sábado, julho 23, 2011

Um pouco mais de política

Em Novembro de 2010, Cavaco Silva afirmava que “não valia a pena recriminar as agências de rating”. Entretanto, o mundo mudou, e as mesmas agências tornaram-se uma “ameaça”. Quando confrontado com a gritante contradição entre as sua declarações, o Presidente da República recomendou “àqueles que sofrem de ignorância na análise, um pouco mais de estudo”.
Foi o que procurei fazer e comecei pelos discursos do Presidente. Focando-me apenas neste mandato, optei por ler as intervenções mais relevantes, procurando apurar o que Cavaco Silva pensa sobre a Europa e a crise das dividas soberanas - também com a expectativa de encontrar alguma reflexão sobre agências de rating. Para minha perplexidade, nos sete discursos de natureza eminentemente política feitos pelo Presidente, a crise internacional e o modo como esta desafia o projecto de integração e a zona Euro é um tema entre o ausente e o marginal.
Ao longo das intervenções de Cavaco Silva encontramos descrições detalhadas do cenário de “emergência económica e financeira”; justas preocupações com a instabilidade política como ameaça ao cumprimento do acordo com a troika; defesa da concertação social para além das maiorias políticas; apelos a um discurso de verdade durante a campanha eleitoral; definição dos objectivos que não podemos falhar nos próximos anos; e até a afirmação de que “há limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos” – uma declaração estranha, tendo em conta que a verdade é que os pacotes de austeridade tenderão a suceder-se. Cavaco Silva não só nacionalizou integralmente a crise, como, sobre a Europa, abdicou de expressar em público a sua opinião, com isso demitindo-se de fazer alguma pedagogia que permitisse aos portugueses “ver mais além do que a política do dia-a-dia” (para utilizar uma expressão do discurso do 10 de Junho).
Se foi preciso esperar pela mudança de governo para se alargar o consenso nacional em torno da necessidade de uma resposta europeia à crise da dívida soberana e expor-se as perversidades das agências de rating, a única coisa que se pode dizer é que mais vale tarde do que nunca. Contudo, chegados aqui, era importante que se colocasse fim ao euroconformismo que tem reinado e ao suicídio político que é continuarmos a adoptar, de modo acrítico, a atitude de bons alunos. Hoje, sucessivos pacotes de austeridade de base nacional sem uma solução europeia são contraproducentes.
Esta mudança exige, contudo, que o Presidente da República abandone o registo de mestre-escola que adopta sempre que se sente acossado. É no mínimo estranho que o político profissional no activo há mais tempo olhe invariavelmente para a divergência política como uma impossibilidade e reduza toda a conflitualidade a uma questão de mais ou menos “estudo”. A crise europeia com as suas ramificações nacionais é um assunto político, a necessitar de respostas políticas. E na política, parafraseando Cavaco Silva, duas pessoas sérias com a mesma informação não têm de concordar. Bem pelo contrário.

publicado no Expresso de 16 de Julho

Um ciclo novo

As eleições de hoje no PS têm diferenças substantivas por relação a todas as outras escolhas disputadas para secretário-geral. Infelizmente, não auguram nada de particularmente mobilizador.
Desde logo, esta é a primeira vez que a escolha é feita entre candidatos com percursos exclusivamente político-partidários. Nas eleições entre Constâncio e Gama, Guterres e Sampaio e Sócrates e Alegre, pelo menos um dos candidatos tinha uma história de vida com autonomia face ao partido. Poder-se-á dizer que estamos perante uma convergência com as democracias mais consolidadas, onde os dirigentes partidários são políticos profissionais, com carreiras nos aparelhos. É de facto assim. Só que os partidos portugueses não têm nem o enraizamento social, nem o pluralismo interno que tornam sustentável o afunilamento das condições de recrutamento dos seus dirigentes. Termos na liderança dos dois principais partidos ex-líderes de juventudes partidárias é um factor de empobrecimento que acentuará o afastamento entre eleitores e partidos. A afinidade nas trajectórias dos líderes do PSD e do PS não é uma questão que possa ser desvalorizada.
Mas a novidade mais significativa destas eleições internas é a escassez de clivagens programáticas. Em todos as outras eleições, a disputa organizava-se em torno de leituras ideológicas distintas. Desta feita, as eleições para o PS são um confronto de personalidades e não de sensibilidades. De um lado, temos os afectos, de outro a capacidade retórica. A distinção baseada nestas categorias só pode trazer problemas para o futuro. É bem mais fácil promover sínteses programáticas do que superar a crispação entre personalidades. A este propósito, o facto do vencedor anunciado, Seguro, ter optado por apresentar uma moção indistinta, remetendo todas as escolhas para um colegialismo basista e para um “laboratório de ideias” não foi um bom contributo.
Quando o que organiza as escolhas são distinções programáticas, a capacidade do vencedor promover uma síntese, que incorpore o legado do derrotado, é maior. Não por acaso, foi o que aconteceu no passado: Guterres integrou o sampaísmo, o mesmo tendo acontecido com Sócrates em relação a Alegre. Ora, não se vislumbrando nenhuma distinção programática relevante, não se vê que síntese poderá ocorrer. Tanto mais que, à imagem do que acontece no PSD, a organização de tendências no PS decorre, cada vez mais, da cristalização de animosidades pessoais, muitas delas com génese em questiúnculas que vêm da juventude partidária.
Quer no PS, quer no PSD, as novas lideranças assentam em mecanismos de poder interno relativamente fechados. Por isso mesmo terão todas as condições para se perpetuarem no poder e estamos em face de um ciclo relativamente longo – com estabilidade directiva também na oposição. Mas se podemos esperar alguma previsibilidade, devemos também assistir a uma crescente degradação na imagem dos partidos na sociedade. É verdade que estamos perante uma tendência europeia de deterioração da política. Só que em Portugal tenderá a ser mais intensa.

publicado no Expresso de 23 de Julho

quarta-feira, julho 20, 2011

Debate na SIC-N

segunda-feira, julho 18, 2011

A política como mentira

Um par de semanas bastou para o Governo substituir a verdade pela mentira (aumento de impostos) e o voluntarismo ideológico por um choque com a realidade (o corte no rating). Era inevitável que assim fosse, não se esperava era que acontecesse tão depressa.
Hoje, os governos das economias da periferia têm uma relevância marginal. A única “promessa” que lhes resta é dizer que desconhecem o que terão de fazer e que, sem solução para a crise das dívidas soberanas, serão obrigados a enveredar por uma espiral insaciável de austeridade. A um pacote de austeridade seguir-se-á rapidamente um outro que servirá para expor a insuficiência dos cortes na despesa e dos aumentos nos impostos do pacote anterior. Se nada mudar na Europa, um programa de ajustamento é um factor de risco e não um mecanismo para superar bloqueios estruturais.
Acontece que esta não era a verdade proclamada há três meses. Então, os problemas portugueses resumiam-se a dois aspectos: tínhamos um governo com um problema de credibilidade, liderado por um primeiro-ministro mentiroso, e havíamos deixado de ser bons alunos, ao escolher uma política orçamental irresponsável. O novo Governo – com a opção por medidas mais duras do que as da troika – contentaria os mercados e, por arte mágica, transformaria a realidade. Nada disso aconteceu, nem se vê que vá acontecer.
Em lugar do mar de rosas anunciado, temos apenas uma inversão radical do discurso político e da opinião publicada. Onde antes se lia que Sócrates era um irresponsável e que não se podia criticar os mercados e as agências de rating, descobrimos agora uma poderosa crise europeia, que impede que Portugal saia do buraco financeiro em que se encontra. Ficámos ainda a saber que as agências de rating são casos de polícia a necessitar de resposta europeia. Chega a ser penoso ler e ouvir hoje os arautos da verdade de ontem.
Até porque a verdade de ontem partia do princípio inegociável de que não eram necessários aumentos de impostos e que tudo se resolvia do lado da despesa (ou melhor, com cortes nos miríficos consumos intermédios) e que uma hipotética subida de impostos serviria apenas para aumentos das pensões mínimas – uma compensação que passaria pelos impostos sobre o consumo e nunca sobre os rendimentos. É escusado confrontar o que foi dito com o que foi feito.
Mas se o tema é a verdade, ela é dura: os impostos vão continuar a aumentar (desde logo o IVA) e os cortes vão continuar a incidir nos salários e prestações sociais (onde se concentra o essencial da despesa pública). A impotência do Governo português a isso obrigará. Nisso, este Governo não difere muito do anterior. Enquanto se demitir de procurar formar uma coligação política que envolva os países da periferia da zona Euro para enfrentar os problemas europeus, o Governo está condenado à irrelevância. Até lá, o mundo continuará a mudar a um ritmo acelerado e o país será obrigado a acompanhar as mudanças do mundo. Já agora, uma profecia: não deve faltar muito para Passos Coelho também passar a ser considerado mentiroso.

publicado no Expresso de 9 de Julho.

quinta-feira, julho 14, 2011

Um gigantesco banco alimentar

Um dos mistérios da política portuguesa é o modo como níveis muito elevados de pobreza coexistem com a demagogia em torno do combate à pobreza. O novo governo, no seu programa frugal, ao mesmo tempo que em alguns aspectos não hesitou em meter o tão apregoado liberalismo na gaveta, decidiu conservar a retórica assistencialista, que se esperava fosse um excesso próprio de campanha eleitoral.
Ao longo do programa é sugerido que as políticas públicas de solidariedade social se transformem num gigantesco banco alimentar. Há nisto um enorme equívoco. Uma coisa são iniciativas muito meritórias da sociedade civil, mas naturalmente parcelares, outra é as políticas públicas assentarem numa lógica discricionária que reproduz princípios desadequados às respostas do Estado. No fundo, trata-se da diferença entre assistencialismo privado e direitos sociais públicos. Além do mais, o modo como o Governo quer associar prestações sociais e trabalho, em particular num momento de desemprego muito elevado, tem um efeito perverso sobre o mercado.
Apesar da ideia de pagar prestações sociais em vales ter desaparecido, a substituição de pagamentos em espécie por géneros mantém-se presente. Numa frase que faz recuar as políticas públicas portuguesas quatro décadas, é estabelecida uma hierarquia dos bens a distribuir aos pobres, uma espécie de ‘kit de sobrevivência’: “são prioritários, em termos de entrega às famílias, os seguintes itens: alimentação, vestuário e medicamento”. Para quem apregoa tanto o liberalismo, dificilmente se encontraria algo tão iliberal como esta menorização dos pobres e a limitação brutal da liberdade de escolha implícita nesta frase.
Nas sociedades democráticas, o dinheiro é também um mecanismo de integração social e não ter um mínimo de recursos materiais uma forma brutal de privação de liberdade. Negar o acesso ao dinheiro a um conjunto de cidadãos apenas aprofunda os mecanismos de segregação associados à pobreza.
Igualmente chocante é o exercício de novilíngua que dá pelo nome de ‘tributo solidário’. A ideia parece sugestiva, mas é perversa: os beneficiários de prestações sociais devem ser chamados a cumprir trabalho a favor da comunidade. Este princípio, para além de nos reenviar para uma visão punitiva do trabalho, que encontra eco, pelo menos, nas ‘workhouses’ dickensianas, ignora que a reinserção social dos excluídos já depende hoje da activação, não exclusivamente através do regresso ao trabalho. Depois, num contexto de depressão profunda do mercado de trabalho, a transformação dos beneficiários de prestações sociais num novo ‘exército industrial de reserva’ só servirá para colocar pressão adicional sobre os trabalhadores pouco qualificados e de baixos salários – os que estão na iminência de cair na armadilha de pobreza.
Quando num contexto de emergência social, o que o governo tem para dizer aos mais pobres é “tomem lá um kit de sobrevivência e agora vão limpar matas”, dá-nos uma mensagem clara sobre o modelo de sociedade que ambiciona. Um modelo que encontra no ressentimento social a sua energia fundadora.

publicado no Expresso de 2 de Julho

terça-feira, julho 05, 2011

O fim da silly season

O fim da silly season
Não tarda o país vai a banhos e, ao contrário do que é hábito, este ano não teremos silly season. Terça-feira acabaram duas ilusões e com elas a silly season. Depois de meses de suspensão da realidade, descobriremos que afinal nem a culpa de tudo era de Sócrates, nem o essencial dos nossos problemas irá desaparecer apenas porque dois pares de peritos estrangeiros foram capazes de listar num papel um conjunto de medidas. O mais difícil é o que resta fazer: aplicar um programa com o qual, em abstracto, uma larga maioria aparenta concordar, mas cuja concretização se revelará tão exigente como impopular.
A tomada de posse do novo governo devolveu-nos à realidade. Mas será que aquilo que se sabe do novo elenco governativo anuncia algo de positivo quanto à capacidade de concretização do memorando de entendimento?
No discurso de posse, Passos Coelho prometeu ir por “mares nunca dantes navegados”. Para quem propõe uma dupla ruptura face aos vários governos anteriores, a metáfora faz sentido: o que se anuncia é uma ruptura programática e na orgânica do Estado. Se a mudança de políticas é inteiramente legítima e promove uma necessária clarificação programática entre os partidos portugueses, já o experimentalismo na orgânica ministerial, não apenas introduz ruído como, temo bem, revelar-se-á um obstáculo perigoso à rápida implementação do acordo com a Troika.
A última coisa de que precisávamos num momento de emergência era enveredar pelo caminho de fusão de ministérios, baralhação da orgânica dos serviços e alteração de tutelas que, com manifesto insucesso, os sucessivos governos têm seguido. Em lugar de apostar na continuidade orgânica como forma de ir mais longe na ruptura programática, Passos Coelho escolheu uma mistura explosiva de radicalismo programático com perturbação institucional. É uma receita propícia ao desastre e que faz com que o falhanço se possa transformar de espectro em realidade.
Entre várias opções cuja racionalidade é difícil descortinar, a fusão no Ministério da Economia de três pastas gera enorme perplexidade. Só um misto de irresponsabilidade e inconsciência pode explicar a opção por juntar obras públicas, trabalho, emprego, transportes e economia e entregar todas estas competências a alguém que não tem nem experiência política, nem qualquer tipo de socialização primária com a administração pública. Há alguma lógica que explique esta opção ou tratou-se apenas de uma cedência à ideia populista de que há políticos a mais e que os políticos ganham demasiado? Uma coisa é certa, poupanças marginais em salários vão traduzir-se em perdas significativas de produtividade e eficiência. Independentemente das qualidades académicas do titular das pastas, há um risco demasiado óbvio: um ministro paralisado pela carga administrativa e incapaz de lidar com os vários grupos de pressão que pululam nestas áreas. Se o objectivo fosse falharmos, não me ocorreria melhor opção.

publicado no Expresso de 25 de Junho