domingo, fevereiro 27, 2011

Um futuro incerto.

A crise internacional chegou sem que fosse prevista; nas últimas semanas, regimes desmoronaram-se inesperadamente; há uns dias, ficámos a saber que o PIB português cresceu, em 2010, o dobro do anunciado pelo Governo e acima das expectativas das organizações internacionais. Não é preciso estar muito atento para encontrar outros exemplos da incapacidade de antecipar acontecimentos cruciais ou de previsões que falharam.

Há explicações. De acordo com uma auditoria interna, o FMI revelou-se incapaz de antecipar a crise por ter sido alvo de "uma captura intelectual" que gerava simpatia face aos escassos mecanismos de regulação existentes, ao mesmo tempo que se deixava influenciar pela autoavaliação que era feita pelos bancos centrais. No "Washington Post", David Ignatius sugeria que, por recorrer cada vez mais a contactos nos serviços secretos de regimes amigos, a CIA perdeu margem de manobra para desenvolver ações unilaterais em alguns países, tornando-se dependente de informação enviesada a favor do statu quo. Ou seja, a CIA ficou presa numa armadilha em que dependia da colaboração dos serviços secretos locais, enquanto precisava de os espiar. Se a isso somarmos que, como escreveu na "Newsweek" Niall Ferguson, a política externa norte-americana para o Médio Oriente tem trabalhado exclusivamente com um objetivo estratégico - conter o Irão -, secundarizando outras dimensões, fica, de algum modo, explicada a surpresa do Egito. Quanto à falha das previsões do PIB português, a narrativa está feita: as instituições internacionais são credíveis e o Governo português não. Mesmo quando as primeiras, em lugar de previsões, produzem notícias.

Numa oportuna discussão no seu blogue, o especialista em relações internacionais Daniel W. Drezner sustenta que, apesar de tudo, muitos analistas anteciparam alguns dos eventos que viriam a ocorrer no Egito, tendo ao longo do tempo dito que os focos de descontentamento eram crescentes, expressando frustração com a incapacidade dos governos em fazerem reformas. Ainda assim, Drezner reconhecia que a ciência política assenta num conjunto de teorias sistémicas e espera frequentemente que os factos se conformem com os modelos. O problema é que a realidade é mais complexa, com muitas variáveis e idiossincrasias. Drezner conclui: é para lidar com a complexidade que precisamos de teorias e, mesmo que estas se revelem incapazes de antecipar, são ainda assim a menos má das opções.

Pode bem ser assim, mas o mais provável é continuarmos incapazes de compreender de modo inteligível o que nos rodeia. Como recordava há semanas António Costa Silva, parecemo-nos com Fabrizio del Dongo (personagem da "Cartuxa de Parma", de Stendhal), quando, nas arrebatadoras cem primeiras páginas do romance, num único dia, atravessa a batalha de Waterloo, é ferido, cruza-se sem saber com o próprio pai, sempre com perceção escassa do contexto que o envolve. Como ele, navegamos movidos por um conjunto de ambições românticas e, em lugar de proclamações definitivas sobre o futuro, assentes em modelos fechados, precisamos de mais factos e menos asserções teóricas. É a única forma de lidarmos com a contingência que nos rodeia e contrariarmos o del Dongo que tem estado demasiadamente presente nos olhos com que olhamos para o mundo. Seja em relação à crise, ao Médio Oriente ou ao PIB português.

Texto publicado na edição do Expresso de 19 de fevereiro de 2011

sábado, fevereiro 19, 2011

A instabilidade endémica

As exportações dão sinais positivos, o comportamento da receita é favorável e a Europa moveu-se ligeiramente, dando assim contornos distintos ao possível resgate financeiro dos países da periferia (ainda que criando novos problemas de legitimidade). Mas enquanto a realidade se vai transformando, há algo que regressa à superfície: a instabilidade política endémica que nos acompanha desde as últimas legislativas.

Revelando que a perturbação não tem necessariamente de ser imposta de fora, o tiro de partida foi dado a semana passada pelo Governo, que se entreteve numa assinalável trapalhada com a maioria parlamentar em torno da redução do número de deputados. Embalada pela onda inusitada, lançada por Jorge Lacão, a oposição não hesitou.

Primeiro foi o PCP, que, dando o dito por não dito, aventou a possibilidade de apresentar uma moção de censura. O objetivo tático era inequívoco: por um lado, condicionava o BE, obrigado a dizer se viabilizava ou não o "governo de direita" do PS; por outro, colocava PSD e CDS entre a espada (apoiar Sócrates) e a parede (derrubar o executivo, só que em nome de "outra política"). Pelo caminho, o PCP ia apalpando o terreno da contestação social, mobilizando a 'rua' e consolidando a sua hegemonia no movimento sindical. Entretanto, o BE, com medo de perder a corrida ao sprint, respondeu, aprazando já a sua própria moção para daqui a um mês.

Sem saber se devia dizer sim ou não, o PSD deu um passo em frente, regressando à rota ziguezagueante. Enquanto Passos Coelho se revela desgastado com a "esquizofrenia política" em torno da instabilidade e quer tempo para construir uma alternativa - que, do que se percebe, passa por fechar as empresas públicas que dão prejuízo (por exemplo as de transportes públicos) -, mas não quer ficar com "os dedos queimados" por andar com o "Governo ao colo", Nogueira Leite afirma que não convém "perpetuar o executivo no poder", mas avisa que "o PSD não tem muito a ganhar com uma moção de censura já". No fim, as palavras sábias de Miguel Relvas: "estamos à espera do momento político". O tal momento político que Paulo Portas vislumbrou sozinho no rescaldo das presidenciais e que acabou por não chegar.

A corrida para ver quem censura primeiro dá um retrato fiel do país político: os partidos envolvidos num jogo tático confrangedor, em que, de um lado, temos um Governo com um programa que não é o seu e, de outro, uma oposição que escolheu o caminho da fulanização anti-Sócrates como forma de esconder as suas vacuidades programáticas.

Ora, em lugar desta tensão tática primária, com o espectro de ingovernabilidade sempre a pairar, o que o conjunto dos partidos nos poderia oferecer era capacidade negocial de facto, institucionalizando uma prática de diálogo que teimamos em não ter. Os ajustamentos que necessariamente teremos de fazer só são exequíveis com um pacto social alargado, que dê sustentabilidade e previsibilidade às opções - à imagem do que aconteceu em Espanha. O que temos é um jogo de póquer, desfasado da realidade, no qual nem Governo, nem oposições se mostram disponíveis para abandonar a rigidez das suas posições de partida.

No fundo, torna-se claro que, se as dificuldades não forem suficientes, temos sempre uma garantia: o sistema político cá estará para somar problemas. Talvez assim se perceba a especificidade do mal português e o crescente desajustamento entre partidos e país.

Texto publicado na edição do Expresso de 12 de fevereiro de 2011

Bloco Central: regresso do FMI

Para ouvir aqui.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Bloco Central: moção de censura do BE

ouvir aqui.

Fazer implodir as escolas

Despedir funcionários públicos, fechar empresas públicas deficitárias, passes sociais com condição de recursos. Foi fértil em ideias radicais a semana do PSD, mas certamente nenhuma tão explosiva como a de Joaquim Azevedo, ex-secretário de Estado, que, nas jornadas parlamentares, propôs "implodir o Ministério da Educação".

Num contexto em que assistimos à revelação de que, afinal, a iniciativa privada na educação está dependente do financiamento público, a proposta não tem segundas leituras: o que está em causa é questionar o papel social da escola pública, desmantelando o seu "aparelho ideológico". Em Portugal, o liberalismo de juventude partidária tornou-se numa nova doença infantil.

Mas, especulação por especulação, mais do que implodir o Ministério da Educação, talvez fosse mais eficaz acabar com as escolas. A ideia foi sugerida há cerca de um ano por Julian Gough na coluna 'if I ruled the world', na revista "Prospect".

O ensino obrigatório assente num currículo rígido, ministrado em salas fechadas para grupos de crianças que escutam passivamente, foi eficaz como preparação para a vida na sociedade em industrialização, argumenta Gough.

Mas será que este modelo de escola é adequado para formar os empreendedores, os trabalhadores flexíveis e os indivíduos capazes de assumir riscos de que necessitam hoje as nossas sociedades? Claramente não. O essencial do mundo do trabalho já não se organiza nos termos do passado e a escola continua a funcionar com referência a um tempo que já não existe.

Mas se a escola como a conhecemos deve acabar, o que é que deve surgir no seu lugar? Se Julian Gough mandasse no mundo, nada.

A aprendizagem é impossível se uma criança não estiver motivada e concentrada, mas é também uma inevitabilidade quando há motivação e concentração. Quando os mecanismos de autoridade do passado já não estão disponíveis e os instrumentos de aprendizagem não são desafiantes, o mais provável é que a escola não funcione.

Mas se a aprendizagem for feita através dos instrumentos que, de facto, motivam e concentram, a aprendizagem é garantida. Substituamos, portanto, a escola por jogos de computador e atribuamos à indústria do entretenimento a responsabilidade por adequar os conteúdos programáticos aos interesses das crianças.

Quem quer que tenha visto uma criança a resolver dilemas complexos num jogo de estratégia percebe bem que dificilmente se encontraria melhor forma de ensinar História, Literatura ou Matemática. A indústria do entretenimento é o novo sistema educativo.

Mas, estranhamente, enquanto os Ministérios da Educação gerem com mão de ferro escolas e currículos, têm escassa intervenção nos meios que, hoje, de facto, educam. Ora, com maior regulação, as empresas que produzem jogos ver-se-ão obrigadas a contratar os melhores filósofos e matemáticos para enriquecer os seus conteúdos.

Como conclui Gough, a escola é uma chatice porque é muito aborrecida, não porque seja muito desafiante. Logo, o objetivo não passa por tornar a aprendizagem mais fácil, mas, sim, mais difícil. Coloquem um cronómetro em contagem decrescente e façam um aluno perder vidas de cada vez que falhar e vão ver uma criança motivada. Depois, resta acrescentar bons conteúdos. Uma tarefa que pode bem ser feita sem escola, mas que precisa de um Ministério da Educação que lhe confira sentido.

Texto publicado na edição do Expresso de 5 de fevereiro de 2011

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Bloco Central: redução de deputados; jornadas parlamentares do PSD

Para ouvir aqui.

sábado, fevereiro 05, 2011

Pensem Nisto

No final de 1996, o vice primeiro-ministro belga, Elio di Rupo, foi acusado de abusar sexualmente de menores. A crer na imprensa da altura, Olivier Trusgnach, um jovem prostituto, teria sido molestado pelo político socialista. Di Rupo foi acusado e, perante o que considerava ser a aberração da acusação do Ministério Público, recusou-se a levantar a imunidade parlamentar. Tudo isto ocorreu numa altura em que a Bélgica vivia ainda a ressaca do brutal 'caso Marc Dutroux', responsável pela morte de quatro crianças. Na mesma altura, foi ordenado um contra-inquérito pelo procurador-geral da República que apurou que as acusações eram falsas e tinham sido orquestradas por agentes da polícia, em conluio com jornalistas e políticos de extrema-direita flamengos. Mesmo num contexto de comoção coletiva perante abusos sexuais de menores, a maquinação foi desmontada. Hoje, di Rupo é líder do Partido Socialista valão, o mais votado nas últimas eleições legislativas.

Em finais de 2000, a França foi assolada pelo 'escândalo d'Outreau'. Numa pequena localidade no norte de França, estaria em funcionamento uma rede de prostituição masculina de menores. Numa fase inicial, foram envolvidas dezoito pessoas, essencialmente pais de menores, acusados de pedofilia e de incesto, tendo sido presos e mantidos afastados dos seus filhos por um período que chegou a três anos. Perante a histeria mediática, num primeiro julgamento, em 2004, o juiz Fabrice Burgaud condenou vários dos acusados a penas de prisão. A prova baseou-se em testemunhos de menores e no de alguns dos acusados, principalmente Myriam Badaoui, que colaborou com a acusação. Já em 2005, um tribunal superior, em Paris, considerou todos os implicados inocentes, com exceção de Myriam Badoui, o marido e outro casal. Entretanto, um dos inocentes, François Mourmand, havia-se suicidado na prisão. Nessa altura, Badoui confessou que havia mentido e que os acusados "não tinham feito nada". Hoje, o 'caso d'Outreau' é visto em França como um 'Tchernobyl judicial' - um exemplo assustador de como os juízes podem não resistir à pressão mediática e social, designadamente quando se trata de abusos sexuais de menores. O Estado francês, entretanto, indemnizou as vítimas por erro grosseiro. Os juízes do Tribunal Superior pediram, em nome do sistema judicial francês, desculpas públicas às vítimas.

Esta semana, Carlos Silvino, uma das testemunhas centrais do 'caso Casa Pia' e a quem no passado foi atribuída uma inusitada credibilidade, deu uma entrevista, após ter deixado de ter como advogado um ex-inspetor da Judiciária, em que, no essencial, afirma que a prova foi fabricada e que não só não conhecia os locais onde teriam sido praticados os crimes, como o reconhecimento que fez foi todo realizado previamente com inspetores da Judiciária. Independentemente das nossas convicções subjetivas sobre os vários protagonistas, o mínimo que podemos exigir é que seja, finalmente, feita uma investigação à investigação. Desde o seu início, o 'caso Casa Pia' tem demasiadas semelhanças com o que envolveu Elio di Rupo e com o 'affaire d'Outreau'. Com uma diferença assinalável: na Bélgica e em França, o sistema foi capaz de se questionar a si próprio, procurando a verdade, mesmo que isso implicasse perder a face. Pensem nisto.

Texto publicado na edição do Expresso de 29 de janeiro de 2011