferentes do passado.

Esta greve revelou uma combinação única, que terá efeitos negativos, entre velhos paradoxos do sindicalismo português (a politização) e novos obstáculos (a desnacionalização do poder político).

Do ponto de vista comparativo, Portugal tem níveis reduzidos de sindicalização e valores muito baixos de conflitualidade laboral: poucos trabalhadores admitem já ter feito greve e, com a exceção da administração pública e do sector empresarial do Estado, tem-se assistido a uma diminuição acentuada de greves. Contudo, a escassa relevância dos sindicatos no mundo laboral tem outra face: uma capacidade de mobilização política de base sindical muito forte. Mas esta afirmação do movimento sindical, liderada pela CGTP, é arriscada - em lugar de valorizar o papel dos sindicatos na defesa concreta dos direitos laborais, através da negociação, politiza excessivamente a sua ação. No imediato, serve para aumentar a capacidade de mobilização, mas circunscreve-a a uma base de recrutamento estanque - os que podem fazer greve, que são cada vez menos.

Estas velhas tendências que se têm, nuns casos cristalizado, noutros intensificado, ocorrem num contexto que tem mudado a um ritmo acelerado.

Uma greve geral de base nacional, hoje, só serve para expor a ineficácia das formas de representação política tradicionais. Há uma enorme descoincidência entre o nível a que continua a ser feita a mobilização (nacional) e o nível das decisões políticas (no mínimo, europeu). Esta descoincidência tem um efeito desmobilizador e revela como esta crise é destruidora económica e socialmente, mas tem também um efeito devastador para os mecanismos de representação. O movimento sindical continua a ter capacidade de resistência, mas revela também impotência para mudar as políticas.

A situação em Portugal será particularmente delicada: sem poder recorrer ao capital que decorre de uma tradição negocial enraizada, restará a memória da contestação política contra os Governos, numa altura em que o poder de decisão já não está nas suas mãos. Quando era necessária uma verdadeira internacionalização das formas de mobilização política, é-nos oferecido um movimento sindical preso às suas idiossincrasias nacionais e que opera num quadro que já não existe. É triste, mas a revelação desta tendência será o principal legado desta greve.

Texto publicado na edição do Expresso de 27 de novembro de 2010

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Comentário na SIC-N sobre a taxação dos dividendos e smn

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Bloco Central - aprovação do OE 2011

ouvir aqui.